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29 janeiro 2023

Savacu em Faro

19/05/2020 - Faro - Savacu-de-coroa

Depois de uma bem sucedida corrida ao Trombeteiro do Espichel - ver "A Trombeta do Desconfinamento" - apareceu uns dias depois nessa mesma zona um andorinhão-pequeno (apus affinis). Foi a 18 de Maio, segunda-feira, nove dias depois da aparição do Trombetas. É um fenómeno que se explica pela quantidade de olhos que passam a frequentar um local quando o mesmo está "quente" ou "on fire", como alguns preferem dizer em Português corrente.
Segui o tema com interesse, mas sem grande intenção de me deslocar, mais uma vez, ao Cabo. A semana ainda era longa. No entanto, acabei por me deixar convencer, sem grande esforço, a ir ajudar o Vasco Valadares a descobrir o animal. No dia seguinte, terça-feira, tinha um intervalo entre reuniões entre as 10h30 e as 14h30. "Vou lá contigo, mas tenho de estar em casa às 14h15". E assim se fez. Pouco depois das 10h30 estávamos a sair do quartel-general. Objetivo, Affinis. Lá iam ser mais umas horas a olhar para o céu, com o pescoço e os ombros a doer, já para não falar da peregrinação a pé da barreira na estrada até ao Santuário. O corpo a pagar e, ainda por cima, sem ter feito nenhuma promessa.

Savacu-de-coroa (Nyctanassa violacea)

Pouco depois das 11h, tínhamos acabado de atravessar a 25 de Abril quando, numa das várias consultas por minuto que faço ao smartphone, vejo um post do Georg Shreier no grupo "Rare Birds Algarve". Só dizia "Red alert in Faro" com um link para uma lista do eBird. Cliquei imediatamente no link, cheio de curiosidade. Realmente, não era uma lista qualquer. Só tinha uma espécie mas, que espécie. Era um Savacu-de-coroa (Nyctanassa violacea). Um adulto a descansar, calmamente, nas escadas da doca, em frente ao Hotel Eva, às 8h15. O Observador - Nuno Sales Henriques - era desconhecido mas, as fotos tiradas com o telemóvel (!?) não deixavam dúvidas a ninguém. Dizia ele nas notas que tinha tido dúvidas na espécie mas que após consulta com um amigo, tinham chegado a essa incrível conclusão.
Aguenta coração! Não havia dúvidas na espécie e o local também parecia estar mais que confirmado, com as fotos apresentadas. Ou seja, não havia mesmo como escapar a esta. Ainda por cima, para mim, esta garça tinha uma certa mística, uma vez que só na quarta viagem ao Brasil a consegui finalmente vislumbrar. Só um juvenil mas, tomaram muitos!
Tentei manter a calma, enquanto contava ao Vasco o que tinha acontecido. Sentia a adrenalina a espalhar-se rapidamente pelas veias. A resposta veio imediatamente:
-Seguimos em frente?
Perante a minha hesitação, ainda pôs sal na ferida:
-Não precisas de decidir já. Tens até à saída para Sesimbra.
Realmente, tinha imenso tempo para decidir com calma. Para aí uns cinco minutos. As contas de cabeça começaram. Como iria conseguir baldar-me ao teletrabalho? Não deixa de ser cómico pensar nisso. Uma pessoa já está fora do escritório. Neste caso estamos a falar de estar fora de estar fora do escritório. À reunião das 14h30 era difícil fugir. Às outras nem tanto e, com uma chamada, avisei que tinha tido um "imprevisto" e não ia estar presente. A verdade é que esta forma de trabalhar também tem as suas vantagens. O facto de se estar nas reuniões sempre de forma virtual, significa que podemos estar fisicamente onde quisermos. Parti do princípio que teria boa rede móvel na doca de Faro e achei que era uma boa forma de testar a app de reuniões no telemóvel. Estava decidido!
-'Bora para Faro!

Red Alert in Faro!
(screenshot do facebook)

O caminho não teve grande história, a não ser um telefonema rápido do Pedro Ramalho. A Reuters do birding Português tem sempre de ter as últimas informações. Atendi e, depois de atender, houve ou dois segundos de silêncio. Veio a pergunta, que soou mais como uma afirmaçāo: 
-Já estás a caminho...
Perante a minha hesitação prolongada na resposta, teve de insistir:
-Eh pá, ou estás, ou não estás.
Hesitei mais uns segundos.
-Bem...Sim.

Ao fim de quase duas horas e meia estávamos a estacionar ao lado da doca, junto às escadas onde a foto da lista ebird tinha sido tirada. Vista já tínhamos. Só faltava o bicho. Esse, tal como era esperado, não estava à vista. 
Rapidamente avistámos o Lars Gonçalves e a Susana Almeida. Andavam a explorar as redondezas. Além deles, não vimos mais ninguém da tribo. A multidão estaria com certeza a caminho ou, será que é a tribo que é pequena?

Às 14h30 em ponto fui para o carro e entrei na reunião. Ouvia-se tudo perfeitamente e ninguém se apercebeu que não estava num local convencional de trabalho. Obviamente que o pessoal em Faro achou imensa piada ao facto de eu estar sentado dentro do carro com o telemóvel na mão e fones nos ouvidos. Lá tive de repetir várias vezes o pregão "Não vês que estou numa reunião?". 
Pouco depois das três da tarde já estava despachado. Tinha corrido tudo impecavelmente. Benditas novas tecnologias. Às vezes, ponho-me a pensar que ainda há dois ou três dias usávamos telefones de disco. Outros tempos e outros mundos...

Voltando ao mundo real ou, neste caso, à Doca de Faro, as notícias não eram boas. O Savacu na doca não estava e nos jardins adjacentes também não, pelo menos que se visse. 
O pessoal do sofrimento foi chegando a conta-gotas. O Nuno dos Santos, o não-arrolador  Nelson Fonseca e outros foram-se juntando. Já lá tínhamos um grupo jeitoso e a conversa estava animada. Tudo com o devido distanciamento social, claro. 

Sem sinal do bicho, resolvemos ir comer qualquer coisa. Fomos ao restaurante de luxo que tem como logotipo dois arcos dourados a formar um M. "Se aparecer avisem!".  Os restaurantes estavam a começar a reabrir, depois do choque pandémico. Este não fugia à regra. Os funcionários ainda mal sabiam como usar a máscara, e os clientes também. Tudo muito estranho, parecia mais um episódio da Twilight Zone. Mas estranhos num mundo estranho já os birders são há muito tempo e, por isso, no nosso caso tratou-se apenas de mais um detalhe da história maior.
Voltámos à doca. A conversa continuava animada. Num instante chegámos as cinco da tarde. O pessoal começava a desmobilizar. Lá para as sete, já só estavamos eu, o Vasco, o Lars e o Nuno dos Santos. "Eu já não acredito!", Dizia o Nuno. "Tens de acreditar sempre", foi o que lhe disse. 
No meu caso, já tinha ido de Lisboa, agora era ficar até ao fim. Com uma garça noturna, não faz sentido ir embora de dia, sem esperar pela noite. Teria sido o La Palice a dizer isso?  De qualquer maneira, quem já tinha feito 300km, bem que podia esperar mais duas horas, ou não podia?
Continuámos a mandar palpites. "Se calhar está dentro de um barco", "Ainda há bocado vi restos de comida dentro daquele.", "Isso era de uma lontra", "Pois, se calhar até era." 
A verdade é que o bicho não aparecia, por muito que olhássemos para o quadrado de água rodeado pelas paredes de pedra branca. Mais um suspiro e, lá fomos ficando. Fomos ficando e, lentamente, chegámos às 8 da noite.

O sol já começava a desaparecer quando se vê um vulto a voar pelo meio da doca, por entre os barcos. Vinha do lado da cidade, do jardim. A primeira voz que se ouviu foi a do Nuno. "Olha! É a gaja!". Rapidamente foquei a vista e apontei os binóculos. Não tive dúvidas. Vi-a pousar num barco, junto ao bar dos pescadores, no lado sul. Lá fomos, uns a correr, outros, como eu, a fingir que corriam. Antes disso, ainda tirei umas fotos, não fosse o diabo tecê-las.
Lá estava ela, em cima do barco com a cobertura amarela. Mais umas fotos e, nem trinta segundos depois, levanta e vem pousar mesmo por baixo de nós no paredāo inclinado. O pessoal estava em transe. Foi disparar como se não houvesse amanhã. E filmar, como é que havia de fazer? Como tinha começado o dia a pensar que ia fotografar um andorinhão ao Espichel, não tinha trazido a bridge, nem o tripé. Filmar com uma câmara normal dslr e a lente 400mm, sem apoio, estava fora de questão. Restava o telemóvel. E foi com o que restava que acabei por fazer um pobre registo do bicho. Foi o que se pôde arranjar. Tinha ido ao Brasil para ver esta garça e, a custo, lá vi um juvenil. Agora via um adulto em Faro, e que até dava para filmar com o telemóvel. Irónico  é dizer pouco. De rir foi quando coloquei esse vídeo no canal e me perguntaram porque é que estava na vertical. "Filmado com o telemóvel?!". Há dias assim, em que dá para tudo.


