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28 maio 2021

Limpeza na Terra dos Impérios

Março de 2021 - Ilha Terceira

Há já alguns anos que tinha na cabeça um regresso à Ilha Terceira. No meu caso, tenho sempre a ilha na cabeça e no coração, por razões óbvias mas, a verdade é que já há vinte anos que não tinha o prazer de aterrar nas Lajes.

Um dos residentes mais célebres da ilha, ornitologicamente falando - Carlos Pereira - já tinha falado comigo várias vezes ao longo dos últimos anos sobre as virtudes da mesma e, em particular, do Paul do Cabo da Praia. Desde aí, meti a viagem na lista.  

Império do Divino Espírito Santo da Vila de S. Sebastião

Os longos meses de pandemia foram, cada vez mais, restringindo as viagens, física e psicologicamente. Contudo, as três deslocações profissionais a S. Miguel em 2020 acabaram por tornar cada vez mais claro que os Açores eram um oásis no meio do Atlântico. O risco de se ficar preso nas ilhas é real, e já nem estou a considerar a meteorologia. Pode acontecer ter um teste covid positivo antes de ir ou, pior, ter um teste positivo ou contacto de risco, estando lá. Todas estas hipóteses são possíveis e implicam perda de dinheiro mas, haja saúde, que é o mais importante.

A verdade é que decidi, já muito em cima da hora, ir à Terceira no final de Março. Além dos já "residentes" batuíras-de-bando (borrelho-semipalmado - charadrius semipalmatus), andavam por lá um maçariquinho (pilrito-anão - calidris minutilla) e uma garça-real-americana. Americanada não faltava. Apressa-te, disse o Carlos, esta bicharada costuma sair toda de cá em meados de Abril. E eu fui com pressa. Só tinha 3 dias. Era apertado mas não queria fazer o teste covid do sexto dia. Quanto menos complicado melhor. 

Maçariquinho ou Pilrito-anão (Calidris minutilla)

Dia 27 de Março aterrámos no destino. Ainda estávamos a acabar de alugar o carro quando o Carlos Pereira fez a sua aparição. No seu estilo simpático e expansivo estendeu-me a mão imediatamente. Já tinha vivido esta cena na minha cabeça e pensado como havia de reagir. Há mais de um ano que não apertava a mão a ninguém. Obviamente, estendi a mão e apertei a de quem a estendia para mim com toda a confiança. Em Roma, sê Romano. Nessa altura a Terceira tinha exatamente zero casos ativos. Andava tudo à vontade. As máscaras também desapareceram rapidamente, e lá seguimos juntos para o primeiro destino, o Paul da Praia da Vitória. 

"Os borrelhos e o minutilla são garantidos.", disse ele no caminho.  "Está bem, está bem, pá. Mas eu quero é ver os bichos e depois digo-te.", pensei.

Era nesse Paul, inserido em plena cidade que a garça-real-americana costumava fazer as suas aparições. A questão era que ela já não era vista, ou pelo menos, reportada, há mais de 10 dias. Podia ser apenas uma questão de ser um local pouco visitado, para um otimista, ou o bicho já ter ido à sua vida, para um pessimista. A verdade é que, dos três objetivos da viagem, era neste que tinha menos fé.
Saímos do carro, dei uma volta rápida com os binóculos e a primeira impressão foi que não estava grande coisa à vista. Uma ou duas garças, um bocado longe, uns quantos galeirões e pouco mais. "Bom, vamos lá montar o telescópio." 
Olhei para a primeira garça e a achei que era muito arruivada. "Carlos vê lá esta. Parece-me arruivada". "É ela é!". 
Exultei. Uma onda de adrenalina encheu-me as veias. O mais difícil estava feito e o resto do fim-de-semana ia com certeza correr bem. O Carlos olhou para mim, com cara de gozo quando me viu fazer um gesto parecido com o que fazem os futebolistas ao marcar golo. Cada um é como é...
Ainda deu para a vermos alguns segundos mais mas, ela deve ter-se sentido observada e levantou voo pouco depois. Ainda demos a volta ao paul, mas ela tinha mesmo ido para ouras paragens. Como fez ela, assim fizemos nós.

Garça-real-americana (Ardea herodias) - descolagem

Ainda não eram onze horas e, esperava eu ir dali direto para Meca - como alguém já lhe chamou. A verdade é que não foi assim que o guia entendeu. "Ah e tal, vamos ali passar no porto de pesca. Ah e tal, vamos ali ao Paul do Belo Jardim." Tudo com uma calma incrível. Do meu lado o stress ia aumentando. Só pensava no maçariquinho e nos batuíras-de-bando. "Oxalá ainda lá estejam os bichos. Oxalá não estejamos a perder tempo". Ia a conduzir, mas já não via nada à frente.

