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02 dezembro 2020

Especial nos Mosteiros

08/11/2020 - S. Miguel - Corvo-marinho-d'Orelhas

Trabalho é trabalho e conhaque é conhaque. Em 2020 - ano espetacular a não recordar - fui a S. Miguel em Janeiro, em trabalho e fui a S. Miguel em Julho, em trabalho, com Covid. Como não há duas sem três, fui a S. Miguel em Novembro, em trabalho, com Covid. Nos dez dias previstos desta última viagem, consegui  meter um dia para o conhaque. Tomaram muitos!

Com partida a 4 de Novembro, comecei logo no início de Outubro a seguir o que se passava na Ilha. Isto, claro, no que respeita ao conhaque, ou seja, a passarada. Os Açores são sempre uma caixinha de surpresas. Apesar do Outono estar no fim, há sempre uma ou outra estrela que vai aparecendo. A maioria aparece e desaparece passado uns dias.
Lá fui vendo o que se passava e comecei a seguir o influxo de corvos-marinhos-d'orelhas (phalacrocorax auritus) nas ilhas. Neste caso, até era um bom ano para um influxo destes, sobretudo porque podia ser que sobrasse algum para mim. 

Corvo-marinho-d'orelhas

Então mas não é só um corvo-marinho? Por um lado sim, mas este é Americano e tem o bico coberto de ouro.

Foram pingando um pouco por todo o lado. Faial no dia um, Terceira no dia cinco, Corvo dia oito. Obviamente que, quanto mais longe da América, menor a probabilidade. Será que S. Miguel tinha hipótese? "Bingo!" Foi o que li no Facebook no dia quinze. Um dos poucos observadores residentes descobriu um nos Mosteiros, noroeste da ilha. A adrenalina começou a fluir. Só no dia oito de Novembro, três semanas depois, é que ia ter a minha oportunidade mas, os ilhéus dos Mosteiros nunca mais me saíram da cabeça. O influxo continuou, com mais aves a aparecer, um pouco por todo o lado. Até houve mais outra ave nos Mosteiros no dia 25. 

Será que alguma se aguentaria até dia oito? Havia histórico de invernada da espécie no arquipélago, inclusivamente nos Mosteiros mas, é como dizem no futebol, o histórico vale pouco. O que interessa é o jogo em questão. 

Dia oito nunca mais chegava. Antes da partida contactei o Ruben Coelho. É sempre bom avisar a malta da zona, quando vamos aos seus domínios. Sempre disponível, foi com ele que fui partilhando e discutindo as minhas ideias para o pouco tempo livre que teria no dia D. 

Tardou, mas chegou. O plano era apostar tudo nos Mosteiros. Não havia mais nenhuma estrela para mim naquela ilha. Era all-in nos Mosteiros. O risco era claramente elevado. Não havia notícia dos corvos há uns quinze dias. S. Miguel tem poucos observadores. Seria apenas um caso de ninguém mais lá ter ido? Em breve saberia.

Corvo-marinho-d'orelhas
O vídeo possível a 320m de distância

Achei que não seria necessário madrugar muito, e tomei mais um pequeno-almoço de luxo no hotel, antes de ir. O dia ia ser longo e o que é bom é para se aproveitar.

De Ponta Delgada aos Mosteiros ainda é quase uma hora de carro. Fiz a viagem cheio de esperança. Dei por mim a pensar que era um privilegiado. O percurso é panorâmico, e a descida para os Mosteiros de cortar a respiração. Foi muito bem disposto que liguei para Lisboa a dar os bons dias. A hora H aproximava-se. As ruas eram estreitas. Manobrei o carro com cuidado até à ponta mais próxima do ilhéu mais próximo. Por volta das nove horas estava a estacionar. 

Foi com o coração aos saltos que me sentei num banco de pedra a olhar para o rochedo. Mais de um mês a pensar neste momento. 

A verdade, verdadinha, é que só vi gaivotas e pombos. Voltei a olhar para todo o lado. Gaivotas e pombos, pombos e gaivotas. Não é possível... Não havia corvo para ninguém. De nada adiantaram as vinte vezes que voltei a olhar para lá. Nada! Esperei mais uma meia hora. Já que estava ali...
Nada de nada! Havia que aceitar. Esta estava perdida. 