O filme com o telemóvel

Nem cinco minutos tinham passado quando aparece o anterior desistente, Nelson Fonseca, em pijama e chinelos. "Já estava a Jantar!" 
Há sempre uma primeira vez para tudo. Não é todos os dias que se vê um pijama nestas andanças.
Depois do transe inicial começámos lentamente a aperceber-nos do que nos rodeava. A verdade é que a garça podia ter escolhido ir para qualquer ponto da doca mas resolveu ir passear precisamente para a frente do bar de pescadores local. Aí, a curiosidade imperava. "O que é que estão a ver?", "Amaricana?", "Olhem que depois têm de vir aqui fazer o relatório!". Os frequentadores habituais estavam quase tão entusiasmados como nós. Até a empregada Algarvia quis saber do que se tratava. "Primeira vez na Europa?", "Então e veio para aqui porquê?", "Era mandar-lhe uma pedrada!", dispara outro lá de trás. Ora aí está o crítico cá do sítio, pensei.

Quando comecei, finalmente, a conseguir raciocinar e a articular o discurso lá me virei para o Nuno:
-E agora, já acreditas?!

O regresso era longo e às nove e pouco já estávamos a caminho de casa. Além da habitual paragem na habitual área de serviço, retenho a frase do Vasco:
-Foi um dia espetacular, não foi?
Só nessa altura fiz o flashback na minha cabeça. Do trabalho para o Espichel, ou não-Espichel, neste caso. Da ponte sobre o Tejo para a doca de Faro. A reunião virtual e a montanha russa psicológica até à aparição.
Não sei se foi por ter ido ao Allgarve que me veio à cabeça a frase do Lord Marshal no filme que também tem crónicas no título: "This is a day of days!". E foi. Foi um dia que valeu por mil.








20 janeiro 2023

A Mariquita da Vitória

Terceira 17 a 19 de Dezembro de 2022

Dezembro de 2022. Em termos de viagens, para mim o ano estava arrumado. A loja estava fechada. Mas como de boas intenções está o mundo cheio, dia 4 estava eu muito descansado no sofá quando fui desencaminhado mais uma vez pelo Rúben Coelho. Não vens? Temos cá o Galeirão e a Mariquita. Farto de saber isso estava eu mas, estava a tentar não cair em tentação. 
 
Mariquita-de-mascarilha (Geothlypis trichas)
Mariquita-de-mascarilha (Geothlypis trichas)
de costas...





 
Fui consultar os voos e, espantosamente, no fim de semana de 17 de Dezembro nem estavam excessivamente caros. Vá-se lá saber porquê. O resto da logística foi relativamente simples de tratar. Parecia que os astros se alinhavam e não foi preciso muito mais para me auto-convencer. Afinal, eu era um homem ou um rato? Fiquei rapidamente sem desculpas. Estava decidido. Foi assim,  com menos de duas semanas de antecedência e empurrado por quase toda a gente que marquei a viagem. Se é que se pode chamar viagem a uma estadia de um dia completo e dois meios dias. Iria a 17 e viria a 19. Era pouco tempo mas, tomaram muitos! Quando comuniquei a decisão ao meu outro cúmplice da Terceira, o Carlos Pereira, a resposta foi pronta, "Já estava a estranhar!". Afinal, parece que o único que não sabia que ia à Terceira em Dezembro era eu. 

Apesar de, teoricamente, os objetivos serem dois, na minha cabeça só via um deles como possível, o galeirão-americano - Fulica-americana. Tradicionalmente, esse costuma ficar semanas nos locais onde é descoberto. Já no caso da mariquita-de-mascarilha - Geothlypis trichas - pensei sempre que não iria acontecer. Bicho furtivo e que já tinha sido descoberto há mais de duas semanas (dia 18 de Novembro pelo próprio Rúben). A sorte, mesmo a grande, tem limites. Nesta atividade não há impossíveis mas, não era, em princípio, possível que essa jóia lá ficasse mais de um mês à minha espera. 

Os poucos dias que faltavam foram passando muito lentamente. Fui seguindo as notícias que caiam a conta-gotas daquele pontinho verde perdido no meio do oceano. O galeirão por lá continuou e, espantosamente, a mariquita também. A esperança, foi crescendo, lentamente, algures lá nos confins mais profundos da consciência e do subconsciente. Apesar tentar não pensar nisso, volta e meia essa mariquita aparecia nos meus sonhos. 

Faltava menos de uma semana quando tudo se começou a complicar. Começou a perceber-se que as previsões meteorológicas não estavam grande coisa para o fim de semana. Leia-se, havia aviso amarelo de vento para os Açores. Comecei logo, na minha cabeça, a fazer o filme de que não iam haver voos para mim. Da mariquita não havia notícias desde dia 8 e até aí tudo normal, era mais que esperado. A gota de água foi quando, precisamente no dia anterior à partida, o Carlos Pereira me dá a excelente notícia que tinha tentado ir nesse dia ver o galeirão sem sucesso. Sem vôo, sem mariquita e sem galeirão, era precisamente assim que estava, a horas de sair de casa. A desilusão instalou-se durante umas horas. Troquei umas mensagens, a queixar-me da vida, com os companheiros já referidos. Não que isso ajudasse em alguma coisa mas, há que ter um escape em qualquer lado.

A verdade é que, de repente, assim como chegou, a tempestade mental que tinha dentro de mim desapareceu e senti uma tranquilidade difícil de explicar. Aceitei o destino, o que tivesse de ser, seria. A última mensagem que enviei nessa noite foi algo do tipo "Só sei que amanhã vou para o aeroporto, depois logo se vê." E o sono foi tranquilo, contrariamente ao que é costume nas vésperas de viagem.

Finalmente o sábado esperado chegou. Fui para o aeroporto e para a porta atribuída. Não havia avisos de atraso nos monitores. Não vi passageiros stressados ou a mencionar algo sobre cancelamentos do voo. Chegou a hora do embarque, fizeram a chamada, fomos para os autocarros e embarcámos no avião. Parecia impossível. Exatamente à hora marcada, fizeram o pushback e cinco minutos depois estávamos a caminho. O avião era um luxo, um A330 com televisões multimédia e tudo. Até vi um filme durante a viagem. O comandante avisou que íamos ter turbulência na aproximação e aterragem. Bate certo, pensei. O primeiro passo estava feito. Próximo passo, conseguir aterrar.

O avião abanou um bocado e a aterragem foi na diagonal, uma roda de cada vez. Difícil, mas foi logo à primeira. Lá falhava mais uma das minhas precisas previsões. Menos de meia hora depois já estava no carro, com os meus amigos. Agora, era uma questão de os bichos colaborarem.

O tempo não estava famoso. Fomos primeiro ao Paúl da Praia da Vitória à procura da mariquita mas ela não quis nada connosco. Bem que nós a procurámos mas, nada feito. Finalmente, uma previsão que batia certo. Ah e tal será da chuva, será do vento? As conversas do costume. I'll be back, foi o que me ocorreu. Dali já não esperava nada mas, nesta atividade é proibido desistir.

Próxima paragem, Lagoa do Junco, à procura do galeirão-americano. Naquela zona mais alta o tempo estava ainda pior. Além do vento e da chuva também tínhamos o nevoeiro a ajudar. Para chegar ao sítio tivemos de caminhar uns bons duzentos metros na lama. Chegámos à charca por volta das três da tarde e começámos à procura. Com as mãos a tremer, fosse do frio ou da excitação, dei uma ou duas voltas com os binóculos e não vi nada de especial. Será que o bicho já se tinha ido de vez? Ouço então a palavra da salvação, neste caso a do Rúben, à minha esquerda, "Está lá! Está lá!". "Onde?", perguntei, com o coração aos pulos. "Ali, junto ao muro!". Lá o vi, a uns duzentos metros. Estava quase encostado ao muro de pedras para se proteger do vento. Mal percebeu que estava a ser observado, foi para o meio da charca, para trás das ervas, que estão por todo o lado. Passados apenas uns segundos quase que nem a cabeça se via. A camuflagem era quase perfeita. Este bicho era um estratega. Percebi imediatamente porque teria sobrevivido desde o início de Novembro sem servir de troféu a um dos muitos caçadores que visitam a zona. Tirei umas fotos fraquíssimas de registo dei o assunto como encerrado. O tempo e o bicho não permitiram mais. Senti o alívio instalar-se lentamente, um calor interior difícil de explicar. A viagem não tinha sido em vão. Vi que o Rúben também estava contente, e não era para menos. A hospitalidade da Terceira não podia ser posta em causa. 