Só às 11h30 é que chegámos, finalmente, ao Paul do Cabo da Praia. A ansiedade foi aumentando à medida que nos aproximávamos. Quando pousei a tralha e comecei a observar o que nos rodeava logo me apercebi que o local não tinha nada a ver com tudo o que tinha visto até ali nos Açores. O Paul estava cheio de limícolas. Não era uma aqui e outra ali. Eram mesmo muitas. Com o telescópio fomos dando nome ao que víamos. Perna-vermelha, combatente, seixoeira, e mais umas quantas espécies. Tudo boas aves para a região, mas para mim é que era demasiado pouco ou nada. Lá se viu um ou outro borrelho, mas não eram os almejados batuíras, e muito menos a jóia da coroa, o maçariquinho. "Sempre a mesma coisa", pensei, "isto comigo nunca é fácil". 
Entretanto, o Carlos viu o que achou ser um batuíra. As diferenças para um borrelho dos nossos são muito subtis e, por isso, ninguém  estava muito convencido. Vimo-lo no telescópio uns segundos, até que levantou, fazendo o chamamento característico. "É mesmo!", diz o Carlos, acostumado a ouvi-los todo o ano. 
 
Batuíra-de-bando ou borrelho-semipalmado (charadrius semipalmatus)
A foto não está grande coisa, mas permite ver a membrana

 
Um já estava. Mal e porcamente, mas estava. Maçariquinho é que nada. Continuei a espreitar para todo o lado, sem sucesso. Estava cada estava vez mais ansioso, e cada vez mais espantado com a tranquilidade do Carlos. Pelos vistos, os nervos estavam todos do meu lado.
Às tantas, ao fim de uns bons vinte minutos, uma luz ao fundo do túnel:
 -Ele costuma estar ali para trás. Vamos lá.
"Bolas, este tempo todo a ver a Natureza, e o bicho à nossa espera lá para trás?", pensei. "Vamos mas é para lá e em força".

Nem cinco minutos se demora a chegar a esse segundo ponto de observação. É mais tranquilo e resguardado, e até tem um banco muito confortável, em basalto. Tipo um calhau da calçada, mas com trinta centímetros de lado.
Ainda estava a montar o telescópio quando ouço a palavra da salvação. "Está ali!". Cinco ou seis passos e já estava com os binóculos apontados. A pergunta do costume, "Onde?" ainda me saiu, mas mais uma indicação ou duas e lá estava ele. "Vês, aquele mais escuro?". E era. Era escuro e minúsculo. As pernas amarelas ainda demoraram a aparecer, porque ele estava atrás de um montinho de terra, mas estava feito. Bem bonito, o bicho.

Maçariquinho ou Pilrito-anão (Calidris minutilla)

Ainda não era hora de almoço do primeiro dia, e o fim de semana estava mais que ganho.  Under the belt before lunch...
Melhor era impossível e ficou provado que, às vezes, é possível ser otimista. Nunca será o meu caso, mas fica a nota. 
Veio-me à cabeça a música, "Os milagres  acontecem horas incertas", apesar de claramente, não se tratar de um milagre e até ter tido, praticamente, hora marcada. 
Estava explicada a calma do Carlos. 

Como o local é espetacular, com os bichos muito perto, ainda ficámos por lá pelo menos mais uma hora. Foi fotografar e filmar e filmar e fotografar. 

Saímos sem pressa, para ir almoçar. Já era quase hora de almoço em Espanha - 14h - quando começámos a pensar onde é que se havia de ir comer qualquer coisa. O dia, para nós, tinha começado às duas da madrugada, hora dos Açores e a fome apertava.  
Aceitámos a sugestão do guia e fomos comer uma sandes de alcatra a uma espécie de padaria. Não sei se era da fome, mas pareceu claramente a melhor sandes de alcatra que tinha comido na vida, quanto mais não fosse, por ser a primeira. 

O intervalo na passarada foi curto. Passado menos de uma hora seguimos caminho.

