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18 outubro 2019

Sagres pode esperar - Bairdii no Sizandro

12/10/2019 - Foz do Sizandro

As férias de Setembro deste ano não permitiram usufruir dos dias que tinha planeado em Sagres. Infelizmente, acabaram mais cedo e os dias na península não se concretizaram. Por isso, planeámos um fim de semana por lá, em jeito de compensação. Era coincidente com o Festival das Aves mas, mesmo com o bulício esperado, resolvemos avançar.


Pilrito-de-bico-fino (Calidris Bairdii)
Foto Vasco Valadares
Saída dia 11 de Outubro, uma Sexta e regresso no dia 13, Domingo. Com uma pelágica pelo meio, o fim de semana previa-se animado, com muitas aves e reencontros.

A semana foi passando lentamente e, confesso que nunca estive completamente descansado em relação ao fim de semana. Havia qualquer coisa, lá bem no fundo, um aperto no coração que me dizia que Sagres não estava completamente seguro. Por isso, fiquei sempre um pouco mais tranquilo por ter feito os planos de forma a poder cancelar tudo literalmente no segundo anterior à saída.

Planos feitos e malas arrumadas, saí do trabalho a correr, para seguir em direção a sul o mais rápido possível. Sagres estava à espera. Já me imaginava na Cabranosa a ver rapinas, acompanhado da cadeira, por estes dias já convertida em imagem de marca.

É uma pena não conseguirmos prever o futuro. Já dizia o mestre verde: “Difficult to see. Always in motion is the future...” 

A sexta feira tardou, mas chegou. Saída prevista para as 18h30, e estava tudo a correr dentro do plano. 
18h17. O Vasco Valadares, que ia connosco, ligou para confirmar que estava a dez minutos de distância. Tudo nos conformes. "Everything is proceeding as I have foreseen..."

Planos e mais planos para quê? A verdade é que tudo descambou às 18h23. 


Um novo mail no telemóvel faz-se anunciar com um “pop”. Como escravo que sou dessa máquina infernal, fui imediatamente verificar do que se tratava. Era um mail da lista “Raridades”. “Ui!!!” – pensei. O assunto era “[raridades] Calidris bairdi no Sizandro” e no corpo dizia apenas um seco “Na parte sul”. Mais curto era impossível. O coração disparou. Mais ainda quando vi quem era o autor do email, Pedro Ramalho.


Pilrito-de-bico-fino (Calidris Bairdii)
No meio de todas as questões que me assaltavam a cabeça – quem era o observador foi logo a primeira - pensei imediatamente que, sendo o autor quem era, não existiriam com certeza dúvidas na identificação. Por outro lado, ficou logo claro para mim que já não iria existir fim de semana em Sagres. E agora?

O pilrito-de-bico-fino - calidris bairdii - tinha apenas um registo anterior em Portugal Continental, já no distante ano de 2004. Sendo este o segundo, tratava-se mesmo de uma grande bomba. Uma raridade entre raridades.

Com o bicho a mais de uma hora de distância, não dava para usar a meia hora de luz que restava. Não havia alternativa. Teria mesmo de se fazer um raid à Foz do Sizandro no dia seguinte.


18h27. Decidi ligar ao Vasco, mesmo correndo o risco de provocar um acidente. "Eh pá, não vai dar para ir para Sagres. Apareceu um Calidris bairdii no Sizandro". "O quê?! Ora bolas. Com a conversa já me enganei na saída!". Rapidamente chegámos à mesma conclusão. Sagres teria de ficar para a próxima.
"Então já falamos". Acabou por demorar quase meia hora a corrigir o erro, e a chegar finalmente. Pelo meio cancelei a pelágica, que era o único compromisso fixo que tinha marcado.

Para não se perder tudo, fomos jantar. As notícias foram chegando a conta gotas. O observador tinha sido o próprio Pedro Ramalho, e a notícia divulgada logo no local. Fartei-me de rir a ouvir algumas mensagens gravadas em pleno transe, a meio da observação.

Pilrito-de-bico-fino (Calidris Bairdii)
Lá combinámos os planos da pólvora. Saída às 6h, para estar lá às 7h.
Quando a Sandra disse que ia connosco fiquei logo com mais confiança no sucesso da expedição, ou não fosse ela o meu  amuleto da sorte.

Dormi mais ou menos descansado, o que costuma ser bom sinal. Às 6h já estávamos a caminho. Eu a Sandra e o Vasco. Os dados estavam lançados. Chegados à margem sul do Sizandro à hora prevista, estava escuro como breu. Vimos imediatamente duas silhuetas, que rapidamente identificámos, o Pedro Marques e o António Gonçalves. Que surpresa...

Connosco já éramos cinco. Era apenas a testa de ponte da invasão que certamente iria acontecer nas horas seguintes. O termo invasão, claro, utilizado tendo em conta a monumental dimensão do birdwatching no nosso país.

O amigo Bairdi - o filme

A claridade foi-se infiltrando lentamente. Ouvem-se alguns sons de limícolas. "Menos mal!", pensei. Assim que a luz permitiu começámos a perscrutar os campos, que estavam muito mais alagados do que o costume. Lembrei-me logo da frase do Pedro Ramalho, no dia anterior. "Tragam galochas!". Olho para o lado, já estava o pessoal a equipar-se com as ditas. "Bolas, vão mesmo usar isso?". Lá peguei também nas minhas. Nos twitches não podemos ter tiques de moda. Mas lá que esse calçado é feio e desconfortável, é.

