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25 maio 2022

O Ruivo do Alvor

Alvor, 21/04/2022

Os tempos difíceis e de pouca esperança duram e duram e duram. Semanas transformaram-se em meses, que se transformaram em anos. Sai Covid, entra a guerra e a inflação. O novo normal é muito difícil de aceitar como normal. 

Borrelho-grande-de-colar-ruivo (Charadrius leschenaultii)

As pessoas passaram a viver mais no presente. Terá sido por isso que, chegados a Abril de 2022, depois de uns tempos sem feriados, houve uma debandada para o Algarve entre os dias 15 e 25. Páscoa e 25 de Abril em fins de semana seguidos eram ouro sobre azul. Uma oportunidade única de, apenas com cinco dias de férias gastos, se usufruir de 11 dias de descanso. Se a isto, juntarmos o fim da obrigatoriedade do uso de máscara, estavam reunidos os ingredientes para um cocktail explosivo e mais uns dias de inferno lá em baixo. 

Seguindo a minha tradição, nesses dias fiquei por casa. Lisboa torna-se um local mais agradável, onde há lugar em qualquer restaurante e se consegue andar tranquilamente por quase todo o lado. 

No Reino dos Algarves, mais gente significa que há mais observadores, o que implica que pode haver mais descobertas. 

Vamos ao que interessa, ou seja, à história do Ruivo. No Domingo, 17 de Abril, o Paulo Caseirito, observador de aves ainda não muito conhecido pela tribo, foi ao Alvor dar uma volta. É um local simpático e de acesso fácil. Tem um circuito bem marcado e plano, onde podem ser observadas muitas aves dentro dos tanques das salinas, uns abandonados, outros nem tanto. A volta terá corrido normalmente, tendo observado as aves normais para a área e colocado a lista normal na plataforma mais usada cá no burgo. Não saiu alerta nenhum, para o ciberespaço, uma vez que essa lista só tinha aves comuns. Entre as aves comuns observadas estavam um, e apenas um, borrelho-de-coleira-interrompida (charadrius alexandrinus). Há detalhes, como este, que são importantes. E isto é tramado, porque o diabo esconde-se nos detalhes.

Passados três dias, já na quarta-feira dia 20, o observador Caseirito resolveu inserir uma foto do tal "alexandrinus" noutra plataforma da moda, o iNaturalist. Nesta plataforma podemos ir explorando as fotos inseridas por outros e ir dando as nossas sugestões de identificação ou ir confirmando as alheias. O borrelho mais famoso dos últimos tempos estava lá inserido como um vulgar alexandrinus, com a respectiva foto. Já havia, inclusivamente, quem tivesse confirmado essa identificação. Este registo estava destinado a tornar-se mais um registo sem história.

O pessoal acotovelava-se no caminho estreito
Foto Susana Almeida



Mas o destino tem coisas curiosas. Fosse por sorte, por acaso ou outra razão qualquer, um dos observadores Portugueses mais conhecidos - Rafael Matias - cruzou-se com a foto, e o resto é história. Ficou com a pulga atrás da orelha, pediu mas fotos e já está. Qual Alex, qual quê. O que estava no Alvor era nem mais nem menos do que um borrelho-grande-de-colar-ruivo (Charadrius leschenaultii), o Ruivo. Ora, o Ruivo é um registo tão anormal que era a primeira vez que alguém via um ruivo destes em Portugal. 

Quando a notícia chegou aos fóruns especializados, já a noite de quarta-feira ia bem adiantada. Estava de pijama quando vi a foto e tive o baque do costume no coração. A sonolência habitual, em frente à televisão, desapareceu num ápice. Por muito que tentasse ver um borrelho normal na foto, não consegui. A identificação estava certa e isso queria dizer que tínhamos raridade no Alvor. E agora?! 

Ainda me deitei por uns minutos mas, a cabeça não parava. Resolvi analisar os dados da localização e ver exatamente onde o bicho tinha sido avistado e onde havia de estacionar o carro, caso tivesse de lá ir. Deitei-me outra vez. O sono não aparecia e fui tendo uma conversa comigo próprio:
Já lá não deve estar, de certeza. Foi domingo, e hoje já é quarta. É o mais certo. Pois é. Não está mas, se estiver, vou lá no fim-de-semana. Pois, mas, no fim de semana é arriscado porque já passaram muitos dias. O melhor seria ir o quanto antes. Pois é. Mas sem notícias não vou, que é um risco gigantesco. 

