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07 agosto 2018

Alma-negra com Champanhe

31/7/2018 - 02/08/2018
Portimão - Madeira


Já há uns anos que na tribo se falava do mito do ferry para a Madeira e de como este seria uma boa oportunidade para ver aves "impossíveis". O Alma-negra, Bulweria bulwerii, por exemplo. Esse fantasma do mar é uma ave quase impossível de ver de uma forma tradicional, seja a partir de terra, seja através de uma pelágica "normal". A solução óbvia seria um barco que fizesse um trajecto até ao limite da ZEE de Portugal Continental. Ora, como não existe oferta de pelágicas desse tipo, o ferry para a Madeira parecia ser a única hipótese. Havia apenas um pequeno problema. Esse serviço não existia desde o início de 2012.

Alma-negra (Bulweria bulwerii) - Foto Luís Rodrigues

Muita conversa houve sobre este tema ao longo dos últimos anos. "Um dia vai haver outra vez" , "temos de aproveitar". A chamada "conversa de chacha".
Entre concursos anulados, repetidos e sei lá mais o quê, num belo dia de Junho de 2018, o ferry finalmente materializou-se. O serviço começaria no início de Julho.
As movimentações - leia-se conversas de Facebook - começaram de imediato. Pelo que li parecia que havia, pelo menos, umas duas ou três dezenas de interessados.
Como sempre, à boa maneira portuguesa, na hora da verdade sobraram quatro - Pedro Ramalho, Pedro Nicolau, Luís Rodrigues e eu - que acabaram por ficar cinco, com a inclusão do Alexandre Rica Cardoso.

Entre todos, conseguimos chegar a um consenso. Além da viagem de ferry, ainda iríamos incluir uma pelágica e um dia para ver as aves lá do sítio. Fosse como fosse, ia sempre ser uma viagem relâmpago, sempre a correr. A volta seria de avião.


O Ferry - Volcan de Tijarafe - parece grande mas não é...

Pelo meu lado tinha o grande objetivo de ver alma-negra no dia 31, ou seja, na ZEE Portuguesa. Tinha também o objetivo secundário de ver todas as aves que ainda produziam emails de alerta do ebird e que há anos me andavam a encher a caixa de correio. "Precisa de pombo-da-madeira", "precisa de canário-da-terra", "corre-caminho", "bis-bis". Irra! Já estava farto. Tudo o que viesse por acréscimo seria um bónus. 
Com o meu optimismo habitual, não depositava grande esperança no objetivo principal. Seria um tiro no escuro, ou quase.

A logística não foi nada fácil de pensar, uma vez que o ferry sai de Portimão e não de Lisboa. No meu caso lá consegui arranjar maneira de dormir já no Algarve na noite anterior e de ter apenas uma noite mal dormida, a do ferry. Os meus companheiros tiveram duas, uma vez que viajaram para o Algarve durante a noite de 30 para 31. Dessa viagem para baixo, na tarde/noite de dia 30, recordo um motorista de camioneta espirituoso que, na Gare do Oriente, quando lhe perguntei se a camioneta não ia ainda passar por Sete Rios, me deu a resposta "Ò amigo eu nem sei onde isso fica!".


Funchal - A gaivina e o ferry (Sterna hirundo)

Dia 31 lá nos encontrámos todos no cais de embarque, em Portimão. Surpreendeu-me a quantidade de carros e de pessoas presentes. Vim a saber mais tarde que, além do tráfego normal havia ainda as equipas que iam participar no Rally da Madeira. Enfim, lá se foi de vez a minha esperança de ter o ferry só para nós.
Embarcámos e tomámos logo conta de um canto junto ao bar cá de baixo. Depois começou a fase de exploração. Cadeiras tinha muitas, casas de banho poucas e más. A piscina - leia-se tanque da roupa - e os decks exteriores estavam cheios de gente, com aquele entusiasmo de estar num "cruzeiro de luxo".
Tal como previa, quando o barco começou a andar, as partes exteriores foram esvaziando a pouco e pouco, fosse do frio, do vento ou da náusea.

