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27 maio 2018

Um sonho feito de Lince


04/01/2017
Lince na Andaluzia

O Lince-Ibérico é uma espécie emblemática para qualquer entusiasta da fauna. Para um português, ainda mais. Faz parte da nossa identidade, da mesma forma que o facto de saber o que é e onde fica a Serra da Estrela. 

Para alguém que viveu sempre numa grande cidade, parece quase inimaginável que um animal destes exista algures por aí, na Península.
Lembro-me, há já longos anos, de ver uma notícia no telejornal em que aparecia um lince que tinha sido capturado na Serra da Malcata. A história mencionava qualquer coisa como "biólogos conseguem provar que ainda existem linces na serra da Malcata". Não me recordo do ano exacto mas, para o caso ser posto dessa forma, o "gato" já estaria dado praticamente como extinto em Portugal nessa altura.
Penso que terá sido aí que nasceu o meu sonho de ver um lince. Nunca soube era como.
Só em 2012 me cruzei com a informação de que há locais na Península com possibilidades razoáveis de fazer um avistamento. Uma dica de um guia em Espanha, a consulta a um site da especialidade e, assim, se começa a formar uma ideia. 

Lince-ibérico - O primeiro avistamento - Foto Emili Casals e Carme Jurado
Sempre com férias a menos e objectivos a mais, apenas em Janeiro de 2017 conseguimos encaixar uns dias para esta demanda. A Serra de Andújar, a 700km de distância, seria o objectivo. Para maximizar as possibilidades, iríamos ser ajudados por um guia local. 
Dia 4, de madrugada, saímos de Lisboa. A viagem não teve história, apesar de longa. Chegámos ao destino, um hotel já na Serra, por volta da hora de almoço (portuguesa), ou seja, pouco passava da uma da tarde. O restaurante ainda nem estava aberto. Tínhamos começado a andar para a recepção e já o nosso guia, Juan Carlos, vinha na nossa direcção.
-Frederico?
Bolas, já não se pode andar incógnito em Espanha. Claro que a nossa matrícula Portuguesa ajudou na identificação. Logo nas primeiras frases reparei no seu sotaque Andaluz. Considero o meu Castelhano bastante razoável, mas o sotaque Andaluz é estranho. Falta sempre a última sílaba.
-Estão prontos? Podemos ir?
Hum... Almoço ou lince? Vamos ao lince.
O local de observação mais popular fica a cerca de meia-hora, por uma estrada em mau estado. O Defender do Juan não se queixou muito e, mais solavanco, menos solavanco, chegámos.
Estávamos no melhor local da península e na melhor altura do ano. Haveria realmente uma hipótese? Esta estrada ao longo da serra funciona como um anfiteatro para um palco fantástico. Na primeira semana de Janeiro está cheia de entusiastas a esmiuçar cada metro da imensa serra em redor. Tudo parecia ajudar mas, um lince é um lince. Felino, pequeno, raro e com uma camuflagem soberba.
No local conhecemos logo um casal de catalães muito especial, a Carme Jurado e o Emili Casals. Ao longo dos dias seguintes fizemos uma aliança Luso-Catalã e acabámos por ficar amigos.


 
Lince-Ibérico - No penúltimo dia conseguimos filmar um acasalamento

Começou a espera. Esquadrinhámos cada metro da serra imensa à nossa frente.
Não teria passado nem uma hora, ouviu-se atrás de nós um som rouco, esquisito, tipo um gato com o cio, mas mais forte. Vejo a cara de espanto do Juan Carlos, a virar-se para trás na direção do som. Mais uns segundos, e aponta "Ali!". Ainda demorei algum tempo a conseguir distingui-lo no meio das pedras e da vegetação. Aquela camuflagem é impressionante. A cerca de vinte metros, um grande macho descia calmamente a encosta. Parava, olhava, dava mais uns passos. A vegetação não mexia, e não se ouvia nenhum som. Ignorava-nos completamente. Parecia que não estávamos ali. Nunca mais me vou esquecer da sua postura sentada. A vinte metros. Como era possível? A visão enchia-me os binóculos. 


 
O que acontece quando dois veados encontram dois linces?