Era uma possibilidade. Infelizmente, a pior de todas mas, havia que aceitá-la e seguir em frente. Ainda pensei que os corvos podiam simplesmente andar à pesca e, que poderia valer a pena voltar passado algum tempo. Na verdade, já não acreditava nisso mas, a probabilidade existia e não era negligenciável. 

Corvo-marinho-d'orelhas

Passava pouco das dez horas quando assumi a derrota. Levantei-me, peguei no carro e segui para as piscinas naturais, um ou dois quilómetros mais a norte. A Natureza é muito bonita... Explorei-as a todas com passo de condenado, cabisbaixo e de ombros caídos. As aves observadas foram poucas. Uma rola-do-mar, uma garça, alguns estorninhos. A depressão instalava-se a toda a velocidade. 

Um pouco depois das 11h o telemóvel começou a tilintar. Era o Ruben a saber se tinha tido sorte:

-Nem por isso...
-Tens de ter paciência. Os das outras ilhas ainda estão.
-Ainda lá vou voltar, pode ser que ele estivesse a pescar (nem eu próprio acreditava nisso).

E o bom filho a casa torna. Eram cerca de 11h30 quando me voltei a sentar, sem esperança, no banco de pedra na ponta mais próxima do ilhéu mais próximo. Com os binóculos em riste, lá comecei a ver o pequeno quadrado inclinado lá no cimo.
Gaivota, gaivota, pombo, gaivota, pombo, gaivota, coiso, gaivota. Coiso? 'Pera, volta para trás. Ataque cardíaco. Coiso preto? Dois coisos pretos granditos? Hum?! Dois corvos marinhos, bico dourado. Bum!!! Não era um, eram dois auritus.

Só comecei a acalmar-me quando tirei as primeiras fotos e gravei o primeiro vídeo. Afinal era possível, um twitch a cinco semanas e 1500km de distância, atravessando meio oceano. 
Senti a adrenalina nas veias. Tinha conseguido. 

Comecei o rescaldo. Primeiro telefonei para casa. Depois voltei a falar com o Ruben:

-Uhu!!! Dois corvos! 

Tinham passado vinte minutos desde a última troca de mensagens. Do inferno ao céu, como as coisas mudam em vinte minutos...
Restava o restante, ou seja, comemorar. Voltei a olhar para a barraquinha de couratos que tinha visto chegar no início da manhã.
-
Tem cerveja?
-Sim, tenho Super Bock e imperial Especial.
-Então venha lá uma Especial... - nos Açores sê Açoreano.

Uhu! Dois Corvos!

Era a barraquinha certa no lugar certo. Estava a pagar quando, para meu espanto, o dono começa a discorrer sobre a temática do momento, pelo menos para mim:

-Sabe, estão dois pássaros pretos no ilhéu, que vieram da Índia.
-Da Índia?
-Sim, estão lá sempre a apanhar sol. São giros.

E esta, hein?!

Realmente havia uma pequena incorreção, uma vez que até podem vir da Índia, mas é da Índia Ocidental e não da "nossa" Índia que é a Oriental mas, pelos vistos, em vez de ter andado cabisbaixo durante duas horas, bastava ter perguntado ao dono da zona. Sabia lá eu disso, quando vi o homem a armar a barraca duas horas antes. 

Dizem que a definição de um alcoólico é quem bebe sozinho. Foi com isso em mente que troquei algumas palavras com o senhor da barraquinha, para disfarçar e não parecer um bêbado. "Deixe-se estar à vontade!". A hospitalidade dos Açores sempre presente. E eu assim fiquei. À vontade... 

Acabei a manhã a ouvir o mar, a olhar para os bicos de ouro e a beber uma Especial. Esta era mais que merecida. 

Resta-me agradecer ao Ruben Coelho, sempre atento, pela ajuda e paciência.

