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02 dezembro 2020

Especial nos Mosteiros

08/11/2020 - S. Miguel - Corvo-marinho-d'Orelhas

Trabalho é trabalho e conhaque é conhaque. Em 2020 - ano espetacular a não recordar - fui a S. Miguel em Janeiro, em trabalho e fui a S. Miguel em Julho, em trabalho, com Covid. Como não há duas sem três, fui a S. Miguel em Novembro, em trabalho, com Covid. Nos dez dias previstos desta última viagem, consegui  meter um dia para o conhaque. Tomaram muitos!

Com partida a 4 de Novembro, comecei logo no início de Outubro a seguir o que se passava na Ilha. Isto, claro, no que respeita ao conhaque, ou seja, a passarada. Os Açores são sempre uma caixinha de surpresas. Apesar do Outono estar no fim, há sempre uma ou outra estrela que vai aparecendo. A maioria aparece e desaparece passado uns dias.
Lá fui vendo o que se passava e comecei a seguir o influxo de corvos-marinhos-d'orelhas (phalacrocorax auritus) nas ilhas. Neste caso, até era um bom ano para um influxo destes, sobretudo porque podia ser que sobrasse algum para mim. 

Corvo-marinho-d'orelhas

Então mas não é só um corvo-marinho? Por um lado sim, mas este é Americano e tem o bico coberto de ouro.

Foram pingando um pouco por todo o lado. Faial no dia um, Terceira no dia cinco, Corvo dia oito. Obviamente que, quanto mais longe da América, menor a probabilidade. Será que S. Miguel tinha hipótese? "Bingo!" Foi o que li no Facebook no dia quinze. Um dos poucos observadores residentes descobriu um nos Mosteiros, noroeste da ilha. A adrenalina começou a fluir. Só no dia oito de Novembro, três semanas depois, é que ia ter a minha oportunidade mas, os ilhéus dos Mosteiros nunca mais me saíram da cabeça. O influxo continuou, com mais aves a aparecer, um pouco por todo o lado. Até houve mais outra ave nos Mosteiros no dia 25. 

Será que alguma se aguentaria até dia oito? Havia histórico de invernada da espécie no arquipélago, inclusivamente nos Mosteiros mas, é como dizem no futebol, o histórico vale pouco. O que interessa é o jogo em questão. 

Dia oito nunca mais chegava. Antes da partida contactei o Ruben Coelho. É sempre bom avisar a malta da zona, quando vamos aos seus domínios. Sempre disponível, foi com ele que fui partilhando e discutindo as minhas ideias para o pouco tempo livre que teria no dia D. 

Tardou, mas chegou. O plano era apostar tudo nos Mosteiros. Não havia mais nenhuma estrela para mim naquela ilha. Era all-in nos Mosteiros. O risco era claramente elevado. Não havia notícia dos corvos há uns quinze dias. S. Miguel tem poucos observadores. Seria apenas um caso de ninguém mais lá ter ido? Em breve saberia.

Corvo-marinho-d'orelhas
O vídeo possível a 320m de distância

Achei que não seria necessário madrugar muito, e tomei mais um pequeno-almoço de luxo no hotel, antes de ir. O dia ia ser longo e o que é bom é para se aproveitar.

De Ponta Delgada aos Mosteiros ainda é quase uma hora de carro. Fiz a viagem cheio de esperança. Dei por mim a pensar que era um privilegiado. O percurso é panorâmico, e a descida para os Mosteiros de cortar a respiração. Foi muito bem disposto que liguei para Lisboa a dar os bons dias. A hora H aproximava-se. As ruas eram estreitas. Manobrei o carro com cuidado até à ponta mais próxima do ilhéu mais próximo. Por volta das nove horas estava a estacionar. 

Foi com o coração aos saltos que me sentei num banco de pedra a olhar para o rochedo. Mais de um mês a pensar neste momento. 