O sono tardava em aparecer e, antes de adormecer, já tinha decidido. Se houver notícias, vou amanhã. Meto um dia de férias e vou. É seguir a máxima dos arroladores ingleses, "You just get up and go!".

Borrelho-grande-de-colar-ruivo (Charadrius leschenaultii)
Primeira aparição em voo
Foto Rui Pereira

No dia 21, quinta-feira, acordei cedo. Estava a contar à Sandra os planos da  pólvora, e a acabar de dizer que muito provavelmente o Ruivo já teria seguido caminho quando, por volta das 8h, surge a mensagem do Lars Gonçalves "Estou a vê-lo agora!". A foto com a evidência apareceu logo de seguida. 

Ora bolas! Tínhamos conversa. A situação estava prevista e por isso o pânico não se instalou. Agora era "só" ir para baixo e ver o bicho mas, como ir sozinho é chato, comecei uma ronda de contactos. Ao fim de poucos minutos era aparente que havia equipa, o que era bom mas, só iríamos conseguir sair depois das 11h o que já não era assim tão bom. O último a chegar foi o Paulo Alves, que era quem vinha de mais longe. Quando chegou ao ponto de encontro já eu, o Vasco Valadares e o Pedro Ramalho estávamos no café. Era tudo à grande e sem pressas. Seguimos para baixo, com a habitual paragem na área de serviço tradicional, que com o karma não se brinca. Aproveitámos e comemos qualquer coisa, para enganar a fome. A tarde ia ser longa. 

Chegámos ao Alvor ainda não eram duas da tarde. Obviamente que o bicho não estava à vista. Tinha voado logo de manhã para o estuário. As coisas não iam ser fáceis. O Departamento das Facilidades não costuma ser o meu, infelizmente. No local encontrámos mais dois sofredores que também tinham vindo de Lisboa, o Rogério Rodrigues e o Rui Pereira. 

Depois da troca de impressões dos primeiros instantes, o grupo dividiu-se. Uns ficaram perto do local do último avistamento do Lars, outros foram andando à volta do tanque onde o Ruivo tinha sido visto de manhã. Eu optei por ir ver umas centenas de metros de vaza a norte, no estuário, perto do local do avistamento inicial do Paulo Caseirito. A maré estava praticamente vazia. A minha teoria era tão boa como outra qualquer, "Vai comer na vaza ao estuário e vem para o tanque na maré cheia", pensei. 

O Ruivo vem ver o que se passa

Avistaram-se algumas limícolas mas, nada ruivo. Optei por voltar para trás quando o caminho ficou bloqueado. Vim lentamente, a ver tudo o que mexia. Não consegui transformar nenhum dos maçaricos, borrelhos ou pilritos em qualquer coisa com colar ruivo, e não foi por falta de esforço. Passados uns minutos já estava outra vez com o Vasco, que tinha ficado num dos vértices do tanque. O resto da malta estava em parte incerta. 

Eram 15h36 quando começo a ouvir um som estranho, familiar e desconhecido ao mesmo tempo. Tri-tri-tri-tri-tri, sem parar. "O que é isto? O que é isto?", "É uma chilreta", diz o Vasco. "Parece mas é uma perdiz-do-mar.", disse eu. Lá consegui perceber de onde vinha o som e pôr os binóculos em cima do pontinho no céu. Tri-tri-tri-tri-tri, continuava ele. Quando ficou mais próximo, percebi que nem chilreta nem perdiz. Era uma limícola, género borrelho, e com asa mais comprida do que o normal. "Tens a câmara à mão? Acho que é o bicho!". O Vasco estava a segui-lo no telescópio e não conseguiu tirar a câmara a tempo. Isto não dá para tudo. Continuei a seguir o Ruivo algumas dezenas de segundos, até o perder de vista no lado oposto do tanque. Só aí é que baixei os binóculos. Senti a adrenalina a correr nas veias. Estava feito, pensei. A pouco e pouco o alívio foi-se instalando. 

A viagem não tinha sido em vão. Agora, era seguir para bingo, ou seja, ver se conseguíamos mais qualquer coisa. Fotos não tinha, nem o Vasco. Vi que o Pedro, o Rogério e o Rui estavam uns duzentos metros mais à frente. Seguramente também teriam visto o espetáculo. Liguei para o Pedro a perguntar. Notava-se bem a excitação na voz. "Eh pá, o bicho passou-nos por cima!". Não me lembro do resto mas, a conversa foi curta. Já estávamos a caminho do ponto aproximado onde o Ruivo tinha pousado quando me lembrei de ligar para o Rogério, a perguntar se por acaso do lado deles tinham conseguido fotos. "Sim. temos fotos razoáveis do bicho em voo!". Impecável, pensei. Com evidência é sempre melhor e um avistamento com evidência vale por dois. Ainda não eram quatro da tarde e já podíamos vir para cima.