Galeirão-americano (Fulica americana)

 O galeirão já estava. Nesse dia já não tínhamos muito mais tempo até a luz desaparecer e resolvemos dar mais umas voltas pelos arredores. Não apareceu nenhuma surpresa mas, pelo menos, viu-se tudo o que já se sabia que andava por lá. Já se sabe que além da natureza, que é muito bonita, há sempre alguma passarada americana para compor qualquer visita.

No final do dia, o Rúben foi à sua vida, e eu fui à minha. O apartamento onde fiquei na capital do Birdwatching na Terceira - leia-se Praia da Vitória - estava muito bem situado. Perdido no meio do casario e a meio caminho entre o Paúl e a marginal. Senti-me em casa. Por um momento imaginei que vivia ali. Era apenas mais um dos residentes e não um estranho, um continental maluco dos pássaros. 

Hora de jantar. Desci para a marginal só para me aperceber do que parecia ser uma tempestade de areia. O vento era tal que, mesmo os grãos pesados daquela praia formavam uma nuvem e picavam a cara e as mãos de quem se aventurava na rua, como eu. Entrei rapidamente para jantar num dos restaurantes. A meio da refeição comecei ver o reflexo de uns pirilampos azuis na rua. O que se estaria a passar? Nem cinco minutos depois, aparece um operacional da proteção civil a pedir para quem tivesse carros na zona os ir retirar. Eh lá! Isto não parece estar fácil, pensei. Quando saí do restaurante havia postes com iluminações de Natal torcidos e deitados ao chão, a rua estava cortada e o jipe da proteção civil estava na zona. A tempestade de areia continuava. Ou seja, não era o fim do mundo, versão Praia da Vitória, mas imitava bem. Fugi a sete pés para o quartel general, que aquilo não estava famoso. Afinal o tal aviso amarelo sempre significava qualquer coisa.

Proteção civil em ação
 
Domingo, o Rúben apareceu cedo para começar a labuta. Fomos logo de manhã e ao fim da tarde ao Paúl da Mariquita, mas a Mariquita não quis aparecer. Ouvi-o dizer, quase para dentro, "Já tive mais fé...". Para mim o facto estava consumado e, a Mariquita, perdida. "É o que é", pensei. Aproveitou-se o dia para dar a volta à ilha. Uma visita a Meca - Paúl da Pedreira - não podia faltar. O balanço do domingo foi um bom conjunto de patos, limícolas e gaivotas americanas, além de um dos meus bichos preferidos, também do mesmo continente, o mergulhão-caçador. 

E foi assim que chegámos a segunda-feira, dia da despedida. O avião era só ao meio-dia e, por isso, já tinha decidido que logo de manhã cedo iria ao Paúl da Praia cumprir a minha obrigação e tentar outra vez a famigerada mariquita. A já falada crença do touro. Acordei cedo e fui tomar um bom pequeno almoço a uma panificação lá do sítio. Sim, porque isto das padarias portuguesas não foi inventado agora. Já tinha feito isso no dia anterior e, apesar de ser longe, dava-me um certo gozo atravessar a cidade ainda adormecida, com as ruas vazias. Isto, claro, com exceção da tal panificação já referida e da taberna da zona, onde os frequentadores habituais me lançaram olhares mistos de curiosidade e reconhecimento. Era a segunda vez em dois dias que me viam passar por ali à mesma hora. Já era praticamente da casa. Bebia era café em vez de bagaço. No regresso ao apartamento senti uma tranquilidade imensa. As ruas estavam desertas e mostravam os desenhos da calçada, iluminados pelas luzes dos candeeiros. Arte urbana no seu melhor. O sol ainda vinha longe, mas já se fazia anunciar. Um pouco como quando estás na paragem de metro e ele começa a querer aparecer, com o som longínquo que se propaga pelo túnel. Não o vês mas, sabes o que aí vem. Pelo meio do casario via-se, por vezes, o mar iluminado pelo início da alvorada. Sentia-me um privilegiado por poder ver este espetáculo simples e complexo ao mesmo tempo. 

Praia da Vitória
uma rua só para mim...


 

Depois de um passeio matinal que me encheu a alma, saí de casa num estado completamente Zen. Raras vezes me sinto assim, o que fez com que me sentisse espantado por me sentir assim. O Paúl era logo ali ao lado e nem cinco minutos demorei a chegar. Passava pouco das oito horas, o sol estava a nascer. Tinha cerca de duas horas para esta última tentativa e tencionava usá-las o melhor possível. A esperança era nenhuma mas, trabalho é trabalho. Para chegar ao local exato onde a mariquita tinha aparecido mais vezes, era preciso andar no jardim cerca de cem metros, saltar um muro e andar mais uns cinquenta num prado, ou pântano adjacente. A nomenclatura varia conforme a quantidade de água que lá está. Bom, adiante, passei o jardim dos aromas e cheguei ao muro. A luz dourada dos primeiros raios de sol iluminava a cena. Lembrei-me de apontar, logo dali, os binóculos para os arbustos onde o bicho costumava aparecer. Mal acreditei no que vi. Lá estava a estrela nos arbustos e no chão a alimentar-se. Mais um unicórnio que se materializava à minha frente. Olhei múltiplas vezes para os binóculos para ver se não estava a sonhar. Continuava a vê-la, era mesmo verdade. Ainda por cima é um bicho bonito, com a garganta amarela e a mascarilha preta. 

O pânico instalou-se quando me lembrei que tinha de documentar o acontecimento ou ninguém iria acreditar em mim. Tanta procura nos dias anteriores sem sucesso e de repente aparecia alguém a dizer que a tinha visto sem evidência nenhuma? Está-se mesmo a ver... Como costumo dizer, na minha lista acredita quem quiser mas, mesmo assim, com evidência não há conversa. Levantei a máquina e apontei para a zona geral, sem saber muito bem se tinha apanhado alguma coisa - soube mais tarde que não - e saltei rapidamente o muro para me aproximar do local. Com o coração aos pulos, tentei não acelerar muito, para não espantar a bicharada. Bicho muito discreto, ora aparecia ora desaparecia entre os arbustos e o chão. Finalmente, lá consegui uns registos fracos junto ao solo e com quase nenhuma luz. Já era alguma coisa. Finalmente, pousou por uns segundos no arame farpado e permitiu qualquer coisa melhorzita. Maldita máquina, que só a focou quando já estava de costas. Era o que havia mas, tomaram muitos! Rapidamente, saiu do arame e desapareceu, para ir à sua vida. E eu, eu fiquei a pensar também na vida, e em como as coisas acontecem. Quando vinha do pequeno almoço, nem nos sonhos mais recônditos imaginava o que se iria passar dali a uma hora.

Mariquita-de-mascarilha (Geothlypis trichas)
um dos primeiros registos dessa manhã

Desde a primeira foto que tirei a partir do muro, até à última, no fio, mediaram doze minutos. Uma montanha russa de emoções, da tranquilidade absoluta, à incredulidade, ao pânico, ao alívio e finalmente, à satisfação infinita, tudo em doze minutos. É assim que funciona, este ofício. Quando mandei uma foto para o Rúben e para o Carlos penso que também ficaram espantados. Provavelmente já não esperariam voltar a receber notícias deste bicho. 

Passado mais de meia hora apareceu o Carlos. Ainda andámos mais um bom bocado à procura da mascarilha, mas ela não voltou a aparecer. Era hora de voltar para casa. Fui buscar a trouxa e o uber Carlos Pereira levou-me ao aeroporto. Estava nas nuvens, e foi nas nuvens que voltei para casa. O impensável tinha acontecido e todas as minhas previsões de sexta-feira à noite tinha saído furadas, felizmente. 

Resta-me agradecer ao meu amigo Rúben, incansável, que me desencaminhou, e ao meu amigo Carlos, sempre presente, mesmo estando severamente condicionado nesses dias. Mais uma vez, senti-me em casa na Terceira. Agradeço também ao Rúben a contribuição que finalmente permitiu dar um título a esta crónica. Não estava fácil.

#canaldoxofred

03 janeiro 2023

As Anãs do Carvoeiro

Peniche 10/12/2022 e 11/12/2022

Se há aves quase impossíveis de colocar numa lista por estas bandas, uma delas é, sem dúvida, a torda-anã (Alle alle). É frequentadora de latitudes muito mais a norte e tem, como seria de esperar, muito poucos registos em Portugal. Ou seja, não é um mito, mas quase. 