A verdade, verdadinha, é que só vi gaivotas e pombos. Voltei a olhar para todo o lado. Gaivotas e pombos, pombos e gaivotas. Não é possível... Não havia corvo para ninguém. De nada adiantaram as vinte vezes que voltei a olhar para lá. Nada! Esperei mais uma meia hora. Já que estava ali...
Nada de nada! Havia que aceitar. Esta estava perdida. 

Era uma possibilidade. Infelizmente, a pior de todas mas, havia que aceitá-la e seguir em frente. Ainda pensei que os corvos podiam simplesmente andar à pesca e, que poderia valer a pena voltar passado algum tempo. Na verdade, já não acreditava nisso mas, a probabilidade existia e não era negligenciável. 

Corvo-marinho-d'orelhas

Passava pouco das dez horas quando assumi a derrota. Levantei-me, peguei no carro e segui para as piscinas naturais, um ou dois quilómetros mais a norte. A Natureza é muito bonita... Explorei-as a todas com passo de condenado, cabisbaixo e de ombros caídos. As aves observadas foram poucas. Uma rola-do-mar, uma garça, alguns estorninhos. A depressão instalava-se a toda a velocidade. 

Um pouco depois das 11h o telemóvel começou a tilintar. Era o Ruben a saber se tinha tido sorte:

-Nem por isso...
-Tens de ter paciência. Os das outras ilhas ainda estão.
-Ainda lá vou voltar, pode ser que ele estivesse a pescar (nem eu próprio acreditava nisso).

E o bom filho a casa torna. Eram cerca de 11h30 quando me voltei a sentar, sem esperança, no banco de pedra na ponta mais próxima do ilhéu mais próximo. Com os binóculos em riste, lá comecei a ver o pequeno quadrado inclinado lá no cimo.
Gaivota, gaivota, pombo, gaivota, pombo, gaivota, coiso, gaivota. Coiso? 'Pera, volta para trás. Ataque cardíaco. Coiso preto? Dois coisos pretos granditos? Hum?! Dois corvos marinhos, bico dourado. Bum!!! Não era um, eram dois auritus.

Só comecei a acalmar-me quando tirei as primeiras fotos e gravei o primeiro vídeo. Afinal era possível, um twitch a cinco semanas e 1500km de distância, atravessando meio oceano. 
Senti a adrenalina nas veias. Tinha conseguido. 

Comecei o rescaldo. Primeiro telefonei para casa. Depois voltei a falar com o Ruben:

-Uhu!!! Dois corvos! 

Tinham passado vinte minutos desde a última troca de mensagens. Do inferno ao céu, como as coisas mudam em vinte minutos...
Restava o restante, ou seja, comemorar. Voltei a olhar para a barraquinha de couratos que tinha visto chegar no início da manhã.
-
Tem cerveja?
-Sim, tenho Super Bock e imperial Especial.
-Então venha lá uma Especial... - nos Açores sê Açoreano.

Uhu! Dois Corvos!

Era a barraquinha certa no lugar certo. Estava a pagar quando, para meu espanto, o dono começa a discorrer sobre a temática do momento, pelo menos para mim:

-Sabe, estão dois pássaros pretos no ilhéu, que vieram da Índia.
-Da Índia?
-Sim, estão lá sempre a apanhar sol. São giros.

E esta, hein?!

Realmente havia uma pequena incorreção, uma vez que até podem vir da Índia, mas é da Índia Ocidental e não da "nossa" Índia que é a Oriental mas, pelos vistos, em vez de ter andado cabisbaixo durante duas horas, bastava ter perguntado ao dono da zona. Sabia lá eu disso, quando vi o homem a armar a barraca duas horas antes. 

Dizem que a definição de um alcoólico é quem bebe sozinho. Foi com isso em mente que troquei algumas palavras com o senhor da barraquinha, para disfarçar e não parecer um bêbado. "Deixe-se estar à vontade!". A hospitalidade dos Açores sempre presente. E eu assim fiquei. À vontade... 

Acabei a manhã a ouvir o mar, a olhar para os bicos de ouro e a beber uma Especial. Esta era mais que merecida. 

Resta-me agradecer ao Ruben Coelho, sempre atento, pela ajuda e paciência.

 

#canaldoxofred