Continuou a descer e parecia que ia passar mesmo à nossa frente. A excitação aumentava. Vários companheiros da estrada, ao aperceberem-se da situação, começaram a aproximar-se do nosso grupo. Comecei a preparar-me para filmar. Já tinha una observação cinco estrelas, agora era a fase de tentar registar o evento.
De repente, quase na hora H, aparece um espanhol de cabelo comprido aos gritos e palavrões - estaria com inveja? - a verdade é que o lince resolveu desaparecer, para nunca mais ser visto. Fiquei furioso, mas nada comparado com os seus compatriotas, que quase o lincharam. Vim a saber mais tarde que o personagem já tinha fama por ali. Aquele aspeto de louco é inconfundível. 


 
Macho e fêmea -  Preliminares

A verdade é que o primeiro dia acabou com o sonho cumprido. Melhor não podia ter corrido. Quer dizer, poder podia, porque não fiquei com registo do evento. Mas é como alguém dizia "Tomaram muitos!". Devo ter sonhado com linces nessa noite.
Só nos dois dias seguintes é que nos apercebemos da sorte que tivemos. Foram 48 horas sem linces. E não foi por falta de esforço. Nem a lontra, nem os veados, nem as aves que vimos compensaram essa falta. 

Além da estrada já referida, tivemos também acesso a uma herdade privada que tem uma parceria com o WWF, com um projecto para a recuperação do Lince-Ibérico. Tem uma boa densidade de linces mas, com menos olhos - só cinco pares - é sempre mais complicado ter sucesso. Na manhã do quarto dia, era aí que estávamos na espera. Já sem os nossos amigos catalães, ou seja, só tínhamos três pares de olhos. Lá para meio da manhã resolvi sentar-me um pouco numa cadeira que lá estava. Esperar por esperar, mais vale esperar sentado. Mas, claro, nunca larguei os binóculos. Nem estava na cadeira há cinco minutos, quando vejo, ao longe, duas "chitas" a andar e sentar-se naquela postura triangular típica que vi nos documentários da televisão tantas vezes. Na minha cabeça era isso que estava a ver, mas qualquer coisa me dizia que o raciocínio não estava certo. Chitas ainda não há por cá, por enquanto. De repente faz-se luz. "Lince! Lince! Lince! Lince!". Era uma fêmea e uma cria. A resposta imediata veio de seguida. "Onde!?". Lá expliquei, com bastante dificuldade. A excitação era mais que muita. A minha, a da Sandra e a do Juan. Conseguimos acompanhá-las na sua caminhada durante uns bons dez minutos. 


 
A minha descoberta - Nela e Gema

Ainda a esta distância me lembro da adrenalina e do calor que senti com a descoberta. Imbatível! Melhor que ver, é ver um "nosso". Nunca me esquecerei da Nela e da Gema.
A partir daí, na tarde e dia seguintes foi um fartote. Nessa tarde, na estrada, duas ou três horas de observação de um par, que culminaram com uma cena de cópula. Tudo devidamente registado em vídeo. No dia seguinte, outro par observado durante pelo menos duas horas, também com vídeo.
Em todos estes encontros imediatos com este magnifico animal, o que mais me impressionou foi a sua capacidade de aparecer e desaparecer sem deixar rasto. Sem movimento da vegetação, sem som. Um autêntico fantasma. Isso e a tranquilidade com que os vi movimentar-se quase sempre. Como alguém que está em sua casa - e está mesmo. 
No final da aventura, dia 8, saímos de Andújar com o coração cheio. De lince e de novos amigos
"I'll be back!" 

Lince-ibérico - O primeiro avistamento - Foto Emili Casals e Carme Jurado

Resta-me agradecer ao Emili Casals e à Carme Jurado pelas fotos e amizade. Um dia cá vos aguardamos em Portugal. 
Podem ver alguns dos excelentes trabalhos deles em:

http://croniquesnaturalistes.blogspot.pt/

#canaldoxofred

07 maio 2018

Pardilheira, ou a Influência do George Costanza

01/05/2018
Pardilheira, ou a Influência do George Costanza 

Sempre achei a Pardilheira (Marmaronetta Angustirostris) um dos patos mais bonitos da Fauna Europeia. Talvez por me identificar com as "olheiras" bem escuras das faces - o rosto angustiado. 