 

#canaldoxofred 

18 maio 2020

A Trombeta do Desconfinamento

10/05/2020 - Cabo Espichel - Pintarroxo-trombeteiro

O vírus maldito e a obrigação de confinamento em plena época de migração primaveril, atingiu o pequeno mundo dos arroladores Portugueses de forma profunda. A depressão instalou-se em força. As notícias eram poucas ou nenhumas e, desta vez, nem os ventos de Espanha serviram para nos ir animando. Os nuestros hermanos ainda estavam pior que nós. Nem de casa os deixavam sair.  
Pelo meu lado, andei a explorar o meu "quintal", como lhe chamo, sem grandes novidades além dos residentes habituais. 

Pintarroxo-trombeteiro (Bucanetes githaneus)
(foto Vasco Valadares)
Entrámos em Maio. A primeira semana já lá ia. Por esta altura, já alguém tinha apelidado esta de "a pior Primavera da História". O cenário era negro e as perspectivas também não eram animadoras. 
A esperança é sempre a última a morrer e, não há mal que sempre dure mas, neste caso, se alguém me tivesse vindo com provérbios destes, eu tê-lo-ia mandado a um certo sítio. Andava muito animado, por estes dias. O desconfinamento do início do mês não ajudou muito, apesar de ser, teoricamente, um pequeno passo do início do fim do princípio deste  drama. Uma "once in a lifetime experience", e que experiência.

A verdade é que os provérbios servem para alguma coisa. Bem do fundo do buraco negro onde estamos enfiados surgiu, sem aviso, um raio de esperança em forma de fénix. Neste caso uma fénix com o bico rosa e sem chamas a acompanhar. 
Contrariamente ao que tem sido costume, desta vez a notícia apareceu no melhor dia possível. Foi no Sábado, dia 9 de Maio de 2020, já noite muito adiantada, que o Hélio Batista colocou um pedido de identificação no fórum aves. Perguntava ele se estaria a sonhar com um Bucanetes githagineus. Rapidamente recebeu a resposta. Nessa tarde, no Cabo Espichel, ele e os amigos tinham mesmo visto e fotografado um Pintarroxo-trombeteiro. A foto que acompanhava a pergunta não era má de todo e deixou toda a tribo a salivar. Aquele bico não enganava ninguém. Vim a saber mais tarde que a foto era do Paulo Diva.

Pintarroxo-trombeteiro - A foto que lançou o caos 
(foto Paulo Diva)
Desta vez fui, literalmente, apanhado a dormir. Não estava de pijama, mas estava no sofá, em frente à televisão, a fingir que via um filme. Escusado será dizer que não vi as múltiplas mensagens que me enviaram a partir das 23h. Só acordei quando me ligaram, já perto da meia-noite. Era o Vasco Valadares, que achou estranho a ausência de resposta no whatsapp durante minutos a fio. Vou já ver, disse. Então vê lá e diz qualquer coisa. O qualquer coisa foi que saíamos às 6h em direcção ao santuário. Lá ia ter de me levantar pouco depois das 5h. Não posso dizer que estivesse com saudades. Quem corre por gosto não cansa (lá vem mais um provérbio para eu mandar a certo sítio).

Voltando à vaca fria ou, neste caso, ao trombeteiro, tratava-se do quinto registo para Portugal e, curiosamente, do terceiro para o Espichel. 
Agora, impunha-se a pergunta, fica ou não fica? O histórico mais recente - 2013 e 2017 - mostrava que essas aves não costumam ficar. Fosse por isso ou pelo local onde apareceu, não tinha esperança nenhuma de ver a ave no dia seguinte. 
Talvez por isso mesmo, dormi descansadíssimo as quase quatro horas disponíveis até à hora H. Nas vezes em que isso acontece normalmente o resultado é bom como, por exemplo, no caso do sula de Sesimbra - ver A Odisseia do Sula - mas nem essa lembrança me fez mudar de opinião. Às 5h45, saí de casa sem grande ansiedade. Não me passava pela cabeça ter o bicho na lista no final do dia. Não ia ver, mas lá que ia picar o ponto, ia. Não ia ser por meia dúzia de quilómetros e cinquenta minutos para cada lado que deixava de lá ir. Apanhei o Vasco no caminho e às 7h, mais coisa menos coisa, estávamos a estacionar junto à barreira da estrada, a um quilómetro do santuário. A barreira foi só mais uma má novidade trazida pelo vírus. Já lá estava também o Audi do Pedro Marques. A silhueta homem tripé, inconfundível, ia uns bons 100 metros lá à frente. Pegámos no material e seguimos caminho. O sol brilhava. Pelos vistos as previsões de chuva estavam enganadas, pensei.

