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18 outubro 2019

Sagres pode esperar - Bairdii no Sizandro

12/10/2019 - Foz do Sizandro

As férias de Setembro deste ano não permitiram usufruir dos dias que tinha planeado em Sagres. Infelizmente, acabaram mais cedo e os dias na península não se concretizaram. Por isso, planeámos um fim de semana por lá, em jeito de compensação. Era coincidente com o Festival das Aves mas, mesmo com o bulício esperado, resolvemos avançar.


Pilrito-de-bico-fino (Calidris Bairdii)
Foto Vasco Valadares
Saída dia 11 de Outubro, uma Sexta e regresso no dia 13, Domingo. Com uma pelágica pelo meio, o fim de semana previa-se animado, com muitas aves e reencontros.

A semana foi passando lentamente e, confesso que nunca estive completamente descansado em relação ao fim de semana. Havia qualquer coisa, lá bem no fundo, um aperto no coração que me dizia que Sagres não estava completamente seguro. Por isso, fiquei sempre um pouco mais tranquilo por ter feito os planos de forma a poder cancelar tudo literalmente no segundo anterior à saída.

Planos feitos e malas arrumadas, saí do trabalho a correr, para seguir em direção a sul o mais rápido possível. Sagres estava à espera. Já me imaginava na Cabranosa a ver rapinas, acompanhado da cadeira, por estes dias já convertida em imagem de marca.

É uma pena não conseguirmos prever o futuro. Já dizia o mestre verde: “Difficult to see. Always in motion is the future...” 

A sexta feira tardou, mas chegou. Saída prevista para as 18h30, e estava tudo a correr dentro do plano. 
18h17. O Vasco Valadares, que ia connosco, ligou para confirmar que estava a dez minutos de distância. Tudo nos conformes. "Everything is proceeding as I have foreseen..."

Planos e mais planos para quê? A verdade é que tudo descambou às 18h23. 


Um novo mail no telemóvel faz-se anunciar com um “pop”. Como escravo que sou dessa máquina infernal, fui imediatamente verificar do que se tratava. Era um mail da lista “Raridades”. “Ui!!!” – pensei. O assunto era “[raridades] Calidris bairdi no Sizandro” e no corpo dizia apenas um seco “Na parte sul”. Mais curto era impossível. O coração disparou. Mais ainda quando vi quem era o autor do email, Pedro Ramalho.


Pilrito-de-bico-fino (Calidris Bairdii)
No meio de todas as questões que me assaltavam a cabeça – quem era o observador foi logo a primeira - pensei imediatamente que, sendo o autor quem era, não existiriam com certeza dúvidas na identificação. Por outro lado, ficou logo claro para mim que já não iria existir fim de semana em Sagres. E agora?

O pilrito-de-bico-fino - calidris bairdii - tinha apenas um registo anterior em Portugal Continental, já no distante ano de 2004. Sendo este o segundo, tratava-se mesmo de uma grande bomba. Uma raridade entre raridades.

Com o bicho a mais de uma hora de distância, não dava para usar a meia hora de luz que restava. Não havia alternativa. Teria mesmo de se fazer um raid à Foz do Sizandro no dia seguinte.


18h27. Decidi ligar ao Vasco, mesmo correndo o risco de provocar um acidente. "Eh pá, não vai dar para ir para Sagres. Apareceu um Calidris bairdii no Sizandro". "O quê?! Ora bolas. Com a conversa já me enganei na saída!". Rapidamente chegámos à mesma conclusão. Sagres teria de ficar para a próxima.
"Então já falamos". Acabou por demorar quase meia hora a corrigir o erro, e a chegar finalmente. Pelo meio cancelei a pelágica, que era o único compromisso fixo que tinha marcado.

Para não se perder tudo, fomos jantar. As notícias foram chegando a conta gotas. O observador tinha sido o próprio Pedro Ramalho, e a notícia divulgada logo no local. Fartei-me de rir a ouvir algumas mensagens gravadas em pleno transe, a meio da observação.

Pilrito-de-bico-fino (Calidris Bairdii)
Lá combinámos os planos da pólvora. Saída às 6h, para estar lá às 7h.
Quando a Sandra disse que ia connosco fiquei logo com mais confiança no sucesso da expedição, ou não fosse ela o meu  amuleto da sorte.

Dormi mais ou menos descansado, o que costuma ser bom sinal. Às 6h já estávamos a caminho. Eu a Sandra e o Vasco. Os dados estavam lançados. Chegados à margem sul do Sizandro à hora prevista, estava escuro como breu. Vimos imediatamente duas silhuetas, que rapidamente identificámos, o Pedro Marques e o António Gonçalves. Que surpresa...

Connosco já éramos cinco. Era apenas a testa de ponte da invasão que certamente iria acontecer nas horas seguintes. O termo invasão, claro, utilizado tendo em conta a monumental dimensão do birdwatching no nosso país.

O amigo Bairdi - o filme

A claridade foi-se infiltrando lentamente. Ouvem-se alguns sons de limícolas. "Menos mal!", pensei. Assim que a luz permitiu começámos a perscrutar os campos, que estavam muito mais alagados do que o costume. Lembrei-me logo da frase do Pedro Ramalho, no dia anterior. "Tragam galochas!". Olho para o lado, já estava o pessoal a equipar-se com as ditas. "Bolas, vão mesmo usar isso?". Lá peguei também nas minhas. Nos twitches não podemos ter tiques de moda. Mas lá que esse calçado é feio e desconfortável, é.