Em Dezembro de 2022 os dias de vento forte e mar alterado continuavam desde há semanas atrás. Na tribo só se falava em observação de aves marinhas. As visitas aos hotspots habituais estavam no auge, bem como a vigilância nos portos e estuários. Já tinham sido avistadas muitas aves interessantes. Algumas gaivotas-de-sabine, muitos falaropos e a invasão de gaivotas-tridáctilas são alguns dos destaques. Isto é tudo muito bonito mas, a chamada mega ou bomba ainda não tinha feito a sua aparição. Seria uma questão de tempo? As dúvidas do costume andavam na boca de toda a gente, como a tal pasta do anúncio.

Torda-anã (Alle alle)

Dia 9 de Dezembro, uma sexta-feira de trabalho a seguir ao feriado de quinta, o Pedro Ramalho atira para o ciberespaço uma bomba atómica. Tinha visto uma torda-anã a uma distância aceitável no Cabo Carvoeiro, a voar para Sul. A única evidência que apareceu foi uma foto de um maluco no supermercado a comprar doritos tex-mex. Não sei se conta, mas eu acreditei. A legenda incluia uma frase parecida com "Foram catorze anos à espera deste momento". 

Quem espera sempre alcança. Não tenho dúvidas que, em esforço e tempo dispendido a olhar para o mar desde 2008, o Pedro é dos que mais esperou de entre os observadores Portugueses. Para se ver aves especiais há que acreditar mesmo que é possível, e investir tempo, mesmo muito tempo. A vida é injusta e nem sempre é a quem merece que as coisas acontecem mas, neste caso, até foi.

Agora, havia que decidir o que fazer no dia seguinte, sábado. Obviamente que nunca, nem nos meus sonhos mais recônditos, pensei que seria possível ver uma Alle alle. O que passou passou. Bombas atómicas só há uma em cada século. O vencedor do euromilhões desse ano estava encontrado. Mesmo assim, havia que decidir onde ir. Ou seja, como estamos a falar de marinhas, tinha de decidir entre o Cabo Raso e o Cabo Carvoeiro. Acabei por me decidir pelo Carvoeiro, em parte influenciado pelo Pedro Nicolau, que não tinha vontade de ir ao Raso. Apetecia-me pôr a conversa em dia com o emigrante que andou lá fora a lutar pela vida. Assim se fez e, no início da manhã, lá estávamos os dois no Carvoeiro. A passagem estava razoável, nada de excecional. Já tive dias com muito mais bichos a passar no Cabo. A meio da manhã chegou o dono da zona para controlar a situação e lá ficámos os três junto à Cruz dos Remédios. A observação foi alternando com a amena cavaqueira até ao momento em que eu e o Pedro Ramalho pusemos a vista em cima de um bicho esquisito que seguia isolado, não muito distante da costa. "O que é aquilo?" Foi a minha pergunta imediata. Era um alcídeo, mas pequeno, com vôo mais lento do que as tordas, airos e papagaios-do-mar que andávamos a ver nessa manhã. Ouço o Pedro Ramalho a soltar exclamações do tipo "Eh pá! Pronto! Eh pá! Como é possível?". A observação foi prolongada e, a pouco e pouco apercebi-me do que estava a ver. Era mais uma bomba atómica, mais uma torda-anã. Lá seguia ela, sozinha, naquele anfiteatro imenso que é o Carvoeiro. Ainda ouvi o Pedro a dizer que gostava de comparar o tamanho e só demorou uns segundos até que o desejo fosse satisfeito. Passa uma pardela-balear ao lado, que permite ver que aquela torda era mesmo minúscula. A mim pareceu-me nem metade da pardela. A estreia estava mais que consumada mas, continuei a seguir a ave que, numa destas, provavelmente, nunca mais iria por a vista em cima. 

No meio de tanta excitação, nem tinha valorizado os gritos de desespero do outro Pedro, o Nicolau. A dada altura, já pareciam quase um choro compulsivo. "Mas onde é que está a ave? Não estou a ver a ave! Mas está onde? Não vejo!". A ladainha não parava mas, quem nunca teve desesperos destes que atire a primeira pedra. Lá tomei consciência do drama que se estava a desenrolar e comecei a dizer, repetidamente, "Ainda a tenho! Ainda a tenho! Se quiseres vem ao meu telescópio. Ainda a tenho!". O Nicolau lá percebeu que era a única hipótese que tinha. "Está bem, sai para a esquerda". Eu sair, saí. O problema foi que, quando ele se aproximou, deu um pontapé no tripé e tirou o telescópio do sítio. Eh pá, ajuda qualquer coisinha, pensei. Fosse por sorte ou por perícia, a verdade é que passaram só uns segundos até ele, finalmente, dizer que estava a ver a ave. 

Torda-anã (Alle alle)

A alegria imperou nos Remédios nos minutos seguintes. Os abraços e cumprimentos sucederam-se. Tinha sido uma sorte monumental, tão grande que até pôde ser compartilhada com mais dois companheiros, o Pedro Marques e António Gonçalves, que andavam perdidos lá na zona. Vieram para junto de nós e, passado nem dez minutos passou outra anã, a deles. Parecia impossível mas, já tínhamos entrado na twilight zone há largos minutos e, toda a gente sabe que nessa zona do crepúsculo tudo é possível. Não há fome que não dê em fartura. Já íamos na terceira torda destas em dois dias.

O dia de observação acabou com um almoço razoável na companhia dos dois Pedros e com mais um regresso triunfal a Lisboa. Estava eufórico e senti-me o melhor condutor do mundo mas, juro que só bebi uma cerveja ao almoço.

No final do dia, o Vasco Valadares tentou convencer-me a ir a Peniche outra vez no domingo. Não me apetecia muito. Torda-anã já tinha tido a minha e, a água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte. Ele sabia bem disso mas, ficou combinado que íamos dormir sobre o assunto e que quando acordássemos, logo se via...

E logo se viu. Acordei sem pressas e decidi que ia novamente a Peniche. Não sei explicar porquê. Há razões que a razão desconhece. Não sabia o que estaria o Vasco à espera de ver mas, havia uma aberta na chuva desde meio da manhã até ao final da tarde, com ventos razoáveis. Alguma coisa haveria de aparecer, pensei.

O ritmo foi descontraido, à patrão. Fomos à Papoa, ao café do Quebrado e, passava das onze horas quando, finalmente, chegámos à Cruz dos Remédios, onde já se encontrava outro sofredor destas andanças do seawatching, o Pierre Lemos Esteves.

Mais uma vez, a passagem estava razoável. Nada do outro mundo, mas viam-se alguns alcídeos, sobretudo tordas. Um ou outro papagaio-do-mar passava mais longe, mas suficientemente perto para permitir a identificação. Gaivotas e alcatrazes qb. Não chovia nem estava muito vento e, por isso, o sofrimento não era muito.

Já passava do meio dia quando passou uma mobelha-pequena a uma distância razoável. Até deu para uma ou outra foto. Essa mobelha ainda tem estatudo de raridade e seria um excelente corolário da sessão da manhã. Como as coisas estavam a acalmar, era um excelente pretexto para podermos ir almoçar, ou não era?

A verdade é que os meus companheiros não se mexiam. Meio-dia e um quarto, meio-dia e meia. Já era uma da tarde e nem sinal de almoço. As costas doiam e a fome era negra. Acabei por me conformar com a sorte que me estava destinada e deixei o telescópio por uns momentos para me sentar no banco lá do sítio. Ora, foi aqui que o problema começou. É mais que sabido que, comigo, as coisas aparecem quando me sento ou quando estou a comer. 

Já era uma e um quarto. A passagem estava a abrandar. Olhava para os colegas e o movimento era tipo nenhum. "Eu estou bem aqui!", dizia o Pierre. E eu a pensar que vinha a Peniche almoçar. Sorte maldita!, pensei. Ora, por ironia do destino, foi precisamente nessa altura que vi qualquer coisa muito estranha a materializar-se nos binóculos. Tal como no dia anterior, o que vi foi um alcídeo com um voo mais lento do que era costume, minúsculo e com as asas a bater muito rápido. Lá senti mais uma faísca na cabeça. Qual faísca, era um relâmpago, isso sim. Mais uma torda-anã, e a passar bastante perto, muito mais perto do que no dia anterior. “O que é aquilo?” – levantei-me num ápice e perguntei com voz estridente. “Parece-me uma torda-anã”. Mal acabo de dizer isto ouço a voz do Vasco, “Onde?” “Eh pá, está ali!”, “Onde?”, “Fica atrás de mim para veres para onde estou a olhar”. Era outra vez o filme do dia anterior, mas com outros protagonistas.