Pintarroxo-trombeteiro (Bucanetes githaneus)
(foto Pedro Marques)
Dez minutos de caminhada e já estávamos no ponto do encontro imediato do dia anterior. Olha para aqui, olha para ali. Nada de especial à vista. Os pardais e pintarroxos das redondezas não davam, sequer, para assustar. Por volta das 7h15 toca o telemóvel. Era o inevitável Pedro Ramalho. As questões foram as do costume. Onde é que vocês estão, quem está aí, já viram o bicho. À minha pergunta se estava na barreira da estrada, pareceu-me ouvir qualquer coisa do tipo "Vi os carros, ainda não vi foi o bicho". "Nem vais ver!" foi a minha resposta pronta. Segundo o próprio, não foi exatamente isso que ele disse mas, a verdade é que foi o que o meu cérebro processou. O Alzheimer não perdoa.

Mais uma meia-hora e chegam mais três desconfinados. O Rogério Rodrigues e o José Frade e a Ana Isabel. Pela falta de entusiasmo com que foram recebidos, rapidamente perceberam que o Trombetas não estava à vista. Lá continuámos todos a olhar em volta, sem sucesso, a meias com a amena cavaqueira do costume.
Por volta da oito e um quarto, pareceu-me sentir uns pingos ligeiros a cair na roupa. Ouço a voz da Ana Isabel, "Vem aí chuva da grossa!". Nem cinco segundos tinham passado e parecia que estávamos debaixo de uma cascata. E assim ficámos sete desgraçados no meio do (quase) nada, sem sequer uma árvore para nos abrigar. E agora!? Alguns, ainda tinham impermeável, outros nem isso. As arcadas do Santuário ainda estavam a umas boas duas centenas de metros. Podia ser na Lua, que era igual. Estávamos condenados. 
Fui o mais rápido que pude e encostei-me a um arbusto junto ao muro da mãe d'água, a umas dezenas de metros. Escusado será dizer que, quando lá cheguei já havia pouco a fazer. O impermeável ainda protegeu a parte de cima mas, da cintura para baixo era como se tivesse entrado numa piscina. Parece que outros terão tido uma outra opção, bem mais arriscada nos tempos que correm, de aproveitar a oferta generosa do Pedro Marques, e ficar a partilhar uns centímetros quadrados de um guarda-chuva minúsculo. Lá se foi o distanciamento social...

Pintarroxo-trombeteiro (Bucanetes githaneus)
(foto Pedro Marques)

Nem cinco minutos durou o dilúvio. Chegou sem avisar e partiu sem dar cavaco. 
Voltei para junto da malta só para ver que já estavam a começar a arrumar a trouxa. Com a chuva e a molha a moral tinha descido em flecha. Às nove já estávamos junto aos carros, não sem nos livrarmos de levar com mais um aguaceiro no caminho. 
Tinha acabado de chegar o Márcio Cachapela. É um actor recente destas andanças, com uma figura fácil de recordar. Uma espécie de bom gigante. Nesta história acabou por se tornar no grande protagonista, como se verá.

Pois, já estamos de saída. Não, não vimos nada. O pessoal foi desistindo a conta-gotas. Vou andando, diz um. Vou para Pancas, diz o Frade. Até à próxima, diz outro. Eu e o Vasco já tínhamos decidido que íamos a uma segunda volta, assim que ganhássemos coragem e o tempo permitisse. Fomos para o carro  pensar na vida. O Márcio, mesmo com o pessoal a desmobilizar, terá seguido a máxima do "já que estou aqui..." e disse que ia lá ver se via alguma coisa. 

