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26 outubro 2018

Bodas de Prata, Socó de Ouro

21/10/2018
Bodas de Prata, Socó de Ouro

Depois da mítica juroviara-boreal de Esmoriz não ter dado sinal de vida na sexta 19, e sábado 20, o fim de semana perspectivava-se como normal, no sentido de não haver  nenhum bicho para arrolar. 
Confesso que até fiquei aliviado, uma vez que sábado à noite tinha o jantar comemorativo dos 25 anos de saída do Técnico, ao qual não queria faltar.

Socó-mirim (butorides virescens) - foto Carl Hawker
O Carl arriscou a vida, mas lá que ficou perto, ficou.
Assim, o sábado foi tranquilo e às 19h lá segui para o evento. Aquilo estava a correr bem e já ia a meio quando, caída do céu aos trambolhões, como sempre, aparece a notícia do Socó-mirim (butorides virescens) no Algarve. Mais uma primeira observação para Portugal Continental, mais uma ave filha do furacão. Foi o Simon Wates que enviou a bomba para o Facebook e ficou à espera que ela rebentasse. E não demorou muito.
A meio do jantar começam a chover mensagens e mais mensagens no messenger. Os meus antigos colegas começaram a aperceber-se que que eu estava desconcentrado e sempre agarrado ao telemóvel. Lá tive de revelar a razão e, por inerência, o meu hobby. À volta da mesa vi um misto de incompreensão, gozo e curiosidade nas expressões. Não liguei muito, uma vez que já começo a estar habituado.
O resto do jantar foi passado a combinar o domingo. Para mim iria começar à bonita hora das 4h45 da madrugada. Para outros, muito mais cedo. De Lisboa para baixo seria eu o condutor.
Mesmo saindo mais cedo do evento, cheguei a casa à 1h e deitei-me à 1h30. Se dormi, foi quase nada. Já acordei cansado, mas como era por gosto…

Socó-mirim - o vídeo

Fomos para baixo cumprindo a tradição. No carro íamos cinco - Flávio Oliveira, Paulo Ferreira, Pedro Ramalho, Matthias Tissot e eu. Um grupo de malucos, como de costume. Encontro no sítio do costume, conversa sobre os temas do costume. Na paragem do costume é que existiu uma nuance. Aquilo estava cheio de caçadores e íamos demorar mais tempo do que o costume. Ainda houve quem sugerisse voltar ao carro e parar na próxima área de serviço, mas foi prontamente apelidado de louco pelos outros, e a ideia foi abandonada de imediato. É preciso respeitar as tradições e em equipa que ganha não se mexe.

Por volta das 8h30 estávamos no local do acontecimento. Não fomos os primeiros, porque já lá estavam dois observadores algarvios, o Renato Bagarrão e o Pedro Caboz.
Rapidamente ultrapassámos a marca das 10 pessoas, juntando o pessoal que tinha vindo do Ribatejo. O circo estava a instalar-se rapidamente. Se não era o twitch mais concorrido de sempre, para lá caminhava.

Falei com o Renato e com o Pedro Caboz sobre possíveis locais onde poderia ter sido tirada a foto do dia anterior e transmiti a informação ao Paulo Ferreira quando estávamos os dois perto do sítio indicado. Ele rapidamente identificou o local exato. Olhou para a foto e depois para a vala à nossa frente. "Olha ali! Não estás a ver? Foi naquele pau que está ali!". Ficava do lado Leste da lagoa, do outro lado da estrada, por baixo dos omnipresentes eucaliptos. Era um princípio do princípio e já não faltava tudo.
Esquadrinhámos cada metro do local e redondezas. Da garça, nem sinal. Uma galinha-d’água que apareceu exactamente no tal pau ainda deu para assustar, mas infelizmente não a conseguimos transformar na sonhada garça. Será que estava escondida na vegetação alta? Estaria no Ludo? Estaria em Portugal? Estaria viva? 
As possibilidades são sempre infinitas.