Torda-anã (Alle alle)

Pode ter havido mais perguntas mas, confesso que não ouvi mais nada. Devo ter entrado em transe. Como o bicho estava a passar perto, resolvi tentar a sorte e tentar tirar umas fotos. Pensei que estava a perder o meu tempo ao largar os binóculos e pegar na câmara mas, resolvi tentar. Isto de mudar do telescópio para os binóculos, dos binóculos para a câmara e vice-versa é sempre complicado e, normalmente, implica a perda do bicho. Sabia disso tudo mas, resolvi tentar. Para meu espanto, quando olho pelo visor, o bicho estava lá. Como estava lá, carreguei no botão. Até carreguei duas vezes. De repente, deixei de a ver. Apareceu num ápice e desapareceu de repente. Lá baixei a câmara, ainda sem querer acreditar no que tinha acabado de acontecer. Só aí é que percebi que os meus dois companheiros não tinham tido a mesma sorte que eu, e não tinham conseguido perceber onde andava aquela miniatura perdida no meio do oceano. Via-se claramente a desilusão nos olhos deles. Ah e tal, que não tinham conseguido ver a estrela do momento e que pelos vistos tinha passado mais perto do que tinham pensado. É assim a vida. Muitas desculpas mas, torda, nada.

Voltei a pegar na máquina para ver se aparecia alguma coisa nos disparos. Os dedos tremiam. Para minha grande surpresa tinha sete fotos e até estavam focadas. É verdade que focadas qualquer um tira mas, mesmo assim, fiquei contente. Parecia impossível mas estavam ali à minha frente. E esta, hein?!

Mandei logo notícia do sucedido para o dono da zona, o Pedro Ramalho, que isto com proprietários não se brinca. ”Alle alle com foto." A resposta não se fez esperar "Bom, parece que vou ter de ir aí". Aproveitei para ir fazendo download das imagens para o telemóvel. A ideia era ir preparando o futuro que, isto conversa é tudo muito bonito mas, com evidência é sempre melhor. É outro campeonato. 

O inspetor da zona lá chegou, finalmente,  e claro, quis logo ver uma foto. Lá lhe mostrei o que tinha. Com um ar de gozo disse-me "Ah, isso é uma torda!". "Sim, é uma torda, mas é anã", repliquei. E lá nos rimos todos um bocado. Foi a contragosto que me obrigaram a colocar uma foto num dos muitos grupos WhatsApp da especialidade. Tudo em nome da rápida divulgação claro. A incredulidade que poderia ainda existir sobre as observações dos dias anteriores foi rapidamente esquecida quando finalmente apareceu a evidência que parecia impossível obter. Fiquei a saber que era a primeira vez que alguém teria conseguido fotografar esta espécie no mar a partir de terra e de boa saúde.

O Bullying no Carvoeiro
(foto Pedro Ramalho)

Duas da tarde. O efeito da adrenalina estava a passar rapidamente e a fome instalava-se pouco a pouco. Em vez do habitual "Vamos almoçar?!", imperava o silêncio. O Pedro já tinha almoçado e os meus companheiros de sofrimento pareciam com vontade de se martirizarem com o cilício por não terem visto a estrela do dia. No caso, o castigo era mais suave, na forma de jejum prolongado. Eu é que não tinha nada a ver com isso e comecei a mandar algumas indiretas do tipo "pensei que vinha almoçar e afinal ainda estou aqui" e outras que tais. 

Passado o que pareceu uma eternidade, o Vasco lá teve uma ideia de génio. "Será que o Uber Eats entrega no Carvoeiro?" . E não é que entregava mesmo? E foi assim que se inaugurou uma nova era na observação de aves nacional. Passado meia hora lá apareceu um estafeta. "Algum de vocês é o Vasco?" . Devia ser da fome, do local, ou da situação em si mas, foi das melhores refeições de junk food que comi na minha vida. Não fossem os momentos de bullying por parte dos meus colegas e tinha sido um almoço quase perfeito.

Só faltava o café. O Pedro sugeriu o do outro lado da estrada. Escusado será dizer que só eu e ele é que lá fomos. O Pierre e o Vasco lá continuaram de castigo. Quando voltámos percebemos que, afinal, eram eles que tinham tido razão. Nesse intervalo passou mais uma torda-anã, que ambos conseguiram ver. Não há evidência mas eu acredito neles. É como diz a anedota, para sair o totoloto nós também temos de fazer alguma coisa. Por exemplo, jogar. 

E juro que foi mais ou menos assim que as coisas se passaram. Foram cinco Alle Alle em três dias no Carvoeiro. Claro que há sempre outras histórias no meio da história, mas isso fica para as conversas de café.

#canaldoxofred


 

 

25 maio 2022

O Ruivo do Alvor

Alvor, 21/04/2022

Os tempos difíceis e de pouca esperança duram e duram e duram. Semanas transformaram-se em meses, que se transformaram em anos. Sai Covid, entra a guerra e a inflação. O novo normal é muito difícil de aceitar como normal. 

Borrelho-grande-de-colar-ruivo (Charadrius leschenaultii)

As pessoas passaram a viver mais no presente. Terá sido por isso que, chegados a Abril de 2022, depois de uns tempos sem feriados, houve uma debandada para o Algarve entre os dias 15 e 25. Páscoa e 25 de Abril em fins de semana seguidos eram ouro sobre azul. Uma oportunidade única de, apenas com cinco dias de férias gastos, se usufruir de 11 dias de descanso. Se a isto, juntarmos o fim da obrigatoriedade do uso de máscara, estavam reunidos os ingredientes para um cocktail explosivo e mais uns dias de inferno lá em baixo. 

Seguindo a minha tradição, nesses dias fiquei por casa. Lisboa torna-se um local mais agradável, onde há lugar em qualquer restaurante e se consegue andar tranquilamente por quase todo o lado. 

No Reino dos Algarves, mais gente significa que há mais observadores, o que implica que pode haver mais descobertas. 

Vamos ao que interessa, ou seja, à história do Ruivo. No Domingo, 17 de Abril, o Paulo Caseirito, observador de aves ainda não muito conhecido pela tribo, foi ao Alvor dar uma volta. É um local simpático e de acesso fácil. Tem um circuito bem marcado e plano, onde podem ser observadas muitas aves dentro dos tanques das salinas, uns abandonados, outros nem tanto. A volta terá corrido normalmente, tendo observado as aves normais para a área e colocado a lista normal na plataforma mais usada cá no burgo. Não saiu alerta nenhum, para o ciberespaço, uma vez que essa lista só tinha aves comuns. Entre as aves comuns observadas estavam um, e apenas um, borrelho-de-coleira-interrompida (charadrius alexandrinus). Há detalhes, como este, que são importantes. E isto é tramado, porque o diabo esconde-se nos detalhes.

Passados três dias, já na quarta-feira dia 20, o observador Caseirito resolveu inserir uma foto do tal "alexandrinus" noutra plataforma da moda, o iNaturalist. Nesta plataforma podemos ir explorando as fotos inseridas por outros e ir dando as nossas sugestões de identificação ou ir confirmando as alheias. O borrelho mais famoso dos últimos tempos estava lá inserido como um vulgar alexandrinus, com a respectiva foto. Já havia, inclusivamente, quem tivesse confirmado essa identificação. Este registo estava destinado a tornar-se mais um registo sem história.

O pessoal acotovelava-se no caminho estreito
Foto Susana Almeida



Mas o destino tem coisas curiosas. Fosse por sorte, por acaso ou outra razão qualquer, um dos observadores Portugueses mais conhecidos - Rafael Matias - cruzou-se com a foto, e o resto é história. Ficou com a pulga atrás da orelha, pediu mas fotos e já está. Qual Alex, qual quê. O que estava no Alvor era nem mais nem menos do que um borrelho-grande-de-colar-ruivo (Charadrius leschenaultii), o Ruivo. Ora, o Ruivo é um registo tão anormal que era a primeira vez que alguém via um ruivo destes em Portugal. 

Quando a notícia chegou aos fóruns especializados, já a noite de quarta-feira ia bem adiantada. Estava de pijama quando vi a foto e tive o baque do costume no coração. A sonolência habitual, em frente à televisão, desapareceu num ápice. Por muito que tentasse ver um borrelho normal na foto, não consegui. A identificação estava certa e isso queria dizer que tínhamos raridade no Alvor. E agora?! 

Ainda me deitei por uns minutos mas, a cabeça não parava. Resolvi analisar os dados da localização e ver exatamente onde o bicho tinha sido avistado e onde havia de estacionar o carro, caso tivesse de lá ir. Deitei-me outra vez. O sono não aparecia e fui tendo uma conversa comigo próprio:
Já lá não deve estar, de certeza. Foi domingo, e hoje já é quarta. É o mais certo. Pois é. Não está mas, se estiver, vou lá no fim-de-semana. Pois, mas, no fim de semana é arriscado porque já passaram muitos dias. O melhor seria ir o quanto antes. Pois é. Mas sem notícias não vou, que é um risco gigantesco. 

O sono tardava em aparecer e, antes de adormecer, já tinha decidido. Se houver notícias, vou amanhã. Meto um dia de férias e vou. É seguir a máxima dos arroladores ingleses, "You just get up and go!".