Estava cada vez mais convencido que tinha razão. Não ia haver Bucanetes para ninguém mas, o vício é assim, não nos larga. Pouco antes das dez respirámos fundo e seguimos, sem pressa. 
Estávamos a chegar. Vimos o Márcio, a uns cinquenta metros. Nem liguei quando vi o Vasco a atender o telemóvel, nem reparei que o Márcio, ao longe, também estava com o telemóvel na mão, nem perguntei ao Vasco quem tinha ligado. Ainda passou um ou dois segundos até o Vasco dizer com um sorriso ligeiro e com uma calma despropositada:
-Bora! O Márcio tá a ver o bicho! 
-Hã?!
Teve de repetir, a frase, para eu finalmente acreditar que tinha mesmo ouvido o que tinha ouvido. Acelerámos o passo e dois minutos depois já lá estávamos. Ah e tal, apareceu no fio, vocalizou e depois foi para ali para o terreno de cima, com uns pintarroxos. Dito isto, abre a P1000 e mostra a jóia da coroa. Não deixava dúvidas a ninguém. Escusado será dizer que agora não estava à vista. Bolas, pensei, agora vou ter de estar aqui o dia todo! Só me saem duques! 
-Bom pelo menos está cá! - disse.

Ah e tal, vocalizou e foi para o fio...
A foto que o Márcio nos mostrou quando chegámos
(foto Márcio Cachapela)

Fraco consolo. Passavam uns dez minutos das dez. Rapidamente ligámos aos sofredores que tinham desistido. O Pedro Ramalho que, vim a saber, já estava no Meco, o Pedro Marques que se não estava, devia estar lá perto, o Frade, estou em Alcochete agora já não volto e o Rogério já estou em cima da ponte hoje já não vou. Os dois primeiros voltaram a correr e, dez minutos depois já estávamos cinco juntos outra vez.
Nesta segunda iteração a tensão era de cortar à faca. As palavras eram poucas ou nenhumas. Junto aos pardais e pintarroxos das redondezas não andava. Raio do bicho!
-A cor é muito clara. Nota-se logo. - diz o Márcio.
Está bem, está bem, mas eu quero é ver com os meus olhos, pá - pensei - eu depois logo te digo.
-E descobri-o porque ele vocalizou.
Está bem, está bem, mas eu quero é ouvir com os meus ouvidos, pá - pensei - eu depois logo te digo.

Foi às 10h25. Passam uns dois ou três bichos em por cima das nossas cabeças, ao mesmo tempo que se ouve a voz do Pedro Marques:
-Vejam lá esse!
Quase de seguida diz o Márcio:
-É esse!
Vi um bicho mais corpulento que um pardal, cor de areia clara, com uma barra escura na cauda. Pousou no fio e consegui logo pôr-lhe os binóculos em cima. Já está! 

Ainda ficou lá uns segundos até me lembrar de pegar na bridge. Quando apontei ao fio já ele estava no chão junto a uma poça. Ainda disparei mas já ele ia a levantar na direção do terreiro em frente ao santuário. Típico. Podia ter esperado mais uns segundos, mas não quis. O que é certo é que o tick já não me tiravam e que as minhas previsões de sofrimento tinham sido manifestamente exageradas.

Pintarroxo-trombeteiro - mais corpulento que os pardais 
(foto Vasco Valadares)
Depois deste primeiro contacto, tendo o bicho desaparecido de vista, começámos rapidamente a espalhar-nos pelas redondezas, um aqui, outro ali. 
Pensei um bocado e coloquei-me onde achei que dominava mais terreno, no extremo do terreiro, de costas para o santuário, a olhar para o jardim murado da mãe d'água. Nem cinco minutos tinham passado quando ouço algo parecido como uma daquelas cornetas de plástico dos miúdos. Pensei logo no Trombetas. O som vinha precisamente do lado oposto ao que me encontrava, do outro lado da mãe d'água. 
-Alguém está a chamar o bicho? - perguntei.
Não houve resposta. Mais um minuto e ouve-se a voz do Pedro Ramalho:
-Não é ele em cima do muro?
Era mesmo. Tinha voltado e estava em cima do muro. 