Borrelho-grande-de-colar-ruivo
Primeira aparição em voo
Foto Rui Pereira

Entretanto, o local estava a ficar mais concorrido. O pessoal do Algarve estava a sair do trabalho e começava a aparecer. Fomo-nos espalhando pelo circuito à volta do tanque. Avancei até ao local onde pensei ter visto o bicho a pousar mas, não o consegui vislumbrar no emaranhado da vegetação. Voltei para trás e juntei-me ao pessoal que estava junto ao parque de estacionamento. Ninguém dava com o bicho. Às vezes passava também o ocasional grupo familiar de turistas muito espantado com a movimentação pouco habitual na zona. Perguntavam e nós explicávamos. As caras já não são tão de espanto como eram há uns anos quando ouviam a resposta "estamos à procura de uma ave rara" mas, continuam a ter um pouco de riso à mistura. 

Já tinha passado mais de uma hora de busca infrutífera. Por volta das 17h30, estava junto ao local onde o Ruivo tinha feito a sua aparição inicial em voo quando, finalmente, vejo um dos grupos de busca a apontar as câmaras e os telescópios. Dois minutos de caminho e já lá estava. O pessoal acotovelava-se no carreiro estreito, com as máquinas a funcionar a todo o gás. O Ruivo lá andava, tranquilamente, no meio da vegetação, juntamente com uns "amigos" das espécies mais comuns. O laranja suave do colar e do barrete saltavam à vista. Pedi um dos telescópios emprestado por uns segundos e enchi o olho. Depois peguei na bridge e fiz os registos possíveis. Quando já não sabia mais o que fazer, troquei a bridge com a dslr do Vasco e tirei umas fotos com uma máquina a sério. 

O Ruivo come uma minhoca

Foi interessante ver os resultados de uma e de outra, bridge e dslr. Percebi que tinha feito a aposta certa quando escolhi o material ao sair do carro. Quando a distância é muita, os registos são sempre fracos, mas os menos fracos são, normalmente, os obtidos pelas superzoom. Foi com isso em mente que escolhi deixar a dslr no porta-bagagens. O telescópio também lá ficou mas, esse foi sobretudo por uma questão de peso e de poupar as costas, que a idade não perdoa. 

Voltando à vaca fria, o pessoal já estava mais na conversa do que na observação. Passava pouco das seis da tarde quando resolvemos dar o evento por encerrado e ir andando para os carros. De barriga cheia custa sempre menos. O pessoal da zona foi saindo, com a conversa típica do "Tenho de ir para casa!", "Tenho de ir buscar os miúdos!" e "Tenho de ir fazer o jantar!". Nós, que tínhamos vindo de mais longe, pensámos que não merecíamos ir para cima sem o devido repasto. Ainda era cedo mas, podia ser que estivesse alguma coisa aberta. Não esquecer que, no Algarve, os restaurantes muitas vezes seguem os horários de outras paragens, mais a norte da Europa, onde se janta a horas do lanche. Como quem procura sempre encontra, com a ajuda dos nativos Lars e Susana acabámos por jantar perto, num tal Mula Cheia. O sabor foi o do costume nestas circunstâncias - o do triunfo. Para mim foi ainda mais especial, porque foi a primeira vez que tive o prazer de ter o Lars e a Susana como companhia a uma refeição. Oxalá isso se repita por muitas vezes. 

Seguimos para Lisboa já tarde, e chegámos ainda mais tarde, mas não ouvi ninguém a queixar-se no caminho. Não há muitos dias assim...

Ria de Alvor. A Natureza é muito bonita.
Foto Susana Almeida

Epílogo: 

O Ruivo não voltou a ser visto depois desse dia, malgrado os insistentes esforços de muitos observadores na sexta, e no fim de semana. Está mais que visto que a máxima dos colegas britânicos tem toda a razão de ser. "You just get up and go!". 

Resta-me agradecer à Susana Almeida e ao Rui Pereira as fotos que ajudam a ilustrar esta crónica.

#canaldoxofred