Borrelho-grande-de-colar-ruivo (Charadrius leschenaultii)
Primeira aparição em voo
Foto Rui Pereira

No dia 21, quinta-feira, acordei cedo. Estava a contar à Sandra os planos da  pólvora, e a acabar de dizer que muito provavelmente o Ruivo já teria seguido caminho quando, por volta das 8h, surge a mensagem do Lars Gonçalves "Estou a vê-lo agora!". A foto com a evidência apareceu logo de seguida. 

Ora bolas! Tínhamos conversa. A situação estava prevista e por isso o pânico não se instalou. Agora era "só" ir para baixo e ver o bicho mas, como ir sozinho é chato, comecei uma ronda de contactos. Ao fim de poucos minutos era aparente que havia equipa, o que era bom mas, só iríamos conseguir sair depois das 11h o que já não era assim tão bom. O último a chegar foi o Paulo Alves, que era quem vinha de mais longe. Quando chegou ao ponto de encontro já eu, o Vasco Valadares e o Pedro Ramalho estávamos no café. Era tudo à grande e sem pressas. Seguimos para baixo, com a habitual paragem na área de serviço tradicional, que com o karma não se brinca. Aproveitámos e comemos qualquer coisa, para enganar a fome. A tarde ia ser longa. 

Chegámos ao Alvor ainda não eram duas da tarde. Obviamente que o bicho não estava à vista. Tinha voado logo de manhã para o estuário. As coisas não iam ser fáceis. O Departamento das Facilidades não costuma ser o meu, infelizmente. No local encontrámos mais dois sofredores que também tinham vindo de Lisboa, o Rogério Rodrigues e o Rui Pereira. 

Depois da troca de impressões dos primeiros instantes, o grupo dividiu-se. Uns ficaram perto do local do último avistamento do Lars, outros foram andando à volta do tanque onde o Ruivo tinha sido visto de manhã. Eu optei por ir ver umas centenas de metros de vaza a norte, no estuário, perto do local do avistamento inicial do Paulo Caseirito. A maré estava praticamente vazia. A minha teoria era tão boa como outra qualquer, "Vai comer na vaza ao estuário e vem para o tanque na maré cheia", pensei. 

O Ruivo vem ver o que se passa

Avistaram-se algumas limícolas mas, nada ruivo. Optei por voltar para trás quando o caminho ficou bloqueado. Vim lentamente, a ver tudo o que mexia. Não consegui transformar nenhum dos maçaricos, borrelhos ou pilritos em qualquer coisa com colar ruivo, e não foi por falta de esforço. Passados uns minutos já estava outra vez com o Vasco, que tinha ficado num dos vértices do tanque. O resto da malta estava em parte incerta. 

Eram 15h36 quando começo a ouvir um som estranho, familiar e desconhecido ao mesmo tempo. Tri-tri-tri-tri-tri, sem parar. "O que é isto? O que é isto?", "É uma chilreta", diz o Vasco. "Parece mas é uma perdiz-do-mar.", disse eu. Lá consegui perceber de onde vinha o som e pôr os binóculos em cima do pontinho no céu. Tri-tri-tri-tri-tri, continuava ele. Quando ficou mais próximo, percebi que nem chilreta nem perdiz. Era uma limícola, género borrelho, e com asa mais comprida do que o normal. "Tens a câmara à mão? Acho que é o bicho!". O Vasco estava a segui-lo no telescópio e não conseguiu tirar a câmara a tempo. Isto não dá para tudo. Continuei a seguir o Ruivo algumas dezenas de segundos, até o perder de vista no lado oposto do tanque. Só aí é que baixei os binóculos. Senti a adrenalina a correr nas veias. Estava feito, pensei. A pouco e pouco o alívio foi-se instalando. 

A viagem não tinha sido em vão. Agora, era seguir para bingo, ou seja, ver se conseguíamos mais qualquer coisa. Fotos não tinha, nem o Vasco. Vi que o Pedro, o Rogério e o Rui estavam uns duzentos metros mais à frente. Seguramente também teriam visto o espetáculo. Liguei para o Pedro a perguntar. Notava-se bem a excitação na voz. "Eh pá, o bicho passou-nos por cima!". Não me lembro do resto mas, a conversa foi curta. Já estávamos a caminho do ponto aproximado onde o Ruivo tinha pousado quando me lembrei de ligar para o Rogério, a perguntar se por acaso do lado deles tinham conseguido fotos. "Sim. temos fotos razoáveis do bicho em voo!". Impecável, pensei. Com evidência é sempre melhor e um avistamento com evidência vale por dois. Ainda não eram quatro da tarde e já podíamos vir para cima.

Borrelho-grande-de-colar-ruivo
Primeira aparição em voo
Foto Rui Pereira

Entretanto, o local estava a ficar mais concorrido. O pessoal do Algarve estava a sair do trabalho e começava a aparecer. Fomo-nos espalhando pelo circuito à volta do tanque. Avancei até ao local onde pensei ter visto o bicho a pousar mas, não o consegui vislumbrar no emaranhado da vegetação. Voltei para trás e juntei-me ao pessoal que estava junto ao parque de estacionamento. Ninguém dava com o bicho. Às vezes passava também o ocasional grupo familiar de turistas muito espantado com a movimentação pouco habitual na zona. Perguntavam e nós explicávamos. As caras já não são tão de espanto como eram há uns anos quando ouviam a resposta "estamos à procura de uma ave rara" mas, continuam a ter um pouco de riso à mistura. 

Já tinha passado mais de uma hora de busca infrutífera. Por volta das 17h30, estava junto ao local onde o Ruivo tinha feito a sua aparição inicial em voo quando, finalmente, vejo um dos grupos de busca a apontar as câmaras e os telescópios. Dois minutos de caminho e já lá estava. O pessoal acotovelava-se no carreiro estreito, com as máquinas a funcionar a todo o gás. O Ruivo lá andava, tranquilamente, no meio da vegetação, juntamente com uns "amigos" das espécies mais comuns. O laranja suave do colar e do barrete saltavam à vista. Pedi um dos telescópios emprestado por uns segundos e enchi o olho. Depois peguei na bridge e fiz os registos possíveis. Quando já não sabia mais o que fazer, troquei a bridge com a dslr do Vasco e tirei umas fotos com uma máquina a sério. 

O Ruivo come uma minhoca

Foi interessante ver os resultados de uma e de outra, bridge e dslr. Percebi que tinha feito a aposta certa quando escolhi o material ao sair do carro. Quando a distância é muita, os registos são sempre fracos, mas os menos fracos são, normalmente, os obtidos pelas superzoom. Foi com isso em mente que escolhi deixar a dslr no porta-bagagens. O telescópio também lá ficou mas, esse foi sobretudo por uma questão de peso e de poupar as costas, que a idade não perdoa. 

Voltando à vaca fria, o pessoal já estava mais na conversa do que na observação. Passava pouco das seis da tarde quando resolvemos dar o evento por encerrado e ir andando para os carros. De barriga cheia custa sempre menos. O pessoal da zona foi saindo, com a conversa típica do "Tenho de ir para casa!", "Tenho de ir buscar os miúdos!" e "Tenho de ir fazer o jantar!". Nós, que tínhamos vindo de mais longe, pensámos que não merecíamos ir para cima sem o devido repasto. Ainda era cedo mas, podia ser que estivesse alguma coisa aberta. Não esquecer que, no Algarve, os restaurantes muitas vezes seguem os horários de outras paragens, mais a norte da Europa, onde se janta a horas do lanche. Como quem procura sempre encontra, com a ajuda dos nativos Lars e Susana acabámos por jantar perto, num tal Mula Cheia. O sabor foi o do costume nestas circunstâncias - o do triunfo. Para mim foi ainda mais especial, porque foi a primeira vez que tive o prazer de ter o Lars e a Susana como companhia a uma refeição. Oxalá isso se repita por muitas vezes. 

Seguimos para Lisboa já tarde, e chegámos ainda mais tarde, mas não ouvi ninguém a queixar-se no caminho. Não há muitos dias assim...

Ria de Alvor. A Natureza é muito bonita.
Foto Susana Almeida

Epílogo: 

O Ruivo não voltou a ser visto depois desse dia, malgrado os insistentes esforços de muitos observadores na sexta, e no fim de semana. Está mais que visto que a máxima dos colegas britânicos tem toda a razão de ser. "You just get up and go!". 

Resta-me agradecer à Susana Almeida e ao Rui Pereira as fotos que ajudam a ilustrar esta crónica.

#canaldoxofred

21 dezembro 2021

Magia nas Astúrias

Astúrias, Novembro de 2021

A coruja-das-neves (bubo scandiacus) é uma espécie de santo graal para qualquer observador de aves europeu. Faltam adjetivos para descrever essa ave do Ártico, branca de olhos amarelos. A juntar à imponência, a dificuldade de a ver é enorme, mesmo indo à sua casa na zona ártica da Noruega, por exemplo. A coruja do Harry Potter é mágica e desaparece com muita facilidade.