Nos telescópios começou a surgir um outro borrelho, nada que fizesse soar alarmes. Avançámos mais um bocado, já bem para o meio da lama. Nada de especial à vista. O António vê dois ou três pilritos na borda de uma poça. Um deles parecia prometedor, com o escamado de lado e a cabeça arruivada. Ao fim de uns minutos de suspense, lá se levantaram e conseguimos perceber que era apenas mais um pilrito-comum.

Como a estrela não estava à vista, os presentes já estavam dispersos por todo o lado. Alguns a bem mais de uma centena de metros. Comigo, além da Sandra estavam o António Gonçalves e o Flávio Oliveira. 
Ainda pensei por um segundo que aquilo podia não correr bem, mas não deu para pensar muito na vida. Ainda estava a olhar para os pilritos ordinários, quando passa em voo um pequeno bando de cerca de dez limícolas. Vi onde pousaram e, assim que consegui pôr-lhes os binóculos em cima, a primeira ave que vi foi um pilrito com a projeção das primárias muito longa. Novo olhar e vi o escamado de lado. Já não tinha grandes dúvidas quando exclamei: "Vejam lá se não é este aqui!!". Não tirei os olhos dos binóculos mas ouvi a voz do António "Só vejo um Alpina" (pilrito-comum). Continuei a insistir que estava a ver o bicho perante a negativa do António, até que ouço a voz do Flávio a dizer, "Peraí. Acho que é o gajo que está ali!" seguido do António "Eh pá! Estava a olhar para outro bicho. É o gajo!". Só aí e que pude relaxar um bocado, "Vocês...Eu a dizer que era o bicho e não acreditaram!". Se a conversa não foi assim, foi parecida.
Às vezes dava jeito ter um gravador no cérebro. O que é certo é que a primeira foto que tenho na máquina foi às 7h53, onze minutos depois do nascer do sol.


"Está ali o gajo!"
Uma das primeiras imagens recolhidas.
Comecámos a abanar os braços freneticamente e o pessoal começou a encaminhar-se para o nosso posto a toda a velocidade, quais tubarões a cheirar o sangue da vítima. Pelo menos, desta vez não fui eu que tive de me pôr a correr. Em poucos minutos estava tudo com o bicho na mira. Desta vez não houve muito sofrimento. Nem deu para meia hora de busca. O pessoal que chegou um pouco depois como, por exemplo, a dezena que veio do norte, só teve, praticamente, de estacionar e sair do carro.

Rapidamente o calidris bairdii se transformou no amigo Bairdi, tão simpático era o animal. Aproximou-se várias vezes e esteve calmamente a alimentar-se por longos períodos. Voou algumas vezes, mas logo regressou à procedência.
Foi a alegria do povo. Uma observação cinco estrelas. Foi fotografar e filmar como se não houvesse amanhã. O colar cor de mel, o corpo achatado. Deu para ver calmamente todos os detalhes.
A cena mais cómica foi a do Carlos Patrício. Chegou de canadianas, com a namorada a carregar o canhão. Aí está uma coisa que não se vê todos os dias, canadianas num arrolamento. Às tantas começamos a ouvi-lo a gritar as instruções. Ele encostado ao poste e ela a fazer o melhor que podia, junto dos outros fotógrafos. "Vai para ali!", "O bicho está ali", "É aquele! É aquele!", tudo a culminar num "Vai para o pé do Pedro Marques!".
Deixo aqui um abraço ao Carlos, e desejos de rápidas melhoras! 


A multidão no Sizandro
foto Sandra Meneses
Quem se deu ao trabalho de contar cabeças na altura de maior afluência diz que eram cerca de duas dezenas. Se não foi o maior twitch de sempre no Continente, foi de certeza o segundo, o que não é coisa pouca.

A festa continuou por largos minutos. A última foto que tenho foi às 9h, altura em que o grupo resolveu levantar voo e seguir para fora de vista. Nós fizemos o mesmo. Foi mais de uma hora de observação. Tomaram muitos!

Borrelho-ruivo (Charadrius morinellus) em Peniche
foto Vasco Valadares
A verdade é que o dia foi um dia entre dias.
Depois do amigo Bairdi e, como nem só de aves vive o homem, tínhamos de almoçar em qualquer lado. Fomos a Peniche. Como Peniche é fixe, aproveitámos e fomos ver o borrelho-ruivo que lá anda a passar férias. Daí seguimos para o Samouco, onde acabámos por ver, não um, mas dois falaropos-de-bico-grosso. 


Falaropo-de-bico-grosso (Phalaropus fulicarius)
Samouco
O fim de tarde foi num bar na praia, em Alcochete, com Lisboa aos pés, o sol a descer, e a luz refletida pelo Tejo. As imperiais foram mais que merecidas. A "Força" tinha estado connosco.
Não fomos a Sagres, mas também não se perdeu tudo.

Epílogo: Vim a saber, no dia seguinte, de um boato a dizer que já estaríamos na área de serviço de Grândola quando saiu a notícia do Bairdii. Como se pode verificar ao ler a crónica, esse boato é manifestamente infundado. E juro que disse a verdade, e nada mais que a verdade. 


Resta-me agradecer ao Vasco Valadares e à Sandra Meneses pelas fotos que ajudam a ilustrar mais uma crónica.

#canaldoxofred

13 agosto 2019

Trinta zero sete - Missão ultra-secreta na terra das três mentiras

30/07/2019 - Vila Nova de Milfontes
Há dias maus para surgirem notícias de raridades. Para quem tem um trabalho com horários mais tradicionais, de segunda a sexta, os primeiros dias da semana - segundas, terças - são complicados de gerir a nível psicológico. Se estes já são maus, imagine-se algo que aparece num Domingo à noite…
Foi precisamente isso que sucedeu com a Gaivota-das-pradarias (Leocophaeus pipixcan) de Vila Nova de Milfontes. Dia 28/07 o Hugo Lousa descobriu-a no meio dos guinchos do estuário do Mira ao final da tarde (18h30). Digo eu que terá certamente reparado que poderia ser algo muito especial. A ID foi, entretanto, confirmada num grupo especializado em gaivotas no Facebook e a notícia começou a circular cá no burgo já ia a noite bem avançada.
No meu caso já estava encostado e meio a dormir.