Pardilheira (Marmaronetta angustirostris)
Desde 2011 que o tentava encontrar sem sucesso. Tudo começou com o exemplar descoberto pelo Rui Caratão nas salinas de Alverca, onde me desloquei na altura por duas vezes. Nos últimos anos, sobretudo no EVOA, apareceram alguns exemplares na Primavera. Como infelizmente só há uma Primavera por ano, aconteceu que em duas das vezes estava no estrangeiro em explorações da passarada. Quando fazia a tentativa, já não havia pardilheira para ninguém. Por outro lado, mesmo não estando fora, como por exemplo em 2016, ia ao EVOA e nesse dia elas não apareciam. Eram vistas nos dias anteriores e posteriores. Ao fim da sexta tentativa comecei a achar que tinha claramente ali um novo enguiço. Uma nova Némesis. 
Como tenho a teoria de que a primeira é sempre a mais difícil, aproveitei a minha viagem em 2017 à Andaluzia para ver Lince-ibérico e fui vê-las a Doñana. Mais uma lifer! Já só faltava vê-las em Portugal. Oxalá ficasse mais fácil. 


Pardilheiras - EVOA - O filme possível

Chegámos a 2018. Apontei para Maio para intensificar a busca. Como os bichos fazem sempre o que querem, resolveram aparecer dois exemplares no dia 20 de Abril, uma sexta-feira. Foi um dos guias do EVOA, o Jaime Sousa que divulgou a informação por volta das 16h. 
A conclusão a que cheguei foi de que iria lá no dia seguinte, sábado. Como membro, até solicitei o acesso antes das portas abrirem. Às 8h30 já estava no abrigo. Fosse da chuva - leia-se dilúvio - ou doutra coisa qualquer, pardilheiras não houve. 
Mais uma desgraça. A moral desceu em flecha. "Costumam estar vários dias. Desta vez, que pude vir no dia seguinte, nada! É sempre a mesma coisa!". A maldição continuava... 
No fim de semana seguinte fui dar uma volta à ponta da Erva e parei no EVOA para picar o ponto, leia-se tomar um café, e saber novidades. Não havia grandes notícias. Depois de um ou dois minutos de indecisão, resolvi não entrar dessa vez. 
Contudo, fui formando na minha cabeça a ideia de lá voltar no feriado de terça-feira. Apesar de ser feriado, era durante a semana. Podia ser que lá estivesse menos gente. Não se perdia nada, e a Natureza é muito bonita. Chama-se a este tipo de diligência "atirar o barro à parede".
Contudo, alguma coisa teria de fazer de diferente em relação ao habitual. Se as escolhas que tinha feito até ali não resultaram, teria de pensar noutras. Foi aí que me comecei a recordar de um dos episódios do Seinfeld, em que o meu personagem favorito, o George Costanza, por achar que as escolhas racionais de vida que tinha feito até ali nunca tinham resultado, resolve passar a fazer exactamente o oposto do que pensasse como certo em determinada circunstância. 
Assim, no dia 1 de Maio, resolvi fazer exactamente o contrário do que costumava  fazer para ver (ou tentar ver) raridades no EVOA.