Fui alimentando o sonho de um dia a conseguir observar e, inclusivamente, cheguei a combinar com um amigo uma eventual ida aos Açores, caso aparecesse uma por lá. E aparecer, até aparece uma de vez em quando, leia-se de dez em dez ou quinze em quinze anos. Ou seja, quase todos os dias.
Fosse como fosse, a verdade é que os anos foram passando e a oportunidade nunca se proporcionou.

Coruja-das-neves (bubo scandiacus)

A minha história das corujas-das-neves das Astúrias tinha começado há mais de uma semana, na segunda-feira dia 8 de Novembro. Eu é que ainda não o sabia. Desde essa altura, nada mais nada menos do que 3 indivíduos foram avistados na província. Dois machos e uma fêmea, todos jovens. Sabe-se lá como conseguiram chegar à Península mas, a verdade é que estavam cá. Um deles morreu logo ao segundo dia, apesar de ter sido levado para um centro de recuperação. Os outros foram aparecendo aqui e ali, mas sempre de forma relativamente fugaz.

Foi só no domingo, dia 14 de Novembro, que os observadores espanhóis tiveram um contacto prolongado com o macho sobrevivente, que se deixou observar de forma tranquila, horas a fio. O problema foi que, desde esse domingo, as notícias desapareceram por completo. 
Do meu lado, fui seguindo o acontecimento à distância mas também me fui esquecendo a pouco e pouco das corujas, e das Astúrias.

Como já tem acontecido noutras ocasiões, nisto da passarada as coisas raramente são simples. Tudo se descontrolou mais uma vez no dia 17, quarta-feira. Nesse dia reaparecem o macho e a fêmea, sendo que esta última estava num local bastante acessível - o Cabo Peñas - e permitia observações de alto calibre. Alto calibre, leia-se, de um a cinco, cinco. No dia 18, quinta-feira, manteve-se por lá, e as fotos e vídeos começaram a aparecer. 

Não me lembro do que sonhei nessa noite mas, a verdade é que na sexta, dia 19, acordei a pensar na coruja das Astúrias. Para ir a esta nem era preciso apanhar avião. São oito horas de caminho mas, o que é isso para quem persegue um sonho?  Comecei a andar às voltas, de um lado para o outro, com bicho carpinteiro. Já não conseguia pensar em mais nada. 

Coruja-das-neves (bubo scandiacus)

Como os amigos são para as ocasiões, resolvi contactar um amigo das Astúrias, que tinha estado no centro desta tempestade e que conhecia todos os detalhes. A resposta foi rápida e decidida. "Estão a vê-la agora mesmo!". Mandou-me de seguida a coordenada e o grupo de WhatsApp onde se trocavam informações sobre o tema do momento. Eu ainda estava indeciso. "Go for it!", disse-me ele. As desculpas para não ir estavam a acabar rapidamente. 
Liguei para a minha melhor metade e contei-lhe o que se estava a passar. Ah e tal, acordei a pensar na coruja. "Queres ir lá?", perguntou-me. "Não sei. Para já estava a pensar na vida". E lá continuei a hesitar a manhã toda. 
Por volta da hora de almoço, voltei a ligar-lhe. A primeira frase que ouvi foi um "Já meti a tarde!". Não havia hipótese. Tinha mesmo de ir às Astúrias.


Por volta das cinco e meia da tarde fizemo-nos ao caminho. O plano era simples, se é que há planos simples para estas coisas. Dormíamos a meio e, no dia seguinte, o mais cedo possível, avançávamos para o destino final e para o encontro com Destino. Para por a adrenalina a fluir, ao anoitecer surgiu a notícia de que a coruja tinha voado. "Ha salido, se ha ido sobre el mar paralelo al acantilado hacia el NE". Ora bolas! Ainda só íamos com uma hora de caminho. Era mais que óbvio que isto não ia ser fácil. 

A cabeça continuava às voltas. Voou mas, será que voa todos os dias? Será que volta? Será que estou a fazer um passeio à Nossa Sra. da Asneira? Ninguém sabia. "Mañana lo veremos.", diziam no grupo. Também não os vi muito alarmados com a notícia da coruja ter levantado ao anoitecer. Fiquei com uma réstia de réstia de esperança. 
Ainda pensei aguardar a meio por notícias e só avançar para o último troço se houvesse fumo branco. Ao jantar, discuti o tema com a Sandra e, rapidamente percebemos que não seria possível essa abordagem, devido à distância que ainda nos faltava. Três horas e meia implicavam que era impossível reagir rapidamente. "Já estamos aqui, temos de ir até ao fim!" disse ela, decidida. Percebi que também estava muito entusiasmada com a perspetiva de ver aquele bicho.

A coruja na escarpa.

A noite foi mal dormida. A incerteza e o risco do dia seguinte não me saíam da cabeça. Ainda era de noite quando saímos do hotel e fomos ao encontro do sonho.
Faltava ainda um pouco para o nascer do sol quando começou a agitação no grupo do WhatsApp. Já está alguém no Cabo Peñas? Já a viram? 
O suspense nem durou meia hora. Por volta das oito alguém diz que o bicho já está localizado. 
A esperança renasceu a toda a velocidade. Ainda estava por lá. Uhu! O carro encheu-se de júbilo. É acelerar a toda a velocidade e, dito isto, até aumentei mais dez quilómetros a velocidade programada no cruise control. Velocidade sim mas, dentro das regras, que as multas em Espanha são caras e eles cobram-nas mesmo.
Como isto de andar atrás dos bichos é uma montanha russa, tinham passado apenas dois minutos quando alguém diz que um peregrino a tinha espantado e que ela tinha voado. Ora bolas! Mais dois minutos e dizem que tinha pousado no empedrado do costume. Não há coração que aguente. Pouco passava das nove quando as coisas acalmaram. Mandaram a coordenada de onde se podia observar, juntamente com uns conselhos para disciplinar a malta, e pronto. 
Olhei para o GPS. Já "só" faltavam duas horas e pouco para chegar. 
Foram bastante longas estas duas horas. A natureza é muito bonita, sobretudo a partir do momento em que entramos nas Astúrias mas, eu queria mas é ver o bicho. Curiosamente, o que custou mais foram os últimos cinco quilómetros. Uma estrada cheia de curvas onde apanhámos um molenga à frente. Impossível ultrapassar. Raio do homem!

Ainda no carro, começámos a ver o mar e a zona do farol. Cerca de um quilómetro antes, começámos a ver movimentações de pessoal com binóculos e telescópio um pouco por todo o lado. Um pouco mais perto, começa a vislumbrar-se a longa fila de carros estacionados. Na minha cabeça, imaginei que pudessem lá estar umas cinquenta pessoas. Qual cinquenta, qual quê. Só carros eram mais de trezentos. Comecei a pensar na vida, e onde ia estacionar. Que todos os problemas fossem estes. Foi só uma questão de nos irmos afastando do ponto quente, e a umas centenas de metros lá conseguimos arranjar um lugar.

"As veces la cabeza asoma por allí."

Eram onze horas, mais coisa menos coisa. A adrenalina aumentava a cada segundo. Saímos do carro e levámos tudo o que pudemos, incluindo a água e a pouca comida de que dispúnhamos. 
Começámos a caminhar calmamente na direção que parecia ser a certa, ou seja, para onde toda a gente se encaminhava também. Nestas ocasiões o melhor é mesmo ser "Maria vai com as outras". Menos de cinco minutos depois entrámos no caminho de acesso ao ponto que tinha sido enviado através do grupo há umas horas. Finalmente via-se a escarpa em todo o seu esplendor. O ponto mais setentrional das Astúrias era ali. Era um cabo como outro qualquer cabo escarpado. Quer dizer, igual, igual, não era. Por ali, algures, estava uma coruja-das-neves. Seria este o dia?

Já com os nervos a darem sinal, contemplámos o panorama geral. A dimensão do arrolamento atingiu-nos em cheio na cara. O facto de ser o bicho que é, estar num local acessível, ter sido divulgado em tudo quanto era fórum da especialidade e, cereja no topo do bolo, ter aparecido na televisão nacional, deu nisto. Ficámos em choque. Estavam, à vontade, umas quinhentas pessoas na zona. Parecia o Colombo num sábado à tarde, antes da pandemia.

Até havia uma fita de plástico, daquelas da polícia, para limitar a aproximação à escarpa, colocada pelo guarda da natureza lá do sítio.

Reparámos que a multidão estava dividida em dois grandes grupos. O da esquerda e o da direita. Só mais tarde compreendemos que aquela divisão não era arbitrária. As castas deste pequeno mundo das aves nem sempre vivem em harmonia. Do lado esquerdo estava o pessoal das câmaras e, do direito, o pessoal dos telescópios. 