Gaivota-das-pradarias (foto Rui Jorge)
Tirada 2a, 29/7 às 20h30
Cabe aqui abrir um parêntesis para referir que esta gaivota americana tem feito aparições aqui e ali, sem ficar nunca muito tempo, pelo menos nos últimos anos. Tive uma oportunidade perdida em 2013, na que apareceu fugazmente no estuário do Douro. Ia eu na A1 a caminho de Lisboa, já quase 100km abaixo do Porto, quando sou avisado pelo Pedro Ramalho que estava lá uma. Fosse pelo cansaço, paragem mental ou sei lá por que razão, decidi não voltar para trás nessa altura e segui caminho. Outras que foram aparecendo, normalmente em Julho, nunca foram relocalizadas - Vaza-Sacos, Praia dos Coelhos. E, assim, a pipixan foi ficando a faltar na lista.

 Mas, agora, havia esta em Vila Nova de Milfontes, que fez disparar a adrenalina e não me deixava adormecer. Como não estou só nesta loucura, o Pedro Nicolau ainda tratou de me ligar quase à 1h da manhã, a perguntar como era a minha vida. 
Na realidade, esta até era bastante simples neste caso. Segunda não poderia lá ir de certeza absoluta. Depois, logo se veria. No limite, só no fim de semana. Para quem, como eu, não acreditava que o bicho ficasse mais de um ou dois dias, a perspectiva do fim de semana era dramática. Por outro lado, iríamos entrar em Agosto, mês de multidões. A maré vazia iria passar a ser de manhã, e sei lá mais o quê. Na minha cabeça dei o bicho como praticamente perdido.
A angústia instalava-se mas, com o tempo vai-se aprendendo a fazer a gestão destes eventos. O que não tem solução, solucionado está.   
Mesmo com a pouca informação disponível, o Nicolau tinha alguma disponibilidade na 2ª e resolveu arriscar, e bem. Como eu lhe disse no tal telefonema da madrugada, se pudesse faria o mesmo.
Fui seguindo à distância o desenrolar dos acontecimentos. Logo de manhã surgiu o “Não está cá nada!”. Ou seja, não estavam gaivotas no estuário. Seria da maré? 
A verdade é que eles não desistiram. Partiram do princípio de que os guinchos subiriam o rio à medida que a maré subia e, foram também subindo, mas por terra. 

Gaivota-das-pradarias quase a dormir.
Esteve assim uma boa parte do tempo.
Ao fim de umas horas comecei a pensar que o assunto estava resolvido mas, por volta das 13h, surge a inesperada notícia de que a gaivota estava a dormir no cais do Zambujeiro, cerca de 2km para dentro do rio. Cada um tem o seu estilo. Como atleta que é, o Nicolau tem o costume de ir fazendo piscinas e mais piscinas – ver “Marfim na Nazaré”. Não resultou aí, mas resultou aqui. Um esforço mítico e com direito a recompensa. Era um começo. O bicho ainda andava por lá. 
Foram mais umas horas para pensar na vida até ao fim  do dia quando o dono da zona – Rui Jorge – reportou que tinha avistado a gaivota no local inicial – o estuário – por volta das 20h30 (ver foto acima).
Aqui sim, com esta notícia, começaram as contas de cabeça. Pelos vistos, o bicho tinha tendência a aparecer ao final da tarde no estuário, na maré vazia. Já era o segundo dia. Por outro lado, parecia que a aparição avançava com a maré. Uns bons 40 minutos, ou mais, de cada vez. Aqui tínhamos claramente um problema. Com o pôr do sol por volta das 20h50 na terca-feira, se o bicho mantivesse a rotina, iria aparecer já de noite. Isto se quisermos chamar rotina a uma amostra de dois dias, claro.
O raciocínio foi parecido com a canção. De Lisboa a Milfontes são duas horas de distância, e não nove como de Bragança a Lisboa, e não é sequer necessário rebentar com radares, nem a gaivota se chama Maria. É fazer a conta, como dizia o outro.  À noite, comecei a pensar que um ataque no dia seguinte poderia ser uma hipótese. Com alguma flexibilidade da componente profissional, saindo às 16h30 de Lisboa, conseguiria lá chegar por volta das 18h30. Mas era arriscado. Só com histórico de dois dias e com tantas outras variáveis, era mesmo arriscado. 
Uma pequena hipótese, mas com probabilidade claramente superior a zero. Uma pequena janela de duas horas, a única que teria até ao fim de semana. A minha companheira de aventuras, a Sandra, disse logo que ia lá comigo. Ainda cheguei a dizer que não ia, que era muito arriscado mas logo ela me repreendeu - “O que é que tens a perder?” - ao que respondi que na verdade só tinha a perder a despesa e o frete. Ficou decidido. Também decidi que iria sempre, quer o bicho fosse avistado de manhã no estuário ou não. Por outro lado, apenas faria sentido fazer um tudo ou nada ao fim do dia no estuário. Outras hipóteses ficariam para o fim de semana, se fossem necessárias e se o coração aguentasse até lá.
Terça o dia custou a passar. Às 16h34 estávamos a atravessar a Vasco da Gama. O caminho não teve história, a não ser a explicação que tive de dar à Sandra, do porquê da paragem na área de serviço de Grândola. “Ah, e tal, a tradição”. É sempre melhor não facilitar. Contrariamente ao habitual, desta vez sentia-me estranhamente optimista.
Três sofredores no estuário do Mira
Lá para as 18h30, estávamos no estuário do Mira. Já lá estavam mais dois sofredores, o Pedro Moreira e o Flávio Oliveira. Tinham resolvido vir ao casino no mesmo dia. Agora era ver se a roleta dava par ou ímpar, preto ou vermelho. Quando lhes disse que desta vez achava que íamos ter sorte, não ficaram muito convencidos. "Olhem que quando estou com fé, as coisas costumam correr bem". Não me pareceram mais animados com a conversa.