Passámos a manhã espalhados e a procurar um pouco por todo o lado, mas sobretudo na margem da lagoa, a olhar para as ilhas de vegetação. Pela minha parte, passei a maior parte do tempo entre o abrigo e a zona dos eucaliptos. Esta estratégia tinha a ver com a minha expectativa de que ela aparecesse em voo, tal como tinha feito no dia anterior ao casal inglês que a descobriu. No abrigo, o campo de visão é o maior possível. Nos eucaliptos tinha a ver com o que chamei na altura de “crença do touro”, ou seja, no facto de acreditar que o bicho estaria algures por ali. 
As horas foram passando. Como não se passava nada e a sede apertava, resolvi ir buscar água ao carro. Para não voltar muito pesado, resolvi também deixar lá o tripé o que, mais tarde, se revelou ser um erro estratégico. Ainda por cima, aquele tripé nem pesa assim tanto. 

Socó-mirim (butorides virescens) - foto Carl Hawker
A manhã chegou ao fim. Passou-se o meio dia e nada de garça. O cansaço ainda não se fazia sentir, mas vinha a caminho. Se tivéssemos que ficar até tarde ia ser duro, já para não falar da viagem de regresso. Enfim, nada que alguém que ande nesta vida não conheça já de cor e salteado.
Por volta das 12h30 estava outra vez na zona dos eucaliptos, juntamente com o Matthias e outros. De repente, ele chama-me a atenção - “Olha!” - para uma ave em que passou em voo por cima das nossas cabeças, a uns cinco metros de altura. Era do tamanho de um garçote e escura. Vi-a de imediato e apanhei-a nos binóculos por alguns segundos. Não tive dúvidas de que era a bomba a fazer a sua aparição. Bum! Socó-mirim…check! 

Foi para a lagoa, e pousou quase em frente da matilha de twitchers que se tinha instalado na margem quase toda a manhã.  “Era não era?”, perguntou o Matthias. Eu respondi afirmativamente, enquanto fingia que corria para junto do pessoal. Fosse pelos nossos sinais ou gritos, ou por a terem visto também em voo, o caos estava instalado no local. O espaço era exíguo e as pessoas eram mais que muitas. 
Não a apanhei pousada, mas vi-a levantar e seguir em voo mais para a direita. Acabou por pousar no extremo leste do lago, já bem dentro do buraco 17 do campo de golfe. 
Foi tudo muito rápido e pensei que não existissem registos do acontecimento. Fiz a minha pergunta da ordem, “Não se ficou com evidência, pois não?”. O Renato saltou imediatamente, “Mas qual não há evidência?!”, e mostrou-me, na máquina, uma foto muito razoável da ave em voo. Assim sim, tudo nos conformes. Fiquei logo mais tranquilo.

A foto que o Renato Bagarrão me mostrou, ainda na máquina.
Evidência acima de tudo.
Acabámos por invadir o campo em força na zona do início do buraco, perante os olhares meio incrédulos, meio desconfiados de um ou outro golfista que ia aparecendo. Não estavam a gostar da brincadeira. Era aproveitar enquanto ninguém vinha correr connosco. 
O Carl arriscou a vida, ao ir para a zona exacta do bicho, a uns bons cem metros de distância, sujeito a levar com uma bola na cabeça ou eventualmente até em sítios piores. É que na cabeça sente-se a pancada e não se sente mais nada para sempre. O problema fica resolvido de vez.

Soube mais tarde, que dois golfistas acabaram por ceder à curiosidade e ir falar com o grupo, para apurar o que se passava. Quando lhes foi explicado que estávamos a ver uma ave que era a primeira vez que aparecia em Portugal Continental, acabaram, inclusivamente, por querer vê-la num dos telescópios disponíveis. E esta, hein?

Primeiro meio escondido, depois mais à vista. Toda a gente encheu a barriga com o bicho. E eram claramente mais de vinte pessoas, incluindo dois casais ingleses. Uma das senhoras até se emocionou quando soube que estava a ver uma "primeira para Portugal", segundo o Paulo Alves, que falou com ela e lhe explicou a situação. Esse detalhe não vi, mas lembro-me de ouvir parte da conversa. "Só viemos aqui porque estamos a ir embora e este ponto é próximo do aeroporto", disse ela. Há dias de sorte... 