A partir daqui foi meia-hora de fartar vilanagem. No telescópio foi encher o olho. Quem quis fotografar fotografou, quem quis filmar filmou. Não estava muito perto mas, a vida é assim. A minha P610 fez o que pôde mas, os filmes ficaram fracos e as fotos fracas ficaram. A observação foi cinco estrelas. As fotos e os filmes nem três. Isto de escolher o material que se leva tem destas coisas. Como não contratei um caddy, optei pelo mínimo de peso possível e por dar prioridade à observação, em detrimento do registo. Neste caso resultou...

Quando se deu a debandada ainda houve um momento caricato. Íamos a sair quando o bicho pousa no muro, dois metros ao lado do Márcio sem ele se aperceber. Provavelmente reconheceu-o e veio despedir-se.
-Márcio! Olha aí!
Vi-o aflito a pegar na P1000 e a tentar apanhar o Trombetas. As bridge levam uma eternidade a ligar, fazer zoom e focar. A verdade é que ainda se aproveitou qualquer coisa.

Quando pousou a 2 metros(foto Márcio Cachapela)
O regresso aos carros foi mais um desfile triunfal, com o pessoal a ocupar toda a largura da estrada, em linha. Quinze minutos de êxtase. 
O confinamento tinha definitivamente terminado com estrondo. Não foi um estrondo monumental e nem sequer foi um estrondo mas, nenhum dos envolvidos se irá certamente queixar de só ter ouvido o som de uma trombeta de plástico. 

Resta-me agradecer ao Hélio Batista pelo aviso pronto, e ao Márcio Cachapela, Paulo Diva, Pedro Marques e Vasco Valadares pelas fotos que ajudam a ilustrar a crónica. 

#canaldoxofred












31 janeiro 2020

Fim de Semana com o Morto


22/12/2019 - Belém - Garajau-de-dorso-castanho

Domingo, dia 22 de Dezembro estive o dia todo no "trabalho". Traduzindo, estive o dia todo na passarada. Foi um dia bem passado com o Pedro Nicolau, em Lisboa e arredores. Sempre achei fascinante a forma como este hobby aproxima gerações.

Garajau-de-dorso-castanho
Foto Jorge Fernandes

Numa das muitas conversas do dia lembro-me de o Pedro se sair com um "temos de pensar que algures por aí está uma bomba, resta saber onde". No fundo, verbalizou aquilo que toda a tribo estava a pensar. Nos dias anteriores tínhamos sofrido as consequências da depressão Elsa, e estávamos em pleno rescaldo. Mau tempo no mar e em terra podem trazer surpresas ornitológicas e foi isso que procurámos o dia todo. Surpresas não houve, mas vimos algumas aves raras, como os gansos que ainda hoje andam pela Ponta da Erva, e uma gaivota-prateada em Algés.
Satisfeitos, demos o dia por terminado ainda antes das 17h. Mal sabíamos que ainda faltava o melhor. Mais ou menos como quem vai à feira popular e sai sem ter andado na montanha russa. 
A verdade é que às cinco e pouco da tarde eu já estava no sofá, meio sonolento.

Eram 17h37 quando o smartphone do diabo emite o aviso sonoro do WhatsApp. Como um cão obediente condicionado por Pavlov, agarro nele quase no segundo seguinte. Era o Carlos Pacheco a mandar uma foto para um dos grupos sobre raridades que hoje pululam por todo o lado. Na foto estava uma gaivina que parecia um garajau-de-dorso-preto (Onychoprion fuscatus). Aí os olhos saltaram-me das órbitas e a começou a volta na Space Mountain. 
Para quem não conhece, esta é uma montanha russa espetacular da Disneylândia em Paris, que tem a particularidade de ser fechada e ser feita às escuras (*). O sol já tinha desaparecido, e o paralelo faz todo o sentido neste caso. 

Voltando à vaca fria ou, neste caso, ao WhatsApp, além da já referida foto, estava apenas uma curta mensagem a informar o local: “Agora mesmo no Parque das Nações”. Aguenta coração. Uma bomba daquelas no meu quintal. A informação foi rapidamente complementada com a referência de que a ave estava muito debilitada e com um apelo para que se procedesse à recolha, para entrega em Monsanto.
Logo de seguida vieram as coordenadas.