O molho da direita (observadores)

A divisão era clara e tínhamos de optar. Fomos para o molho da direita. Tivemos de procurar um buraco onde houvesse visibilidade para o local da escarpa onde, supostamente, a coruja estaria. 

Lá nos instalámos, na segunda ou terceira linha. Não era o ideal mas, pelo menos, tínhamos alguma visibilidade. Da coruja nem sinal. Comecei rapidamente a tentar perceber o que se passava. Ah e tal, viemos de Lisboa, a coruja está exatamente onde? 
  -Pues, hombre, vez aquella piedra? As veces asoma la cabeza por allí. 
Ato contínuo, o nosso interlocutor mostra-nos uma foto onde teoricamente se via uma bocado da cabeça do bicho por uma nesga entre duas pedras. 
  -Estás viendo? Aqui se puede ver un poco de la cabeza.
As pedras vi bem. A cabeça é que não. Optei por acreditar e apontei o telescópio para o local aproximado que ele me tinha mostrado no ecrã. O que havia mais por ali eram pedras e tivemos de confirmar. 
  -Puedes verificar si es este el sítio? 
  -Pues si, hombre! 
  -Muchas gracias! 
O espanholês a funcionar na perfeição. 

Agora só faltava aparecer a estrela do momento. Mais uma vez tivemos de nos instalar no conforto de um lajedo à espera do Destino. Espreita no telescópio, espreita nos binóculos, espreita no WhatsApp. Ninguém dizia nada lá no grupo.       -Saes hace cuando tiempo no se vê? 
   -Pues, hombre, hace mas de una hora, ya!
É assim a vida. Facilidades não costuma ser comigo. Fui aceitando a pouco e pouco que a coruja, como todos os bichos, haveria de fazer o que muito bem entendesse. Se quisesse aparecer, nós cá estaríamos. 
Pelo menos ela está cá, pensei. Já estive em situações piores e até mais longe de casa - ver Especial nos Mosteiros

Os minutos foram passando e a conversa foi pouca. Apesar de uma ou outra troca de impressões ocasional com os nuestros hermanos, também se percebeu rapidamente que a tensão era gigantesca. O bicho ia tardando em reaparecer. Uma da tarde, já comia qualquer coisa, a sandes e as poucas barras que tínhamos foram desaparecendo rapidamente. Lá para as duas já só tínhamos água. E o raio do bicho não aparecia. Não arredámos pé, não fosse o diabo tecê-las. O sacrifício impunha-se. A dada altura perdi a vergonha e cheguei a deitar-me, com a mochila a servir de almofada, para aproveitar o sol e dar descanso às costas. Não sei se acharam curioso ou uma boa ideia mas, a verdade é que passado uns minutos vi um vizinho a copiar-me. 

Visão do interior do grupo dos fotógrafos

Eram cerca de duas e um quarto quando se houve uma voz feminina lá atrás a dizer aos gritos que a coruja tinha voado para o lado oposto à nossa posição. Começou o sururu. Tudo a olhar uns para os outros com incredulidade. Seria possível? Quinhentas pessoas ali e ninguém tinha dado por isso? Mas ela insistia. O não sei quantos ligou-me agora dizer que ela voou. Ninguém se mexia e, como ninguém se mexia, mexeu-se ela e desapareceu rapidamente por entre a multidão aos gritos. 
  -Voou! Voou! - ia dizendo, tresloucada.
O caos podia ter-se instalado mas, a verdade é que ninguém mais se mexeu. Pelos vistos ninguém acreditou. Encolhemos os ombros e continuámos a trabalhar, que é como quem diz, a olhar para os dois ou três metros de pedras que o telescópio tinha na mira. Coruja é que nada. 

Foi por volta das duas e meia que se ouviu um clamor. 
  -Está ali! Está ali! Está à vista! 
Vi-a nos binóculos quase de seguida, com o coração aos saltos. Ouço a voz da Sandra, ao meu lado, com uma emoção que raramente lhe vi nestas ocasiões. 
  -Iiiiii! Tem uma cabeça enorme! Pensei que fosse do tamanho das pedras ao lado, mas é muito maior!
A cabeça era gigantesca e, para já, o que se via era apenas a cabeça. Tomaram muitos!
Dei por mim a pensar que a viagem não tinha sido em vão e que tinha à minha frente uma das aves da vida. A emoção ainda começou a dar sinal mas, rapidamente voltei a concentrar-me em desfrutar do momento. Havia de ter tempo de sobra para processar o evento.
Fomos filmando e tirando umas fotos, apesar da distância não ser a ideal. Ainda tentei dar a volta ao penhasco, e ir para o lado dos fotógrafos mas, uns vinte metros para a esquerda o bicho deixava de se ver. Pelos vistos o clamor que tinha ouvido era só do lado dos observadores. Os fotógrafos ainda não tinham tido sequer um vislumbre. 

O molho da esquerda (fotógrafos)

A cena mais hilariante foi ouvir um dos meus vizinhos contar, no gozo, a um amigo, a história da mulher enlouquecida que tinha gritado que a coruja tinha voado uns minutos antes. Disse cobras e lagartos da sujeita, e com razão. Quando olho para trás, vejo-a a olhar para ele a abanar a cabeça. Ainda bem que os olhares não matam.

Lá continuámos a encher a barriga com a visão inaudita, durante mais de uma hora. Telescópio, binóculos, bridge e dslr, tudo a trabalhar em pleno. 
De repente, ouve-se novo clamor, mas do lado dos fotógrafos. Era a coruja que tinha resolvido subir uns degraus e começava a mostrar-se em todo o seu esplendor.
Resolvi vestir a pele de fotógrafo e ir lá para a molhada. Já que estava ali...
Se do lado dos observadores era difícil arranjar um espaço com visibilidade, no lado dos fotógrafos era quase impossível. Coladas à fita de plástico estavam umas cinco filas, praticamente ombro a ombro, de pessoal com todo o tipo de câmaras. Se alguém se mexia dez centímetros, havia logo outro alguém a protestar. Face ao panorama, coloquei logo a máscara, não fosse o diabo tecê-las. Está bem que era ao ar livre mas o seguro morreu de velho. Acabei por ter a sorte de encontrar um fotógrafo que tinha um tripé baixo e que estava quase sempre debruçado. Ou seja, mais de noventa por cento do tempo, eu tinha a vista desimpedida. Coloquei-me atrás dele e comecei a disparar. Realmente, dali era uma visão do outro mundo. O céu azul com o sol de fim de dia. O mar lá em baixo, a rocha amarela e uma coruja branca enorme a olhar para nós, imperturbável.
Melhor era impossível. 
Tirei centenas de fotografias. Se é para ser fotógrafo, tem de ser a sério. Ela foi olhando, compondo as penas, incluindo as das patas que neste caso são forradas, tipo pantufas. A adaptação ao Ártico é evidente. Imagino que para ela, nas Astúrias, estava um calor de sufocante. Quando fiquei satisfeito, resolvi sair daquele aperto. Já sabia, pelo WhatsApp, que a Sandra tinha estado o tempo todo a filmar, e que entretanto se tinha colocado entre os dois grandes grupos. Fui ter com ela. 

As pantufas nas patas

A visão dali também não era má, e tinha a grande vantagem de não termos praticamente ninguém ao lado. Éramos apenas nós e mais um casal de asturianos.
Continuámos nas filmagens e na conversa. O sol ia descendo e a luz era cada vez mais fraca. O sonho de conseguir uma foto em voo, com boa luz esboroava-se a pouco e pouco. A última nesga do sol desapareceu no horizonte, e o bicho ainda estava, calmamente, no penhasco a olhar impassível para a multidão.

Foi quando já só se via a silhueta recortada contra um céu antracite que, de repente, ela resolveu ir à sua vida. Levantou e reparei, espantado, que vinha precisamente na nossa direção. Ainda tentei que a máquina registasse qualquer coisa mas, esta não é lá muito boa a focar no escuro. Baixei a máquina e limitei-me a apreciar o espetáculo. Passou a uns dois metros das nossas cabeças. Com o coração a bater forte, observei a envergadura impressionante e o voo silencioso. Vivi cada segundo do que se estava a passar em êxtase.
 
Das centenas de pessoas no local escolheu-nos a nós, os Tugas lá do sítio, para se despedir. Há coisas sem explicação e é melhor nem pensar muito nisso.

Epílogo:
Desde este sábado memorável e até ao dia de hoje, a coruja só foi vista por mais duas vezes, de forma fugaz, e já a mais de 100km de distância do Cabo Peñas. Apenas mais um punhado de observadores teve a sorte de a conseguir observar. Ou seja, foi uma sorte monumental o nosso avistamento, precisamente no último dia em que esteve no cabo mas, a sorte protege os audazes.