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01 agosto 2021

Laranja no Raso

18/07/2021 Cascais

As últimas visitas aos locais do costume tinham rendido pouco. Julho não é propriamente conhecido por ser um bom mês para observação de aves. Foi por isso que programei ir ver marítimas para o Cabo Raso no Sábado e Domingo (17 e 18). Na observação de marítimas, mesmo que não apareça nada, pelo menos vê-se o mar, e toda a gente sabe que a Natureza é muito bonita.

Garajau-real-africano (Thalasseus albididorsalis)

Sábado não se viu nada de especial. Teoricamente, domingo seria melhor. O vento crescia um pouco e virava ligeiramente para terra. A teoria vale o que vale. Como os bichos fazem sempre o que bem lhes apetece, domingo estava a ser ligeiramente pior que sábado. As horas iam passando e os poucos bichos também. Oito horas, nove horas, nove e meia. Já se começava a olhar para o relógio. Nesse dia estava acompanhado de outro frequentador assíduo da zona, o Hugo Blanco. A observação esteve assim assim, mas a conversa esteve boa. Quando há poucos bichos costuma ser assim. 

Por volta da nove menos um quarto, começámos a falar em arrumar o estaminé e ir embora. Eu, sentado na cadeira com os binóculos, a minha posição preferida. O Hugo estava ao telescópio.
-Damos mais uma volta antes de ir embora. -disse o Hugo.
-Vês tu ao longe e eu ao perto - da cadeira é que eu não ia sair. 

Dei mais uma volta prolongada com os binóculos. 
-Bolas, nem uma gaivota! - que é como quem diz, vamos mas é andando. 
Olhei para o Hugo a ver se ele se mexia, que isto para ir embora, ou vai toda a gente ou é melhor não ir ninguém, não vá o diabo tecê-las.

Lá voltei a levantar os binóculos. De repente, vejo pelo canto do do olho esquerdo um bicho solitário fazer a sua aparição no Anfiteatro do Raso, relativamente perto. Era uma gaivina. Reparei no bico claro e, mentalmente, tentei encaixá-la em tudo o que conhecia. Ainda me veio à cabeça uma chilreta mas, essa é pequena e esta era grande, do tamanho de uma gaivota. O raio atingiu-me uma fração de segundo depois e fez-se luz. Era um unicórnio! Uma gaivina de bico laranja. Qualquer que ela fosse era dinheiro em caixa. Nunca tinha visto nenhuma. 
Não consegui pensar em mais nada. O resto foi feito por instinto. Levantei-me da cadeira de um salto, como se tivesse vinte anos e, em menos de nada, cobri o metro e e meio que me separava do coldre onde estava a máquina. Peguei nela e comecei a disparar como um louco. Ao mesmo tempo, fui gritando para o Hugo:
-Olha ali! Olha ali! Olha! Olha! Olha! Chefe! Chefe! Chefe! Chefe! Chefe!
Só parei quando tive a certeza que ele também já estava a ver a ave. Tchac! Tchac! Tchac! Tchac! Tchac! Nunca tirei o dedo do gatilho e a máquina nunca se engasgou. Foi disparar como se não houvesse amanhã. Quando já só se via um pontinho branco ao longe, na direção do Cabo da Roca, levantei o dedo.
-Vê lá não gastes a bateria toda! - ainda ouvi ao fundo.

Garajau-real-africano (Thalasseus albididorsalis)

-Mostra lá as fotos! - disse o Hugo.
Só nesse momento é que reparei que estava todo a tremer, da adrenalina. 
-Calma aí! Deixa-me encostar aqui um bocado. 
Encostei-me à parede do farol uns segundos, para recuperar. O instinto voltou a dar, lentamente, lugar à razão. Respirei fundo umas quantas vezes e lá arranjei forças para levantar a máquina.

Bom, vamos lá ver as fotos, pensei. Deu para perceber que, por sorte, a máquina estava mais ou menos bem regulada, e que os brancos não estavam "rebentados". Ali no Raso é muito fácil isso acontecer, porque o sol da manhã bate diretamente nos bichos, com a agravante de também ser refletido pela água. Em relação à ave é que era mais complicado. À partida, o mais provável seria o garajau-bengalense mas, olhando para as fotos e pensando no que tínhamos visto, não estávamos convencidos. Um bicho muito grande, com voo possante. Cheirava a algo mais. A única conclusão possível era que tínhamos de ir para casa estudar e usar a rede de contactos.
Reparei que o Hugo já tinha enviado uma foto "back of the camera" para um dos grupos de whatsapp da tribo. Tudo, apenas em nome da rápida divulgação, claro. 
Os telemóveis já fervilhavam com a conversa. Toca a andar para casa a todo o gás.

No caminho, continuavam os "tlins" do whatsapp. Nos quarenta minutos de caminho, tive de me concentrar na condução e resistir à tentação de ler o que se passava. Maldita máquina diabólica. Às vezes dá-me vontade de partir o telemóvel. O Conan, é que tinha razão. Sim, o Osíris e não o Rapaz do Futuro.

Finalmente, quando me consegui sentar em frente ao computador vi que, só contando as focadas, tinha mais de duzentas fotos. Já dizia o outro, focadas qualquer um tira mas, menos mal, não seria por falta de fotos que o bicho não ia ser identificado. 
E o raio do telemóvel continuava a tilintar. E manda fotos assim e manda fotos assado e mais isto e aquilo. "Tenham calma que tenho mais de duzentas fotos para ver." 
Pressa para quê? O importante estava feito.  

Garajau-real-africano (Thalasseus albididorsalis)
 
A verdade é que, processadas as fotos e lida alguma literatura, as conclusões teimavam em não aparecer. Gaivinas de bico laranja há muitas, seu palerma. Peguei numa dezena e meia de fotos e partilhei o álbum. Quanto mais cabeças a pensar, melhor. 
Ao fim de umas horas, já com muito estudo e várias opiniões recolhidas tínhamos, ainda, quatro espécies candidatas, ou seja, todas. O já referido garajau-bengalense, o garajau-real-americano, o garajau-real-africano e o garajau-elegante. Não era um grande cenário mas, é a vida.
No quartel-general virtual, a minha opinião e a do Hugo, tendo também em conta o que tínhamos visto no terreno era de que se tratava, muito provavelmente, do garajau-real-africano mas, como descartar, sobretudo, o irmão americano?

As horas transformaram-se em dias. Fomos fazendo o caminho das pedras, saltando de contato em contato. Só na quarta-feira, dia 21, é que tivemos a resposta detalhada de que precisávamos. Sempre era o garajau-real-africano e o texto explicava o porquê, com todos os pormenores. 
Nada melhor que falar com quem tem trabalho publicado precisamente sobre o assunto que estamos a pesquisar. A internet abre possibilidades que há uns anos eram ficção científica. E não foi assim há tanto tempo que só havia telefones de discar e, há que lembrar que nem todas as casas tinham um.

E foi assim que ao terceiro dia pude descansar. Os meus piores receios tinham sido afastados. Esta gaivina não ia ficar no "Túmulo das gaivinas sp.",  também conhecido pelo "Túmulo das Gaivinas Desconhecidas".