Garajau-de-dorso-castanho
Ainda consegui ler as mensagens até às 17h40 – altura em que o Pedro Nicolau perguntou quem tinha lanterna - mas confesso que já não conseguia raciocinar e quase perdi o dom da fala.
Limitei-me a articular um “Tenho de sair! Preciso duma lanterna!”. Vendo os meus nervos, a Sandra só disse “Respira!!!”. Bem que tentei, mas estava difícil.

Saí a correr, com uma caixa de papelão, uma toalha e a lanterna. 
Entrei no carro, coloquei as coordenadas no telemóvel, e segui sem olhar para trás. O WhatsApp não parava de tilintar. 
Dois ou três minutos depois, cheguei ao destino. Era perto do Pingo Doce, ao lado da estrada. “Que raio! Isto não faz sentido. Não há aqui nada que se pareça com as pedras da foto.”
Toca o telemóvel. Era o Pedro Marques a perguntar se eu já estava no local. “Ainda não. Estou a tentar perceber onde é!”. 
Lá começo a olhar outra vez para as mensagens. Afinal as coordenadas eram perto da antiga FIL, e não na Expo.
-Ora bolas!
Voltei a colocar as coordenadas no Maps e realmente aquilo era entre Alcântara e Belém. Isto de faltar oxigénio no cérebro tem destas coisas. Não sei bem como, tinha posto o destino errado na App. Devia ter respirado fundo, em vez de sair desalvorado. Das duas uma, ou as coordenadas estavam erradas, ou o bicho não estava no Parque das Nações. 
Mais um ou dois telefonemas ao Carlos Pacheco e, finalmente, lá chegou a confirmação de que as coordenadas estavam certas. Eram mesmo na antiga Feira das Indústrias, a cerca de vinte minutos. 

Fui o mais rápido que consegui, sem desrespeitar (muito) os limites de velocidade. O Nicolau tentou ligar-me várias vezes sem sucesso. O raio do Bluetooth estava a fazer das suas outra vez. Lá conseguimos falar, para aí à décima tentativa, apenas para chegar à conclusão de que não sabíamos bem onde é que aquilo era. O telefonema foi rápido. 
Dei-lhe as referências que me tinham dado a mim. 
“Eh pá, tenho de desligar, que estou quase sem bateria.” Que surpresa. O Pedro, como de costume, andava no fio da navalha. No final do dia quase tinha ficado sem bateria na câmara. Agora era no telemóvel. Ainda pensei como é que ele faria, se ficasse incontactável e não encontrasse o sítio. Enfim, “Not my problem!”.  
Quando desliguei é que tentei, finalmente, respirar fundo. “Ainda falta mais de um quarto de hora de condução. Tenho de ter calma.” Até ali tinha-me limitado a agir por instinto. 
Lá comecei a perceber qual era o caminho que ia seguir e, ao fim de um percurso que me pareceu da Terra à Lua, cheguei. Ou, melhor dizendo, quase. Faltavam trezentos metros e não era possível avançar mais de carro. “Só acesso ao parque” dizia o sinal de sentido proibido. Estacionei o melhor que pude e segui a pé. Trezentos metros são três minutos. Há males piores.

Garajau-de-dorso-castanho
Ia a toda a velocidade, com a caixa e a toalha na mão, já a meio caminho quando, de repente, um Smart sobe o passeio e se atravessa à minha frente. Era o Nicolau a chegar em grande. Pelos vistos neste caso, além da montanha russa, também havia carrinhos de choque. Teve de dar meia volta para estacionar lá atrás onde eu tinha deixado o Duster. Veio a correr e mais um ou dois minutos já estava ao meu lado. Terá batido algum recorde? 