À vista estavam só cinco ou seis bichos. Uma mistura de guinchos e gaivotas-de-cabeça-preta. Sem surpresas, da pipixcan nem sinal. Sempre achei que se ela resolvesse aparecer, seria sempre depois das 20h30. Isto, claro, se ela fosse cumpridora de horários. Lá nos instalámos, a olhar para cada bicho novo que aparecia. Passado um bocado chegou o já referido Rui Jorge. Como já nos conhecíamos, tratei de lhe apresentar a Sandra e o resto da malta. "É o Rui Jorge, o dono aqui da zona." Os sorrisos foram tímidos. A tensão estava no ar. 
Quando ele referiu "De manhã não apareceu", o Pedro Moreira saiu-se logo com um "Ui, isso é que é pior!". Do meu lado já estava à espera desta notícia. Tratei logo de dizer que já tinha decidido vir, com ou sem aparição matinal da gaivota. Não fiquei preocupado, e mantive-me fiel ao passadiço. A tal já muitas vezes falada “crença do touro”. O Pedro, o Flávio e o Rui oscilaram, aqui e ali, entre a praia e o passadiço. Sempre se cobria mais terreno. 
Por volta das 19h30, já com cerca de dezena e meia de bichos à vista, a espera continuava. Nem sinal de pradaria. O Pedro começou a entrar em transe:
-Eh pá, não sei como é que vocês aguentam estas esperas!
-Esperas? Ainda nem uma hora esperaste! Sabes lá o que são esperas. Quando muito, vais esperar duas horas e depois vais para casa! - ripostei.
A dada altura, passou um guincho perto e, fosse da luz ou fosse o que fosse, o Pedro dispara:
-É essa!!!
Pipixcan em voo - Quase de noite com ISO 51200
Perante o início de excitação, vi claramente nos binóculos que era um guincho - “É um Guincho, vi bem que a cabeça era castanha” - lá se acalmou tudo outra vez. “Estamos a começar a delirar.”, pensei.
Mais uns minutos, ouviu-se o sino da Vila a bater as oito horas. o Pedro continuava no muro das lamentações. Quando perguntei se alguém estava a fazer a lista disse logo:
-Lista? Qual lista? Se não virmos a gaivota quero esquecer que estive aqui! Nem quero que ninguém saiba.
A espera continuava. Vinte gaivotas, trinta. 
-Quando estiverem cinquenta, ela aparece! - disse o Rui.

Oito e meia. Hora H. A partir daqui apurei ainda mais os sentidos. A dada altura vi passar uma gaivota-de-cabeça-preta e ouço a voz do Rui, vinda do lado da praia:
-É essa!!
-Não. Era uma cabeça-preta. - dissemos.
O delírio continuava.

Mais uns minutos e o sol já começava a desaparecer atrás do monte. O Pedro estava em desespero, o Flávio taciturno e silencioso. “É até à última luz!”, pensei. Já estávamos a entrar nos tais cinco, sete minutos do lusco-fusco. Já se viam cinquenta gaivotas, cinquenta e uma cinquenta e duas. “Raio do bicho, bem que podia aparecer!”. Confesso que comecei a pensar que podia ter aquilo perdido. 
20h50. Vem mais uma gaivota da praia a passar em direção ao estuário. Estava a olhar para ela e ouço a voz da Sandra: 
-Vê lá se não é esta…
Não dava para enganar. Era mesmo. Escura como tudo. Era a mesma história da gaivota-marfim. Eu a olhar e a Sandra a ver e a gritar primeiro. Pousou perto de uma pedra, junto das outras.
    - Está aqui! Está aqui! - gritei.

"Ali, junto à pedra!"
O Flávio, em desespero, a tentar perceber o local exacto - tal como na marfim - e nós com a dificuldade habitual em explicar. 
-Ali! Junto à pedra!
  -Qual pedra?

O último a aparecer, uns segundos depois, foi o Pedro, que estava na praia. Quando o vi a querer montar o telescópio, disparei logo:
-Vem mas é ver aqui no meu! - provavelmente com mais um ou dois palavrões à mistura. Confesso que não me lembro.
Enquanto disparava a máquina sem dó nem piedade, ainda olhei uma vez para trás e vi o meu querido Leica quase a cair ao chão, com a Sandra e o Pedro a conseguirem segurá-lo in extremis. Não sei que raio de manobra é que tinham tentado executar, mas iam-me estragando o dia.

A Gaivota-das-pradarias no telemóvel da Sandra
O certo é que, mais uns segundos e toda a gente tinha visto o bicho. Contei as gaivotas. Cinquenta e seis. O Rui tinha quase acertado na mouche.
Estava escuro. Estávamos a sair do lusco-fusco e a entrar na noite. Mais umas fotos e uma vista de olhos nos binóculos e ela levantou e voltou a pousar um pouco mais perto. Ainda a apanhei em voo com a câmara e fiz uns disparos. Quando vi as imagens, percebi que, realmente é mais grão que imagem mas, o iso 51200 da máquina afinal ainda serve para alguma coisa. Fui buscar a bridge ao carro para fazer uns clipes. A Sandra resolveu tirar uma foto ao bicho com o telemóvel, e até se via qualquer coisa. Deu para tudo. Quando corre bem, corre bem. 