Costumava ir de manhã? Pois desta vez iria à tarde. 
Entrei e lá estava a Andreia, tal como no dia 21. Como tinha falhado nesse dia, a pergunta óbvia surgiu de imediato :
  -Vem tentar ver as pardilheiras?
  -Vou mesmo!
Deixei a Sandra - minha arma secreta - no café e segui para o observatório da Lagoa Principal a 3km. Fui sempre atento, não fossem passar uns patos esquisitos a voar. Não. Só uns poucos patos-reais e um milhafre-preto.
Quando estava a entrar no observatório, recebi uma chamada de um amigo de longa data, com quem já não falava há uns tempos. Em vez de dizer que lhe ligava mais tarde, para me poder concentrar na missão, fiz exatamente o contrário. Estivemos a falar mais de dez minutos. E nem baixei muito a voz. Estava mesmo a aplicar a máxima do George Costanza. Costumava montar o telescópio e só depois abrir o postigo? Pois desta vez abri logo o postigo sem montar o telescópio. Eram mais ou menos 16h30. Espreitei com os binóculos. Aquilo estava para o vazio, como sempre nesta altura. Olhei para o local tradicional das pardilheiras e estavam lá dois patos a dormir. Só conseguia ver os peitos e, à primeira vista, pareciam reais, ou frisadas. A distância não ajudava. "Mais uma banhada!", pensei. "Bom, vamos lá montar o telescópio". Montei e espreitei. Vejo imediatamente o marmoreado nos flancos. Olhei várias vezes e continuei a ver o mesmo. Eram mesmo elas, as minhas Némesis do momento.
Tirei logo umas fotos. Mesmo fracas, já serviam de evidência. Mais um pouco e lá acordaram. Sim! Já se viam as olheiras extensas. Liguei à Sandra a fazer o relato.
Filmei, fotografei e fotografei e filmei. De um a cinco, quatro e meio. Só não foi mais porque estavam longe. "Há sempre um crítico". É curioso que estive sempre calmo e nunca desatei aos saltos. As vitórias têm mais piada quando se está acompanhado.


Resolveram voar em frente ao observatório e pousar num local fora de vista. Iriam voltar? 
Ainda lá fiquei um bocado, à espera. Passou um circus, que me pareceu uma águia-caçadeira. Apesar das limitações que têm as bridge, ainda lhe consegui tirar umas fotos em voo. Uns dias mais tarde, após estudo e algumas consultas, veio afinal a ser identificado como um tartaranhão-pálido, outra raridade (por enquanto). 
Chegou o grupo da visita da tarde. "Digo alguma coisa ou não?". Resolvi não dizer. Não estando os bichos à vista, também não gostaria que me dissessem algo como:
 -Estiveram aí as pardilheiras mas agora voaram e não estão à vista. 
Sei bem que é duro ouvir conversas desse tipo. 
Enfim, controlei-me e, além de não dizer nada, ajudei a guia a apontar uma ave ou outra. Claro, sempre com um olho no burro e outro no cigano, para ver se Elas voltavam a aparecer. 

Tartaranhão-pálido fêmea (Circus Macrourus)
Alguns minutos mais tarde lá aparecem outra vez a voar e aponto-as ao grupo. "Olha as pardilheiras!". Pousam no sítio do costume. "Não acredito!" diz a guia. Estava extasiada a olhar para os bichos. Para ela era uma lifer, e não descansou enquando não tirou uma ou duas fotos em digiscoping. "Para não dizerem que estou a inventar!". 
Partilhei o meu telescópio com quem quis ver, mas claramente os mais eufóricos eram eu e a guia que, vim a saber, se chama Sofia. Nisto da observação há vários níveis de desenvolvimento e envolvimento. No ínicio eu também ficava todo contente por ver um flamingo ou um camão. No primeiro ou segundo ano de observador vi o meu primeiro - e único até hoje - andorinhão-cafre, com o Simon Wates. Na altura ainda me faltava ver quase tudo. Vendo que eu e a Sandra não estávamos aos saltos, saiu-se com um "Acho que ainda não estavas preparado para ver isto!". E tinha razão. Um cafre vale bem mais que um papa-figos. As lifers não são todas iguais.
Mais uns minutos e o grupo foi andando. Eu ainda fiquei mais um pouco para mais uns filmes e umas fotos e um último olhar no telescópio. Quem espera oito anos tem direito a mais uns minutos. 
Cheguei ao edifício em triunfo. Já "toda" a gente - duas ou três pessoas - sabia. Não há mal que sempre dure! "Algum dia tinha de ser!", disse. A "Maldição do EVOA", como eu lhe chamava, tinha finalmente acabado, e logo com duas raridades duma vez. 
Confesso que o sentimento predominante que tive foi alívio. Mais do que alegria, alívio, com mais uma Némesis que desaparece. 

Obrigado George Costanza. 

 George Costanza does the Opposite

#canaldoxofred