Por volta das 14h fomos para o deck exterior no piso mais baixo. Havia cadeiras e o bar e as casas de banho não estavam longe. Fomos experimentando bombordo e estibordo e acabámos por ficar do lado mais abrigado do vento. Com a inclinação do barco o corrimão e a amurada acabavam por não estorvar muito a visão. 
Lá nos instalámos, debaixo do escrutínio de muitos olhares curiosos "O que é que aqueles malucos esquisitos com binóculos estão a fazer?". As perguntas acabariam por começar um pouco mais lá para o fim do dia. 
Lembro-me de olhar para cima e ver que havia gente a espreitar na amurada dos dois decks superiores. Do último piso, o da piscina, ouviu-se uma voz feminina com sotaque madeirense a dizer com ironia "Nada de olhar para cima que eu não tenho cuecas!". Nem eu nem o Nicolau encontrámos uma resposta à altura. 


Cagarra vista a partir do ferry

Vê-se pouca coisa. Uma cagarra ou outra, e pouco mais. Às vezes o mar parece um autêntico deserto. Lembro-me que chegámos a estar mais de uma hora sem ver uma única ave. Aparecem apenas uma ou duas aves cada vez, intervaladas por grandes períodos de seca. Não foi um exercício fácil. A hora também não seria a melhor. 
Por volta das 16h45, numa altura em que estávamos apenas eu e o Nicolau de plantão, passou uma cagarra, que fiz questão de apontar ao Pedro. De repente, ele põe-se aos gritos "Bulwerii! Bulwerii!". Quando lhe perguntei "Onde?" já ele estava de pé, a correr para a amurada de máquina em punho. A verdade é que não a relocalizou, nem fotografou, nem ma apontou, nada. "Apareceu-me nos binóculos e estava perto. Pensei que era fácil apontá-la e fotografá-la mas enganei-me. Desculpa!". Não fiquei muito chateado mas fiquei triste. Estas situações são o pão nosso de cada dia em observações de marítimas, e temos de estar preparados. 
Quando o resto da malta chegou, o ambiente ficou pesado. O silêncio instalou-se. 
Pensei sempre que onde há uma pode haver mais e nunca desisti. Aqui, como na vida é sempre a melhor atitude. Às 17h35, estava eu a dizer qualquer coisa quando me aparece um vulto negro nos binóculos. Bulwerii? - pensei. Ainda me saiu um palavrão - ca****#! - numa fracção de segundo, o vulto desapareceu por trás dos calções do Nicolau, que estava de pé, à minha frente. Não o voltei a ver mas assumi que deveria ser "o desejado". Sobretudo pela asa esguia que me pareceu comprida e pela ausência de branco. O Luís Rodrigues também conseguiu vislumbrar a cor e o tamanho. Não havia certezas absolutas, mas, no meu íntimo sabia que tinha visto o grande objetivo da viagem. Perante as dúvidas que me foram sendo postas por quem não tinha visto nada, limitei-me a ripostar:
   -Sei bem o que vi. Não tenho a certeza absoluta da id porque nunca vi um Alma-negra. Amanhã, ao chegar à Madeira vamos ver muitos, certo? Amanhã confirmo ou não o diagnóstico. 
O Pedro Ramalho estava cada vez com ar mais sombrio e cabisbaixo. Olhei para ele e disse-lhe para não se preocupar, que eu ia arranjar um Alma-negra para o meu amigo Pedro Ramalho. "É a primeira vez que dizes que sou teu amigo", respondeu (injustamente). Seja como for, fiz essa promessa, e não mais larguei os binóculos. O Alexandre disse que se visse um nesse dia pagava o jantar. A pressão era gigantesca. Eu tinha mesmo de encontrar um Alma-negra. 
Cada vez havia menos gente no exterior. O frio aumentava. O spray das ondas ia ficando tatuado nos binóculos. Ouve-se um aviso no sistema sonoro. "Atenção Srs. passageiros, devido às condições climatéricas, a permanência no exterior é desaconselhada." 
É só para homens, pensei. E lá ficámos, estoicamente. 
Às 18h35, o sol já estava baixo, banhando com uma tonalidade de ouro tudo em que tocava. E foi assim, coberto de ouro, que vi um Alma-negra materializar-se nos binóculos, bastante perto do barco e quase ao nível do deck. Desta vez não havia dúvidas. Consegui apontar bem a zona e toda a gente o viu. Missão cumprida. A euforia instalou-se entre abraços e gritos. 