Galinhola (Scolopax rusticola)

Durante o resto da tarde, fomos a campos agrícolas, a miradouros, eu sei lá. Demos quase a volta à ilha, para ver o que lá andava. As espécies residentes iam aparecendo. Foi especial ouvir a vocalização nupcial das narcejas, que apenas tinha experienciado numa outra ocasião, no leste da Europa. Assim é muito fácil perceber que o nome popular, cabra-do-ar está muito bem escolhido.
Por volta das 17 horas, as pernas pesavam. Já sonhava com um banho e com o hotel. Mas o Carlos estava incansável. Queria incluir uma ida às galinholas antes do jantar que, estava mais que acertado desde há dias que seria em casa dele. 

Cabra-do-ar (gallinago gallinago)

O cansaço era muito, mas quem se pode atrever a recusar um possível avistamento de galinhola? 
Lá teve de ser. Fomos pousar as coisas ao hotel e combinámos um encontro ao anoitecer, algures no meio de nada, tipo agentes secretos. 
Ainda deu para um duche rápido e chegámos pontualmente, quase como novos, ao nada que era o ponto de encontro. Já lá estava o Carlos à espera. 
A luz ia escasseando. O silêncio imperava, apenas entrecortado pelo som dos melros, piscos e estrelinhas da zona. 
Mais uma vez, contra a minha espetativa, as galinholas começaram a passar quase de seguida. Uma e outra e outra e outra. Algumas bem perto. Até deu para fazer uns borrões com a máquina fotográfica. Só sei que, na hora que lá estivemos, entre avistamentos e audições, registámos 22 contactos. Foi mais uma experiência incrível! 

Galinhola (Scolopax rusticola)

Restava ir jantar, o que não era pouco. Migas de espargos crescidos na própria quinta. 
A receção foi calorosa. A anfitriã Cecília, o filho Alexandre, os cães e os gatos. Toda a família nos veio receber. Nem senti o cansaço. O repasto estava muito bom e a conversa também. Nem se deu pelo tempo a passar. 
Só chegámos ao hotel por volta da uma da madrugada. Quase vinte e quatro horas sem dormir, mas tinha valido a pena. Não há muitos dias assim.

No dia seguinte começámos mais devagar. Depois de um excelente pequeno almoço, fomos buscar o Carlos a casa e demos mais umas voltas. Não faltou uma ida ao Queijo Vaquinha, um dos ex-libris da ilha. O pessoal do Continente não sabe o que perde...
Foi mais uma manhã bem passada. À hora de almoço, o Carlos foi às sua vida, e nós à nossa.
 
Maçariquinho ou Pilrito-anão (Calidris minutilla)
 
Depois de almoço, era obrigatório ir a Meca outra vez. Lá estava o meu amigo maçariquinho e os batuíras. Uma espécie mais rara que lá conseguiu aparecer foi o Ruben Coelho. Depois de tanta conversa virtual, conseguimos finalmente estar face a face. Pensado bem, era difícil conceber um local melhor para esse evento que o Paul do Cabo da Praia. Tinha mesmo de ser aí. 
Entre as minhas atividades de realização e fotografia, conseguimos encaixar uns dedos de conversa. Já calculava, mas constatei rapidamente que é um defensor do Paul e da Terceira. Há destinos piores, isso mais que certo.

O fim de semana passou depressa. No dia seguinte já era dia da partida. Ligámos o modo turista e fomos a Angra, ao Monte Brasil, onde quase fomos atropelados por um gamo e, finalmente, a S. Sebastião, ver o império da freguesia. O Carlos já tinha avisado que era bonito. E é mesmo. Este e a igreja valem bem um desvio. 
O ponto alto do dia foi o almoço com a família Pereira num dos restaurantes mais conhecidos da ilha. Lapas e peixe do mar Açoreano, com sabor a triunfo. Desta vez, até me lembrei de registar o momento para a posteridade.


Almoço em família

O almoço acabou tarde mas, antes de seguir para o aeroporto ainda voltámos ao Paul da Praia, para rever a garça-real-americana. Mais uma vez, mostrou-se tímida. Não se deixou filmar e levantou vôo assim que se sentiu observada. Apesar de tudo, achei que não me podia queixar muito. "Tomaram muitos!", pensei. Não se pode abusar da sorte.

Ao final da tarde, seguimos para casa. A Terceira, e os Açores tinham sido generosos. Foi uma limpeza, na Terra dos Impérios.

Império da Caridade - Praia da Vitória

Resta-me agradecer ao Carlos pela ajuda incansável, estendendo o agradecimento à família pela hospitalidade. 
Deixo também um abraço ao Ruben. Obrigado pela ajuda.
As viagens são ainda melhores quando nos sentimos em casa.