 Mais uns minutos e a bridge já não conseguia focar. A luz era mínima. O Pedro já andava a fazer fotos do pessoal. Resolvemos dar o twitch por encerrado. “Vamos embora?”
A alegria do povo. Na praia às 21h30.
(Foto Pedro Moreira)
Podia ter corrido melhor? Sim. Podia ter aparecido mais cedo, com melhor luz. Mas, pesando todas as circunstâncias e o risco assumido, acho que não tenho razões de queixa. Realmente, havia qualquer coisa que me dizia que aquela aventura ia correr bem. Acreditei até ao fim - ou quase. Foi por pouco, à última hora, mas o bicho apareceu.

Resta-me agradecer ao Hugo Lousa a espetacular descoberta e rápida divulgação da mesma. Ao Rui Jorge a diligência e voluntarismo com que foi dando novidades do local, essenciais para ir fazendo planos à distância. Finalmente, ao Pedro Moreira e ao Rui Jorge pelas fotos que ajudam a ilustrar esta crónica.


01 agosto 2019

Madeira 2019 - Parte VI - O Lobo Desaparecido

01/06/2019 - O Lobo desaparecido e a despedida

Sábado, último dia da viagem. Domingo, de madrugada, tínhamos regresso marcado.

Ao pequeno almoço, os meus companheiros estavam mais frescos do que esperava, para quem se deitou quase às duas da manhã. Fizemos os planos da pólvora para o dia. Havia a possibilidade de tentar o lobo-marinho à tarde, mas ainda faltava acertar uns detalhes. A manhã estava disponível. 

Calca-mar (Pelagodroma marina)
Claramente a estrela da expedição

Combinámos ir dar umas voltas a uma serra perto, para ver mais umas aves para a lista da Madeira. Coisas importantes, tipo verdilhão e lugre. Às vezes ponho-me a pensar de onde vem esta febre das listas, de que também sofro. 
Também os convenci a ir ao Curral das Freiras, que é um dos meus locais preferidos da ilha, e que eles não conheciam. Aí vimos poucas aves, mas a vista vale por mil. 

Curral das Freiras
Regressámos a Machico para almoçar num restaurante que me tinham recomendado meses antes, o Maré Alta. Vista espetacular já se sabia que tinha, só faltava saber que tal era a comida. Filete de espada com banana e maracujá. Mais Madeirense era impossível. Estava realmente muito bom mas, foi comido meio às pressas. Isto de combinar saídas de barco a meio do almoço é no que dá. Aliás, todo o episódio da marcação do barco foi cómico. Estava a empregada a recolher o pedido, e eu ao telefone com o skipper:
-O barco sai às 14h30? Não sei se conseguimos chegar a tempo, estamos agora a começar a almoçar no Maré Alta.
-Então diga ao Sr. João que o André, aqui do barco da Quinta do Lorde, pede para ele vos despachar rápido!
-Quem é o Sr. João? - perguntei.
-É o dono! - disse a empregada.
O mundo é pequeno mas, na Madeira ou, neste caso, em Machico, parece ainda mais pequeno... 

À procura do Lobo-marinho na Ponta de S. Lourenço
Corremos para a Quinta do Lorde onde chegámos, como dizem os ingleses, almost late - quase atrasados - e conhecemos a tripulação. “Temos visto o lobo praticamente todos os dias”. Aquela teoria que odeio do “Eles estão sempre lá!”
Um mergulhador local que estava na zona, disse tê-lo visto, já nesse dia. Esperámos dez minutos em alguns pontos estratégicos, para ver se o bicho vinha à superfície respirar, demos uma volta de quase duas horas pela Ponta de São Lourenço mas, nada feito. Mesmo com o esforço extra que todos fizemos, o lobo-marinho não quis aparecer. 
Paciência... Pelos vistos, a sorte já se tinha esgotado nas pelágicas. Os bichos fazem sempre o que bem lhes apetece.

Alma-negra (bulweria bulwerii)
Foram uma companhia constante nas pelágicas
Não valia a pena desmoralizar e, para acabar em beleza, não nos poupámos a mais uma ida ao Caniçal, para umas lapas e bolo do caco. O mar à vista, com o característico azul profundo. As gaivinas a entrar e sair do porto. Há coisas piores…

O dia não acabou sem aprender mais qualquer coisa. De regresso a Machico, sem fome para jantar, optámos por dar uma volta pela marginal. Havia lá uma barraca de farturas que já tinha debaixo de olho há uns dias. “Farturas!!!!” 

Lá chegados, li o preçário e farturas não constava. Havia churros, churros com recheio e mais uma série de coisas mas, nada de farturas. “Aqui há é malassadas. Acho que é parecido com o que vocês no Continente chamam de farturas”. Bom, venha de lá uma malassada. Parecido sim, mas diferente, mais maçudo e pesado. Ainda sobrou um bom bocado. Agora é que não era mesmo preciso jantar. 


Freira-do-bugio (Pterodroma deserta)

Recolhi pela última vez ao hotel, a pensar que ia ter saudades daquilo tudo. Três lifers de peso, três pelágicas inesquecíveis, um moleiro polémico e uma companhia cinco estrelas, sempre com “sangue nos olhos” como dizia outro guia Brasileiro. Obrigado Luís e Alexandre.  Ainda ali estava mas, no fundo, já não estava ali. O meu carpe diem deixa muito a desejar.