O alma-negra das 18h35 (foto Pedro Nicolau)
A festa não passou despercebida a alguns passageiros mais atentos. Um deles perguntou-me mais tarde "Ouça lá, o que é que o Sr. viu há bocado?". Quando lhe respondi "Uma ave", vi-lhe a desilusão estampada no rosto, complementada com um "Ah..." inexpressivo. Cada um é como é.
Ainda vimos mais uns dois ou três Bulwerii até ao final do dia, complementados com dois Pintainhos de bónus, que o Pedro Ramalho descobriu nesse palheiro que é o oceano. 
Quase com o sol a desaparecer lá resolvemos dar por terminada a sessão, sob os protestos do Nicolau, que teve de ser arrastado num colete de forças para dentro de portas. 
O Alexandre cumpriu a promessa e pagou o jantar, apesar das nossas objeções. Nas palavras dele, se não o fizesse a viagem iria correr pior a partir daí. 

Os nossos primeiros cinco avistamentos de Alma-negra na ZEE de Portugal Continental
(primeiro o do Nicolau, seguido dos "meus" quatro)
Para quem gosta de detalhes, no mapa acima vê-se onde começaram os avistamentos de Alma-negra. A azul-claro temos a ZEE Portuguesa. Os pontos, ordenados pela distância aproximada ao Cabo de S. Vicente:

X - 16h45 - 62Milhas Náuticas (MN) - 114Km - 1ª observação (Pedro Nicolau)
1 - 17h36 - 78MN - 145Km - 2ª observação 
2 - 18h35 - 98MN - 180Km - 3ª observação

3 - 19h33 - 118MN - 219KM - 4ª observação
4 - 19h50 - 124MN - 230Km - 5ª observação

A noite passou-se mal. O mais estranho foi ter conseguido dormir umas duas ou três horas, nem sei bem como. As cadeiras nem são desconfortáveis, mas dormir é numa cama. Entre o ressonar do vizinho do lado, o ressonar do vizinho da frente e o ressonar do vizinho de trás é muito complicado pregar olho. Às cinco e meia já estava de pé. 
Às seis e meia abre o bar e os passageiros começam dirigir-se para lá, estilo walking dead, à procura da primeira dose de café do dia. 


Um dos Almas-negras que consegui apanhar, já ao largo de Porto-Santo
Assim que a luz o permitiu, fomos lá para fora, para o sítio do costume. Via-se Porto Santo ao longe, na frente do barco.
Já não estávamos, claramente, num deserto. Imensas cagarras, inclusivamente em jangadas, muitos almas-negras. Algumas gaivinas e gaivotas. 
A estrela da manhã foi uma Pterodroma sp. ou Freira, bem perto. É realmente um bicho giro, com aquele capuz. Resta saber se as fotos conseguidas chegarão para uma id conclusiva. Um velhote que tinha ouvido o Pedro Ramalho gritar "Freira!" ainda me perguntou como é que estávamos a ver freiras no mar, se elas estavam no convento, ao que respondi que os meus binóculos eram especiais. 
O Alexandre contou também uma história engraçada. Uma senhora perguntou-lhe o que tínhamos estado a ver toda a viagem. Quando ele respondeu aves marítimas, ela terá dito que assim ficava mais descansada, porque pensava que estávamos a ver coisas que ela não conseguia ver. Ele terá que respondido que, no fundo, era exatamente assim. Há com cada uma...

A chegada ao porto do Funchal foi um momento alto. No meio das gaivotas e das gaivinas comuns, apareceram dois Garajaus-rosados - Sterna dougallii. Uma das aves que tinha esperança de ver e que há muito procurava. Depois do desembarque, e ainda antes do almoço passou um andorinhão-da-serra. A segunda parte da viagem começava bem.


