Pesquisar neste blogue

27 julho 2018

Algarve 2018 - O Affinis do São Vicente

Algarve 2018
O Affinis do São Vicente

Já não me recordo da última vez que fui de férias para o Algarve em Junho. Seguramente há mais de vinte anos. Este ano teve de ser.
Inicialmente, vi a questão como uma fatalidade mas, a pouco e pouco, fui fazendo os meus planos da pólvora. Em vez da Cabranosa e das rapinas, teria de escolher outros alvos, e assim fiz. Comecei a pensar que seria uma boa oportunidade para rever aves que já não via há anos como o Andorinhão-cafre, o Solitário ou a Calhandrinha-das-marismas, por exemplo.


Andorinhão-pequeno (Apus affinis) - foto Nuno dos Santos

Para raridades, as expectativas eram muito baixas. Junho é tradicionalmente um mês mau para isso. Mas, não vou mentir se disser que tinha uma réstia de esperança. Nos últimos anos saí sempre feliz do Algarve e a tradição tem sempre alguma força, apesar de já não ser o que era, como dizia o anúncio. Talvez uma gaivina ou, já que entramos no domínio das impossibilidades, porque não um Andorinhão-pequeno (Apus affinis)? Junho é o mês com mais avistamentos. Imaginei-me a dar com ele por cima do passadiço dos Salgados numa saída matinal, de câmara em punho. Enfim, sonhos há muitos e a imaginação não tem limites.


As férias foram avançando tranquilamente, com visitas ao local patch conjugadas com alguns passeios mais compridos.
Este ano as coisas iam ser mais calmas... No Facebook fui dando um ou outro sinal de vida. Dia 12, quando demos uma volta com o Gonçalo Elias pelo Algarve interior, tivemos a sorte de ver três andorinhões-cafre. Um evento digno de nota, uma vez que na vida tinha visto apenas um e há já sete anos. Mesmo assim, achei que não se justificava iniciar mais uma série mete-nojo, como no ano passado. Limitei-me a postar um simples "Há sete anos que não via um destes."

Andorinhão-cafre (Apus caffer)
O problema foi que, logo no dia 13, o Algarve voltou a entrar na Twilight Zone.
O Guillaume Réthoré reportou um avistamento de um andorinhão-pequeno no Alvor e o caos começou a instalar-se. A notícia surgiu a seguir ao almoço, e eu segui direto para lá. De "certeza" que o bicho não se iria manter na zona mas, estando apenas a vinte minutos de distância "tinha" de lá ir. O Nuno dos Santos, sempre rápido, apareceu por lá por volta das 17h. Até às 20h vimos muitos andorinhões, mas não o que queríamos ver. Não fiquei muito afetado com o falhanço, porque a expetativa nunca foi muito alta. A minha teoria de que para ver esta espécie tem de ser o próprio a encontrá-la parecia confirmar-se. "Caso Affinis" encerrado, pensei.
Ou afinal, talvez não. No final desse mesmo dia, o Guillaume volta a reportar um Affinis, desta vez no Cabo de S. Vicente. E esta, hein? Parecia impossível. O "caso" não era assim tão simples e tinha de ser reaberto.

Dia 17, quando consegui outro dos objetivos das férias, o rouxinol-do-mato, coloquei mais uma nota no facebook - "Há cinco anos que não via um destes" - e preparei-me para acabar com tranquilidade mais um dia de férias. Não podia estar mais enganado! Nesse dia, o omnipresente Guillaume volta a ter um encontro imediato, o terceiro, desta vez na Fóia. Para compor o ramalhete, outro observador - Miguel Caldeira Pais - reporta outro Affinis no Carvoeiro.
O impossível tornava-se cada vez mais impossível. Quatro registos em cinco dias, sendo três do mesmo observador. Na altura até comentei num post que para ver um bicho desses bastaria andar o dia todo atrás do denominador comum, o Guillaume. Pelos vistos estes bichos seguiam-no, da mesma forma que os estorninhos seguiam o José da Jangada de Pedra.

Rouxinol-do-mato (Cercotrichas galactotes)

A minha cabeça parecia prestes a explodir. Eles estavam em todo o lado. Que confusão!
Onde ir e quando? Haveria mesmo um influxo de andorinhão-pequeno no Algarve?
Decidi não decidir. Dia 18 de manhã não fui a lado nenhum.
Mas, não podemos esquecer que a normalidade já havia sido ultrapassada há muito. Por volta das onze horas, o Georg Schreier dá a notícia de que estava a ver um Affinis no Cabo de São Vicente. Quinta observação em seis dias.
Curiosamente, em vez de ter um ataque cardíaco, começou a fazer-se luz. Segunda observação no Cabo implicava que a tentar qualquer coisa seria aí. Por outro lado, iria estar em Lagos por uns dias e chegaria lá depois de almoço. Os astros alinhavam-se.
Fiquei ainda mais convencido quando troquei umas impressões com o Nuno e percebi que ele tinha chegado à mesma conclusão. O raid seria ao Cabo. E ele estava otimista. "Hoje vai ser o nosso dia!", disse-me. "Vemos um hoje no Cabo e eu um amanhã na Ponta da Piedade!", respondi. Para otimista, otimista e meio.