Deixo, por fim, um abraço ao Luís Rodrigues por me ter “obrigado” a ir nesta aventura e também pelas fotos que ajudam a ilustrar a crónica. O meu obrigado ao Alexandre Rica Cardoso pelas gravações do Pico do Areeiro. Não podia também deixar de agradecer à Catarina e ao Hugo - Madeira Windbirds - pela ajuda, paciência e excelente organização.

#canaldoxofred

25 julho 2019

Madeira 2019 - Parte V - Moleiro-rabilongo

31/05/2019 - Moleiro-rabilongo


Sexta-feira. Depois do enxerto do dia anterior, ao contrário do que pensava, acordei vivo. Tudo um bocado dorido mas, ainda conseguia andar. Os joelhos ainda mexiam e sem grande dor.

Desci para o pequeno almoço com o livrinho do Andy Paterson. Lembro-me de o Alexandre dizer que realmente três pelágicas daquelas seguidas são o limite. Concordei de imediato. Uma quarta seria quase impossível de aguentar, pelo menos para a maioria dos humanos.

Moleiro-rabilongo (Stercorarius longicaudus)
Partilhei com os companheiros o que tinha conseguido apurar sobre o moleiro. Havia uma série de pistas que apontavam para rabilongo e eu já estava mais inclinado para esse. O Luís tinha também alguma literatura que parecia apontar nesse sentido. 

Os Suíços passaram no hall e, ao ver o meu livro aberto sobre a mesa, sorriram e dispararam, no gozo: 
   -Então? Já chegaram à conclusão de que é um rabilongo?

Lembrei-me de pedir ajuda a um contacto internacional, com muita experiência em moleiros e marítimas em geral e já com trabalho publicado em revistas de referência. Os amigos - neste caso do Facebook - são para as ocasiões. A resposta tardou pouco mais de uma hora, e foi taxativa.
Para ele era, sem dúvida, um rabilongo de segundo ano. Por várias razões, que me escuso de reproduzir aqui na totalidade. É curioso uma delas ser o facto de ter apenas dois shafts brancos nas duas primárias exteriores, característica que me tinha chamado a atenção no dia anterior. Ainda rematou a dizer que, pondo tudo nos pratos da balança, não via nada que pudesse indicar um parasítico. E esta, Hein?


Moleiro-rabilongo (Stercorarius longicaudus)
Entretanto, um dos nossos amigos do dia anterior - do backoffice - ligou ao Luís, a dar conta de que, após consultar mais literatura, tinha mudado de opinião e que, para ele, era também um rabilongo. E assim, de repente, o moleiro-coiso passou a moleiro-rabilongo. Os meus companheiros exultavam. Mais uma lifer, e das difíceis.

Com as três pelágicas cumpridas nos dias planeados, os dois dias que tínhamos de reserva estavam completamente livres. Saímos do hotel e fomos, praticamente, dar a volta à ilha em oitenta dias ou, neste caso, em pouco mais de oitenta minutos. Os lugares sucederam-se, uns atrás dos outros. São Vicente, onde finalmente vimos alguns garajaus-rosados.
 
Garajau-rosado (Sterna dougalii)


Porto Moniz, onde não vimos nada. Garganta Funda, onde se viu uma garganta funda e pouco mais mas, só pela vista, valeu a pena. Dispensam-se as piadas, neste caso. Ponta do Pargo, onde parámos para almoçar e, acabámos por ficar a tarde quase toda. Aí, além da vista, é também um bom sítio para os corre-caminho, que vimos mal saímos do carro. Foi uma tarde bem passada. No regresso a Machico parámos na Ponta-do-Sol, onde percebemos rapidamente que não valia a pena lá voltar no dia seguinte. 

Garganta-funda
Daí foi direto para o hotel. Os meus companheiros tinham uma excursão noturna com a Windbirds ao Pico do Areeiro, e não podiam chegar atrasados. Nessa não me meti, que sem joelhos é difícil, mas encomendei-lhes o sermão de me tentarem gravar o som, para ilustrar os vídeos e a crónica. Segundo sei, a saída correu bem. Além das freiras ainda viram corujas e uma galinhola, e ainda deu para fazer umas gravações.

Freira-da-Madeira - O som no Pico do Areeiro
Gravação do Alexandre Rica Cardoso

Antes dessa saída, ainda consegui falar com um dos companheiros do barco, o James, que me disse, descontraidamente, que nessa manhã tinha apanhado um barco na Ponta de S. Lourenço e que tinha visto um lobo-marinho durante mais de uma hora. “Como disse?!” 

Garajau-rosado (Sterna dougalii)
Foto Luís Rodrigues
A minha cabeça começou a trabalhar a toda a velocidade. Nessa noite não descansei enquanto não apurei todos os detalhes do onde, como e quando. Ainda antes da carrinha sair disparei para os meus colegas.

-Pessoal, amanhã temos de ir tentar ver um lobo-marinho à Ponta de S. Lourenço!

#canaldoxofred 

20 julho 2019

Madeira 2019 - Parte IV - O Moleiro-coiso

30/05/2019 - O Moleiro-coiso

Quinta-feira, dia da terceira e última pelágica.
Acordei outra vez em estado razoável. 
Pequeno-almoço tomado, seguimos para o Faial, à procura do pombo. Numa primeira paragem exploratória, ainda na estrada cá em cima, o Luís apontou quase de imediato um pombo que viu na escarpa. Finalmente, à terceira tentativa, foi de vez. “Pombo!!!” - gritou, como se tivesse descoberto ouro. Seria quase inaudito ir à Madeira tanto tempo e não ver o pombo lá do sítio.
Mais umas voltas e regressámos rapidamente a Machico. A terceira pelágica esperava por nós.