Nos telescópios começou a surgir um outro borrelho, nada que fizesse soar alarmes. Avançámos mais um bocado, já bem para o meio da lama. Nada de especial à vista. O António vê dois ou três pilritos na borda de uma poça. Um deles parecia prometedor, com o escamado de lado e a cabeça arruivada. Ao fim de uns minutos de suspense, lá se levantaram e conseguimos perceber que era apenas mais um pilrito-comum.

Como a estrela não estava à vista, os presentes já estavam dispersos por todo o lado. Alguns a bem mais de uma centena de metros. Comigo, além da Sandra estavam o António Gonçalves e o Flávio Oliveira. 
Ainda pensei por um segundo que aquilo podia não correr bem, mas não deu para pensar muito na vida. Ainda estava a olhar para os pilritos ordinários, quando passa em voo um pequeno bando de cerca de dez limícolas. Vi onde pousaram e, assim que consegui pôr-lhes os binóculos em cima, a primeira ave que vi foi um pilrito com a projeção das primárias muito longa. Novo olhar e vi o escamado de lado. Já não tinha grandes dúvidas quando exclamei: "Vejam lá se não é este aqui!!". Não tirei os olhos dos binóculos mas ouvi a voz do António "Só vejo um Alpina" (pilrito-comum). Continuei a insistir que estava a ver o bicho perante a negativa do António, até que ouço a voz do Flávio a dizer, "Peraí. Acho que é o gajo que está ali!" seguido do António "Eh pá! Estava a olhar para outro bicho. É o gajo!". Só aí e que pude relaxar um bocado, "Vocês...Eu a dizer que era o bicho e não acreditaram!". Se a conversa não foi assim, foi parecida.
Às vezes dava jeito ter um gravador no cérebro. O que é certo é que a primeira foto que tenho na máquina foi às 7h53, onze minutos depois do nascer do sol.


"Está ali o gajo!"
Uma das primeiras imagens recolhidas.
Comecámos a abanar os braços freneticamente e o pessoal começou a encaminhar-se para o nosso posto a toda a velocidade, quais tubarões a cheirar o sangue da vítima. Pelo menos, desta vez não fui eu que tive de me pôr a correr. Em poucos minutos estava tudo com o bicho na mira. Desta vez não houve muito sofrimento. Nem deu para meia hora de busca. O pessoal que chegou um pouco depois como, por exemplo, a dezena que veio do norte, só teve, praticamente, de estacionar e sair do carro.

Rapidamente o calidris bairdii se transformou no amigo Bairdi, tão simpático era o animal. Aproximou-se várias vezes e esteve calmamente a alimentar-se por longos períodos. Voou algumas vezes, mas logo regressou à procedência.
Foi a alegria do povo. Uma observação cinco estrelas. Foi fotografar e filmar como se não houvesse amanhã. O colar cor de mel, o corpo achatado. Deu para ver calmamente todos os detalhes.
A cena mais cómica foi a do Carlos Patrício. Chegou de canadianas, com a namorada a carregar o canhão. Aí está uma coisa que não se vê todos os dias, canadianas num arrolamento. Às tantas começamos a ouvi-lo a gritar as instruções. Ele encostado ao poste e ela a fazer o melhor que podia, junto dos outros fotógrafos. "Vai para ali!", "O bicho está ali", "É aquele! É aquele!", tudo a culminar num "Vai para o pé do Pedro Marques!".
Deixo aqui um abraço ao Carlos, e desejos de rápidas melhoras! 


A multidão no Sizandro
foto Sandra Meneses
Quem se deu ao trabalho de contar cabeças na altura de maior afluência diz que eram cerca de duas dezenas. Se não foi o maior twitch de sempre no Continente, foi de certeza o segundo, o que não é coisa pouca.

A festa continuou por largos minutos. A última foto que tenho foi às 9h, altura em que o grupo resolveu levantar voo e seguir para fora de vista. Nós fizemos o mesmo. Foi mais de uma hora de observação. Tomaram muitos!

Borrelho-ruivo (Charadrius morinellus) em Peniche
foto Vasco Valadares
A verdade é que o dia foi um dia entre dias.
Depois do amigo Bairdi e, como nem só de aves vive o homem, tínhamos de almoçar em qualquer lado. Fomos a Peniche. Como Peniche é fixe, aproveitámos e fomos ver o borrelho-ruivo que lá anda a passar férias. Daí seguimos para o Samouco, onde acabámos por ver, não um, mas dois falaropos-de-bico-grosso. 


Falaropo-de-bico-grosso (Phalaropus fulicarius)
Samouco
O fim de tarde foi num bar na praia, em Alcochete, com Lisboa aos pés, o sol a descer, e a luz refletida pelo Tejo. As imperiais foram mais que merecidas. A "Força" tinha estado connosco.
Não fomos a Sagres, mas também não se perdeu tudo.

Epílogo: Vim a saber, no dia seguinte, de um boato a dizer que já estaríamos na área de serviço de Grândola quando saiu a notícia do Bairdii. Como se pode verificar ao ler a crónica, esse boato é manifestamente infundado. E juro que disse a verdade, e nada mais que a verdade. 


Resta-me agradecer ao Vasco Valadares e à Sandra Meneses pelas fotos que ajudam a ilustrar mais uma crónica.

#canaldoxofred