Andorinhão-pequeno (Apus affinis)

A caminho de Sagres tentei manter a cabeça ocupada com outras coisas, para a ansiedade não levar a melhor. Mas confesso que perdi uns minutos a pensar no post que faria no Facebook, caso tivesse a sorte de ver o objetivo. Não tinha grandes expetativas, mas com tanto bicho na zona, a probabilidade era claramente superior a 0.

Cheguei por volta das quatro e meia e instalei-me junto ao farol. Havia algumas dezenas de andorinhões na zona mas, infelizmente, nenhum deles tinha branco nas costas. Lá para as cinco chegou o Nuno.
   -Já deste com o bicho?
   -Quase! - respondi.
Cerca das 17h30, na quinquagésima espreitadela, reparei que um dos andorinhões que estava mais alto no bando parecia ter um anel branco na zona posterior do corpo. Contudo, parecia muito estreito e diagonal, mais do tipo andorinhão-cafre. Na cabeça tinha o que já me tinham dito mais de uma vez, de que o uropígio branco do Affinis é um "barrão" muito conspícuo, e não uma "barrinha", como no cafre.Estava claramente esquecido do princípio que tento seguir, que é o de ver com os teus próprios olhos e formar a tua própria opinião. Os preconceitos não são bons nesta atividade.


Andorinhão-pequeno (Apus affinis)
Nunca larguei os binóculos, enquanto falava com o Nuno, que tentava encontrar o sujeito. Cheguei à brilhante conclusão de que esse bicho devia ter algo esquisito e branco nas patas. Nem me ocorreu que os andorinhões "não têm patas". A verdade é que o Nuno, que já tinha experiência com a espécie em Espanha, começou a olhar para a mesma zona e passado nem um minuto entra em transe. Qualquer coisa como "Peraí, que temos novidade! Peraí! Peraí! É o gajo! É o gajo!". Com a calma possível lá tentei encontrar a estrela, seguindo as indicações. "Está ali ao pé dos Melba!". Demorei uns segundos angustiantes mas lá o vi, finalmente. Ainda me veio à cabeça a história do abelharuco-persa, que foi referido como estando perto de umas ovelhas, em Castro Verde. Nessa zona há poucas, como se sabe.

A observação foi muito acima do expectável, pelo menos para mim. Prolongou-se durante uns minutos e culminou com uma passagem rasante junto ao nosso posto. O Nuno conseguiu umas fotos bastante razoáveis. Eu, só uns registos fracos. Ainda o descortinei uma segunda vez no meio do bando. Mais dois minutos de adrenalina. O Nuno estava completamente transformado, elétrico. Em vez da reserva e das poucas palavras do costume, estava eufórico e a falar pelos cotovelos. Assisti a um autêntico episódio de Dr. Jekyll e Mr Hyde.
Após mais uns minutos de busca infrutífera, com os ombros e as costas a doer de tanto olhar para cima, resolvemos fazer um intervalo. Descobri que, ao contrário do que pensava, as rulotes do Cabo de São Vicente têm alguma utilidade. Lá saiu mais uma imperial com sabor a triunfo e umas mensagens com foto do animal para os amigos. Tudo em nome da rápida divulgação, claro. A curiosidade na rulote era muita. Não é todos os dias que aparece lá pessoal a beber imperiais com grandes lentes e aspeto estranho. A senhora era bastante comunicativa.
   -Mas as fotos são para alguma revista?
   -São só para nós - respondi.

Andorinhão-pequeno (Apus affinis) - foto Nuno dos Santos
Reparei no nome da barraca ao lado, "The last sausage before America" e pensei que se aplicava também ao nosso caso. "A última raridade antes da América". A minha primeira no Cabo de São Vicente. Depois de uns minutos a saborear a vitória, com os ombros a doer menos, resolvemos ir ao Affinis round 2.
   -Bom, vamos trabalhar! - disse eu.
   -Trabalhar? Um trabalho como esse também eu gostava de ter! A tirar fotografias! - respondeu ela.

O crítico - ou neste caso a crítica - da zona estava encontrada. Mais meia hora de investimento acabou por não produzir resultados. O ar frio começava a aparecer e os andorinhões a desaparecer. Ouvia-se trovoada no mar. O dia estava feito e tinha realmente sido nosso. Pelos vistos é possível arrolar um andorinhão destes. Ou este bicho não seria o mesmo que o Georg viu umas horas antes? Quando pensei nessa hipótese comecei automaticamente a ouvir a música do genérico da Twilight Zone na minha cabeça (tininini tininini).

Depois de jantar lá fiz o post que tinha planeado a caminho de Sagres.
"Nunca tinha visto um destes!", com uma foto onde se via claramente um andorinhão "sem cauda" e com o uropígio branco.


Resta-me deixar aqui um agradecimento ao Nuno dos Santos pelas fotos e companhia em mais uma pequena aventura.

#canaldoxofred