Moleiro-coiso (ver Parte V para ID)
Pontualmente, uma hora antes da hora coca-cola saímos do porto. 
Rumo SE, a cerca de 18mn. Ondas de norte de 1,7 metros e vento Norte de 17 nós. 
Objetivo:  Whatever.
A viagem de ida fez-se num instante. Deve ser por o tempo ser relativo ou, então, era por já estarmos habituados. No ponto de engodagem tínhamos as desertas ao lado. A Natureza é muito bonita…

Pombo!!!
Pombo-da-Madeira (Columba trocaz)
Logo nos primeiros minutos, a surpresa da expedição. Apesar dos relatórios mostrarem claramente que o final de maio não é uma boa altura para moleiros na Madeira, ali estava ele, um moleiro-coiso. Moleiro-grande não era e vi logo, pelo porte, que também não era um pomarino. Restavam duas hipóteses: parasítico ou rabilongo. Não sendo um adulto, era um exercício complicado. Fiquei na dúvida. Não vejo moleiros todos os dias, muito menos destes. Realmente, era de pequena dimensão, com apenas as duas primárias exteriores com shafts brancos. Sem consultar a literatura e apenas pela lei das probabilidades, inclinei-me mais para a opção moleiro-pequeno (parasítico). A realidade é que não sabia.


Moleiro-coiso (ver Parte V para ID)
Foto Luís Rodrigues
As poucas opiniões existentes estavam divididas. O Hugo estava inclinado para rabilongo, apesar de não ser uma plumagem vista habitualmente por ali. O James - team UK - fez uma meio pergunta, meio afirmação - “Hum... Arctic skua?” (parasítico). Por outro lado, os Suíços foram afirmativos “Long-tailed Skua!” (rabilongo). Com rede móvel disponível e dois informáticos na equipa Tuga, rapidamente tirámos uma foto a uma foto do “coiso” no ecrã da máquina do Luís e a enviámos para o backoffice do Continente - leia-se os nossos amigos da passarada - para análise. 
Rabilongo é, de longe, o mais difícil dos moleiros que se vêm regularmente por cá. Seria lifer para os meus companheiros. Para mim era praticamente igual, mas confesso que entre os dois também preferia esse, que só vira duas vezes, a última das quais há mais de cinco anos. O Luís e o Alexandre já estavam a salivar. Para desgosto destes, rapidamente recebemos por via aérea quatro respostas de peso a dizer que era um parasítico. 
Caso encerrado? Em princípio sim mas, como teimoso que sou, gosto de formar a minha própria opinião. À noite iria ver a pouca literatura que tinha disponível. Os Suíços também não compraram a ideia parasítica.


Casquilho (Oceanites oceanicus)
Foto Luís Rodrigues
O bicho é que não se importou com estas divagações. Deu um show e encheu os cartões e os binóculos. Às vezes estava tão perto que enchia o ecrã e saia do enquadramento. Espetacular! E também não teve muita pressa de se ir embora.

No resto do tempo que lá estivemos, as gaivotas monopolizaram o chum e afastaram quase toda a concorrência. Mesmo assim, além das cagarras e almas-negras, ainda foi aparecendo qualquer coisa. Um pintainho - leia-se um mosquito branco a dois quilómetros e também um casquilho, para gáudio dos Suíços. No dia anterior tinham-me dito que ainda não estavam satisfeitos porque lhes faltava o dito. A minha resposta “Vão em Setembro a Sagres, que vêem de certeza” não os desmobilizou. Cada um tem os seus dramas...

Alma-negra (Bulweria bulwerii)

O regresso é que foi pior. Preparei-me como no dia anterior. Veste o polar, fecha o impermeável, mete o boné para não ir água para a cara, mete os óculos escuros para não ir água para os olhos. Afinal, mesmo de noite, os óculos escuros são úteis.
“Get ready for a wet and very bumpy trip!”, disse a Catarina. 

Chegada às Desertas.
O regresso é que foi bem mais complicado...
E assim foi. Vento de frente, e ondas bem de lado. Entravam quase todas no barco e, em quase todas, o barco saltava por momentos e batia. Onda, salto, molha, bate, salto, onda, molha. “Ui, esta vai doer!”, pensei. Ainda usei o joelho esquerdo nos primeiros minutos mas, percebi rapidamente que era melhor resguardá-lo. Fiz a viagem quase toda só com o apoio do direito. Ao fim da primeira meia hora comecei a sentir que estava molhado. A roupa ajudou até onde pôde, mas não fez milagres. “Oxalá o saco impermeável faça o seu trabalho”, pensei. Lembro-me de olhar para o lado uma série de vezes e continuar sempre a ver as Desertas. “Ainda estamos aqui? Não andámos nada”. 
Em duas ou três ocasiões, a água conseguiu passar os óculos e fiquei com os olhos a arder, fechados, por uns minutos. Aí tinha de sentir que o barco ia saltar, para poder ter o corpo preparado. Só ao fim de mais de uma hora é que achei que os saltos estavam, finalmente, a diminuir de amplitude e de frequência. 
Seja como for, ao fim uma viagem infernal, lá conseguimos ver as luzes de Machico. Só entrar no porto fez logo com que começássemos a aquecer. Realmente, "There's no place like home". Não sei por que me veio à cabeça esta frase. Não tínhamos visto nenhum tijolo amarelo, e muito menos um homem de lata.

Gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahelis)
Foto Luís Rodrigues

Que enxerto de porrada! Estava todo partido e arrastei-me até ao hotel. A roupa estava completamente encharcada. Vá lá, que o interior do saco impermeável estava completamente seco. Bendito investimento!

Depois de jantar, já no quarto, tentei não adormecer de imediato e ainda consegui dar uma vista de olhos no pequeno livro do Andy Paterson - “Pelagic Birds of the North Atlantic” - o único guia que levei. Realmente, a nossa ave tinha mais parecenças com os rabilongos imaturos do guia do que com os parasíticos. Havia também a primeira frase referida para a identificação: “Always looks grey-brown rather than warm brown”. Ora, a nossa ave era claramente cinzento-acastanhada. As minhas fotos mostravam o mesmo que as do Luís. Não era uma questão de regulação da máquina. 

Fui dormir a pensar no assunto que, claramente, não estava fechado...

#canaldoxofred

11 julho 2019

Madeira 2019 - Parte III - Calca-mar à Vista!

29/05/2019 - Calca-mar 

Quarta-feira, dia da segunda pelágica. 
Depois de uma razoável noite de sono, acordei na quarta-feira mais ou menos em bom estado. A tareia do dia anterior não me conseguiu deitar ao tapete. 

Depois de um bom pequeno almoço fomos, sem sucesso, à procura do pombo-da-madeira nas serras perto de Machico. De certeza que os pombos já deviam conhecer o nosso carro, e escondiam-se quando aparecíamos. 

Acabámos a manhã no Pico do Facho, a ver as toutinegras-tomilheiras lá do sítio.

Calca-mar (Pelagodroma marina)
Chegados ao hotel, como tinha dado bom resultado no dia anterior, resolvi voltar a falar com as senhoras dos quartos. Em equipa que ganha não se mexe. Disse-lhes que realmente tínhamos tido sorte e visto as freiras e que hoje íamos tentar ver o calca-mar. Mostrei-lhes uma foto do bicho. Disseram logo de imediato, com um dos sotaques mais bonitos de Portugal:

-Vai ver! Vai ver! Vai dar sorte!

Às 15h30 lá estávamos no porto. Desta vez fomos para sul, a cerca de 18mn. Ondas de NE de 1,5 metros e vento de norte de 14 nós. 
Objetivo: calca-mar.

Calca-mar (Pelagodroma marina)
foto Luís Rodrigues
No caminho as cagarras e almas-negras fizeram-nos companhia. Vimos também algumas tartarugas-comuns e golfinhos-comuns. Um bom começo, mas isto interessa é como acaba, e não como começa.

Chegados ao ponto de engodagem, os bichos começaram a aparecer quase de seguida. 

Painho-da-Madeira (Oceanodroma castro)
Os painhos-da-madeira foram dos primeiros. Algumas vezes mais de um de cada vez. Nesse dia vimos pelo menos meia-dúzia. Espetacular foi também uma gaivota-de-Sabine que apareceu junto ao chum e por lá ficou, até nos irmos embora. Mais vezes perto do que longe, aquilo foi fotografar como se não houvesse amanhã. No fim já nem ligávamos. “A Sabine ainda ali está”. “Ok. Deixa estar.” Para ajudar à festa ainda apareceram uma Freira-do-bugio, que passou como uma seta, e dois ou três patagarros.

Gaivota-de-Sabine (Xema sabini)
E lá estávamos nós,entretidos com os Castro e a Sabine quando, subitamente, a Catarina exclama:

-Calca-mar a subir o slick!

Não me lembro se foi em português ou inglês, nem me interessa. Foram uns segundos de angústia até o conseguir descortinar no meio das ondas. Lá vinha ele! Ora aparece, ora desaparece. Parece um mini-surfista com patins. Se há nome comum bem escolhido, é este. Lentamente, a apenas meia dúzia de centímetros das ondas, vai-se alimentando e dando espetáculo, para quem quiser, e quem puder, ver. Não pára muito no mesmo sítio, e nunca se aproximou a menos de uns 10 metros. Não deu para fotos a encher mas, não se pode ter tudo. De zero a cinco, para mim foi um cinco. 

Calca-mar (Pelagodroma marina)
O surfista-patinador
Só me custou foi, quando já estávamos de partida, com a trouxa arrumada, ele resolver dar um show perto do barco, com a luz dourada do pôr-do-sol a bater-lhe no ângulo certo. Agora? Fiquei a olhar para o saco no chão, já com a câmara lá dentro. Típico…

A viagem de regresso, com vento de frente e ondas de lado não foi o passeio do dia anterior. Mesmo com a perícia da Catarina no leme, o barco saltava de vez em quando e o mar entrou uma ou duas vezes. Nada de grave, mas deu para para perceber a utilidade dos bancos amortecidos do “Oceanodroma”. Assim, o impacto divide-se entre o banco, as costas, os braços e os joelhos (para quem ainda tem joelhos, claro). A roupa impermeável que usei na Islândia também ajudou a tornar o regresso menos desconfortável. De qualquer maneira, nas quase duas horas do regresso, não nos livrámos de uma pequena sova. Pela positiva, frio não tive. Ainda melhor, foi ninguém se ter sentido mal desta vez, apesar dos justificados receios.

Gaivota-de-Sabine (Xema sabini)
Foto Luís Rodrigues
Por volta das 11h estávamos no hotel, para mais um jantar e umas cervejas. Tudo mais que merecido. Ao segundo dia, com os três objetivos da viagem atingidos, já conseguia respirar fundo. Caso o físico sobrevivesse, a terceira pelágica, no dia seguinte, seria só para desfrutar, sem stress.

#canaldoxofred