Eu estava eufórico por um lado, mas irritado por outro, por não ter o tripé para filmar o socó com mais qualidade. Ou seja, em média estava normal, como diria um estatístico. Nunca se pode ter tudo. 
Depois de uns filmes e umas dezenas de fotos, resolvi ir rapidamente ao carro buscar o que me faltava. Eram só uns minutos, e podia ser que o bicho se mantivesse à vista até voltar. 

Socó-mirim (butorides virescens) - foto Carl Hawker
Quando voltei já vi a tropa toda a desmobilizar, sem olhar para trás. Já? Pensei. Inclusivamente tinham tirado a foto de grupo sem mim. É triste, mas é a vida. Os erros pagam-se, mas este até não foi muito caro. O que interessa é ver o bicho. 
Valeu-me o Lars que, quando publicou a foto no Facebook ainda me identificou nela como estando nas nuvens. E estava mesmo. Não é todos os dias que se vê uma ave destas, de encher o olho, e com uma observação 5 estrelas. 

Voltei ao campo de golfe, agora quase deserto. Só lá estava um fotógrafo alemão. 
“No. I still did not see the bird!”, disse ele. Realmente a ave estava outra vez meio escondida. Apanhei-a nos binóculos e apontei-lhe onde estava. Foi a minha boa ação do dia. Para socó-mirim tem de se seguir o código do escoteiro-mirim do Huguinho, Zezinho e Luisinho.
Infelizmente, o bicho não quis ficar mais a descoberto naqueles cinco ou dez minutos extra e não filmei nem mais um segundo. A ida ao tripé tinha realmente sido de uma utilidade extrema.

Resumindo, era uma da tarde, e já estávamos com o caso despachado. Eu ainda sugeri que fossemos directos para Lisboa, mas os meus companheiros nem quiseram ouvir falar no caso. Disse que um restaurante para mais de dez pessoas num domingo às 13h30 ia ser impossível. Não quiseram saber. 
O Bruno Herlander, com a calma habitual, arranjou uma solução. Acabámos por ir comer frango da Guia a um restaurante em Faro. Claro que ainda houve críticos a dizer que o frango era pequeno. Era o que faltava, não aparecer um crítico num twitch. “É frango da Guia”, expliquei. Também existiu quem comesse febras em vez de frango, mas isso para mim já roça o ofensivo. É como ir a um restaurante de leitão na Mealhada, e pedir um bife. 
Voltámos para cima e a verdade é que, mesmo com almoço, às 18h já estava em casa. Podia ter sido muito pior. 
Como certamente não estava cansado, adormeci por volta das 19h, sem jantar, e só acordei às 2h30 da manhã (!). Vesti o pijama e voltei a deitar-me. No fundo, foi quase como se dormisse duas noites seguidas.

Foto de grupo. Só faltei eu. Até a cadela do Bruno ficou registada. (foto do Paulo Alves) 
Não queria finalizar sem deixar uma nota sobre o nome comum que uso, Socó-mirim. Esta ave não está na lista de aves do Brasil, portanto não poderia usar essa lista como fonte, apesar desse nome ser certamente de inspiração brasileira. Acabei por seguir a nomenclatura que é usada na tradução portuguesa do guia Collins, que é o que faço normalmente nos vídeos do Canal do Xofred. 
Contudo, confesso que não desgosto do nome que o Gonçalo Elias “inventou” no local, Garçote-verde. Realmente é um garçote, e tem muito verde. 

Termino deixando um abraço a todos e todas – e foram muitos desta vez - os que estiveram presentes nesta aventura. Assim tem muito mais piada.

Agradeço também ao Carl Hawker, Paulo Alves e ao Renato Bagarrão a disponibilização das fotos que ajudam a ilustrar esta crónica.

#canaldoxofred