Chegámos juntos ao destino. Era “numa árvore ao pé do viaduto em frente à antiga FIL”. Liguei a lanterna e começámos a busca. Ao fim de trinta segundos já tínhamos passado a pente fino as oito árvores que correspondiam à descrição. Nada! Comecámos a ver a relva, os buracos na relva, o passeio, o alcatrão junto ao rio. Nada! O pânico começava a instalar-se. “Acho que estamos f****!”, disse o Nicolau.
Entretanto começo a ver lá ao fundo alguém com uma lanterna a fazer sinais de luzes. Eram o Pedro Marques e o António Gonçalves. Tinham chegado uns minutos antes e também andavam a bater a zona sem sucesso. Como eu disse já há alguns anos, “Isto são sempre os mesmos!”. 
A busca continuou. Estávamos cada vez mais longe do ponto original, e a expressão “baratas tontas” servia que nem uma luva. Às 18h28 o Pedro Marques liga-me. “Está aqui. Já morreu!”. O registo de chamadas não mente e a chamada só durou dez segundos. É assim na montanha russa. A diversão acaba de repente. 

Mais um minuto e já estávamos todos juntos outra vez. O bicho tinha sido encontrado a uns bons cinquenta metros da árvore onde o tinham deixado. Fraco como estava não teria certamente ido lá parar pelos próprios meios. Alguém teria pegado nele? Um cão ou um gato? Nunca saberemos. 
Ainda ficámos um bom minuto especados a olhar para o bicho, a processar a notícia. Até houve alguém que reparou que o olho ainda brilhava. Tinha morrido há pouco tempo, mas que estava morta, lá isso estava. Não havia como fugir a essa triste realidade. Bem que podia ter esperado mais meia-hora.
"O olho ainda brilha!"
Garajau-de-dorso-castanho
Só restava documentar o acontecimento, e assim fizemos. Foto para aqui, foto para ali. Vira deste lado, vira daquele. De asa aberta, de cima, de baixo, de lado. 
Havia também a questão da identificação. Seria mesmo um garajau-de-dorso-preto? Nesse caso seria um terceiro avistamento em Portugal Continental, o que não era coisa pouca.
Apesar da luz amarelada dos candeeiros, o bicho parecia mais acastanhado do que preto. Rapidamente fui ao carro buscar o Collins. Como se tratava de um juvenil, a identificação era mais complicada. Poderia ser um garajau-de-dorso-castanho (Onychoprion anaethetus) ? Nesse caso seria o primeiro a aparecer em Portugal Continental. Uma bomba das grandes. Essa possibilidade já justificava mais uma ida ao carro, desta vez para consulta ao Duivendijk, o tal guia de aves só com texto. A pouco e pouco, a ideia começou a ganhar forma. O tamanho, padrão da cabeça e a já referida cor apontavam todos na mesma direção. Tínhamos mesmo uma bomba atómica nas mãos. 

Aí surge o pedido do Carlos Pacheco para alguém guardar a morta no congelador, para posterior análise de proveniência. Morta sim, mas ainda podia servir a ciência. Como portador da caixa de cartão eu era, obviamente, o melhor candidato. Comecei rapidamente a fazer contas de cabeça. A Sandra não iria de certeza achar piada ao convívio com um cadáver no congelador. "Se quiseres eu levo!". Era o Pedro Marques a oferecer-se para levar a cabo a árdua tarefa. Lá me fiz homem e liguei para casa. O que ouvi do outro lado foi um "Hã?!" incrédulo. Realmente, como é que se justifica o pedido quase irreal? Tive que me esforçar bastante - "É só por uns dias..." - mas acabei por conseguir. "Traz lá isso!"

E pronto. Foi assim que acabei por passar umas semanas com um morto no congelador. Não é para todos. 
A história acabou - por agora - no dia 4 de janeiro com a mensagem mais estranha que recebi na vida:
"Olá! Bom Ano! Queria combinar contigo para recolher o cadáver."
Era  o Carlos Pacheco, que queria pôr a investigação em marcha. Muito me ri a ler o texto. Segundo sei, as análises já estão em curso.
Um dia destes saberemos novidades. 

Resta-me agradecer ao Jorge Fernandes pela única foto da ave ainda com vida. Vim a saber mais tarde que estava a dar um passeio de bicicleta quando teve o encontro imediato e que tirou a foto com o telemóvel. E esta, hein?!

#canaldoxofred

(*) Hoje em dia o Space Mountain chama-se Hyperspace mountain.