Garajau-rosado (sterna dougalii) - Funchal
Resolvi não ir à pelágica da tarde. Com a noite mal dormida no barco as costas deram sinal e achei que não iria aguentar seis horas metido num semi-rígido a bater nas ondas. Não quis arriscar. O pessoal confirmou mais tarde, à chegada, que a viagem foi bastante dura.
Deixei os meus companheiros e ainda fiquei umas duas horas pela marginal. Voltei a ver as minhas amigas dougallii, muitas borboletas monarca - espetaculares - lagartixas-da-madeira e, claro, a estátua do CR7 à porta do museu.
Já no alojamento, consegui ver três canários-da-terra a caminho do café. Mais outra lifer, menos duzentos emails. 
O dia acabou com a chegada do pessoal, perto da meia noite. Nas palavras deles perdi, sobretudo, a espetada ao jantar, o que não é coisa pouca.

O dia 2 de Agosto começou com calma. Acabámos por sair apenas pelas 9h30. Que luxo!
Fomos primeiro ao Lugar de Baixo, onde quase nada se viu. Depois seguimos para os Balcões, onde chegámos tardíssimo. A consequência foi que aquilo parecia o Estádio da Luz em dia de jogo. Mesmo assim conseguimos rapidamente ver um Pombo-da-Madeira logo no início do trilho, o que diminuiu imediatamente o nível de stress. Vimos algumas estrelinhas no caminho e mais uns quatro ou cinco pombos no miradouro. Isto, claro, mais os omnipresentes tentilhões. 
Já só faltava a o corre-caminho. 


Pombo-da-Madeira (Columba trocaz) - longe, mas foi o que se arranjou.
Em relação ao próximo destino, gerou-se alguma discussão. Uns queriam ir almoçar, outros, como eu e o Luís queríamos despachar o último objetivo quanto antes. Tento sempre seguir a ideia inglesa do UBBB (under the belt before breakfast). Ou, neste caso, UBBL (under the belt before lunch). 
Ao fim de uns minutos de indecisão lá seguimos para a Ponta de S. Lourenço, à procura das berthelotii. Ainda parámos no caminho, no Faial. Aves havia zero, mas foi uma oportunidade única na viagem para ver e fotografar a costa Norte que é, tal como a Natureza, muito bonita.



Costa Norte (vista a partir do Faial)
A ponta de S. Lourenço parecia a baixa lisboeta em Agosto, cheia de carros e de gente. Comecei a ver a vida a andar para trás mas, ao que parece, umas centenas de metros antes, na Quinta do Lorde, o Pedro Ramalho tinha reparado em alguns corre-caminho. Retrocedemos e vimos os bichos quase de imediato, com mais uns canários de bónus. Deu para fotos, tudo. Observação cinco estrelas.
Resumindo, ainda não eram 15h e tínhamos todos os objetivos cumpridos. O almoço foi tarde, em Machico, mas assim foi mais descansado. 


Corre-caminho (Anthus berthelotii)
Depois de almoço, explorámos a zona, sem grande sucesso. Convenci o pessoal a tentar o Cigarrinho, a subespécie de tomilheira da Madeira, num miradouro próximo. Consegui ver a sylvia, mas não me livrei de uma queda, que poderia ter estragado a festa. Felizmente, não foi muito grave. 
Acabámos a tarde no Caniçal, a comer lapas e bolo do caco. Vida difícil...

A ideia era ir direto para o aeroporto mas, como o avião estava atrasado, ainda houve um desvio inútil instigado pelo mais jovem do grupo. Não se perdeu tudo. Pelo menos ficámos a saber que não vale a pena voltar a esse spot. 
Finalmente, lá seguimos para o aeroporto, de onde levantámos tardíssimo, cerca das 23h.

Depois de um dia cansativo, já dentro do avião, mais uma surpresa.
-É o Sr. Frederico Morais? O Sr. está no lugar errado!
Lá "tive" de mudar para fila um. Não foi uma estreia, mas nada melhor que acabar o dia em grande, em Executiva, com uma taça de champanhe sobre o Atlântico. A cereja no topo do bolo.

Quem tem amigos tem tudo...
Um grande abraço, Gonçalo! 


Foto de família depois da chegada ao Funchal (foto Luís Rodrigues)
Resta-me agradecer ao Pedro Nicolau e ao Luís Rodrigues as fotos que ajudam a ilustrar esta crónica, e a todo o grupo por ajudar a tornar esta experiência inesquecível. Um abraço e obrigado a todos!

#canaldoxofred

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