O vírus maldito e a obrigação de confinamento em plena época de migração primaveril, atingiu o pequeno mundo dos arroladores Portugueses de forma profunda. A depressão instalou-se em força. As notícias eram poucas ou nenhumas e, desta vez, nem os ventos de Espanha serviram para nos ir animando. Os nuestros hermanos ainda estavam pior que nós. Nem de casa os deixavam sair.
Pelo meu lado, andei a explorar o meu "quintal", como lhe chamo, sem grandes novidades além dos residentes habituais.
Pintarroxo-trombeteiro (Bucanetes githaneus) (foto Vasco Valadares) |
A esperança é sempre a última a morrer e, não há mal que sempre dure mas, neste caso, se alguém me tivesse vindo com provérbios destes, eu tê-lo-ia mandado a um certo sítio. Andava muito animado, por estes dias. O desconfinamento do início do mês não ajudou muito, apesar de ser, teoricamente, um pequeno passo do início do fim do princípio deste drama. Uma "once in a lifetime experience", e que experiência.
A verdade é que os provérbios servem para alguma coisa. Bem do fundo do buraco negro onde estamos enfiados surgiu, sem aviso, um raio de esperança em forma de fénix. Neste caso uma fénix com o bico rosa e sem chamas a acompanhar.
Contrariamente ao que tem sido costume, desta vez a notícia apareceu no melhor dia possível. Foi no Sábado, dia 9 de Maio de 2020, já noite muito adiantada, que o Hélio Batista colocou um pedido de identificação no fórum aves. Perguntava ele se estaria a sonhar com um Bucanetes githagineus. Rapidamente recebeu a resposta. Nessa tarde, no Cabo Espichel, ele e os amigos tinham mesmo visto e fotografado um Pintarroxo-trombeteiro. A foto que acompanhava a pergunta não era má de todo e deixou toda a tribo a salivar. Aquele bico não enganava ninguém. Vim a saber mais tarde que a foto era do Paulo Diva.
Pintarroxo-trombeteiro - A foto que lançou o caos (foto Paulo Diva) |
Voltando à vaca fria ou, neste caso, ao trombeteiro, tratava-se do quinto registo para Portugal e, curiosamente, do terceiro para o Espichel.
Agora, impunha-se a pergunta, fica ou não fica? O histórico mais recente - 2013 e 2017 - mostrava que essas aves não costumam ficar. Fosse por isso ou pelo local onde apareceu, não tinha esperança nenhuma de ver a ave no dia seguinte.
Talvez por isso mesmo, dormi descansadíssimo as quase quatro horas disponíveis até à hora H. Nas vezes em que isso acontece normalmente o resultado é bom como, por exemplo, no caso do sula de Sesimbra - ver A Odisseia do Sula - mas nem essa lembrança me fez mudar de opinião. Às 5h45, saí de casa sem grande ansiedade. Não me passava pela cabeça ter o bicho na lista no final do dia. Não ia ver, mas lá que ia picar o ponto, ia. Não ia ser por meia dúzia de quilómetros e cinquenta minutos para cada lado que deixava de lá ir. Apanhei o Vasco no caminho e às 7h, mais coisa menos coisa, estávamos a estacionar junto à barreira da estrada, a um quilómetro do santuário. A barreira foi só mais uma má novidade trazida pelo vírus. Já lá estava também o Audi do Pedro Marques. A silhueta homem tripé, inconfundível, ia uns bons 100 metros lá à frente. Pegámos no material e seguimos caminho. O sol brilhava. Pelos vistos as previsões de chuva estavam enganadas, pensei.
Pintarroxo-trombeteiro (Bucanetes githaneus) (foto Pedro Marques) |
Mais uma meia-hora e chegam mais três desconfinados. O Rogério Rodrigues e o José Frade e a Ana Isabel. Pela falta de entusiasmo com que foram recebidos, rapidamente perceberam que o Trombetas não estava à vista. Lá continuámos todos a olhar em volta, sem sucesso, a meias com a amena cavaqueira do costume.
Por volta da oito e um quarto, pareceu-me sentir uns pingos ligeiros a cair na roupa. Ouço a voz da Ana Isabel, "Vem aí chuva da grossa!". Nem cinco segundos tinham passado e parecia que estávamos debaixo de uma cascata. E assim ficámos sete desgraçados no meio do (quase) nada, sem sequer uma árvore para nos abrigar. E agora!? Alguns, ainda tinham impermeável, outros nem isso. As arcadas do Santuário ainda estavam a umas boas duas centenas de metros. Podia ser na Lua, que era igual. Estávamos condenados.
Fui o mais rápido que pude e encostei-me a um arbusto junto ao muro da mãe d'água, a umas dezenas de metros. Escusado será dizer que, quando lá cheguei já havia pouco a fazer. O impermeável ainda protegeu a parte de cima mas, da cintura para baixo era como se tivesse entrado numa piscina. Parece que outros terão tido uma outra opção, bem mais arriscada nos tempos que correm, de aproveitar a oferta generosa do Pedro Marques, e ficar a partilhar uns centímetros quadrados de um guarda-chuva minúsculo. Lá se foi o distanciamento social...
Pintarroxo-trombeteiro (Bucanetes githaneus) (foto Pedro Marques) |
Voltei para junto da malta só para ver que já estavam a começar a arrumar a trouxa. Com a chuva e a molha a moral tinha descido em flecha. Às nove já estávamos junto aos carros, não sem nos livrarmos de levar com mais um aguaceiro no caminho.
Tinha acabado de chegar o Márcio Cachapela. É um actor recente destas andanças, com uma figura fácil de recordar. Uma espécie de bom gigante. Nesta história acabou por se tornar no grande protagonista, como se verá.
Pois, já estamos de saída. Não, não vimos nada. O pessoal foi desistindo a conta-gotas. Vou andando, diz um. Vou para Pancas, diz o Frade. Até à próxima, diz outro. Eu e o Vasco já tínhamos decidido que íamos a uma segunda volta, assim que ganhássemos coragem e o tempo permitisse. Fomos para o carro pensar na vida. O Márcio, mesmo com o pessoal a desmobilizar, terá seguido a máxima do "já que estou aqui..." e disse que ia lá ver se via alguma coisa.
Estava cada vez mais convencido que tinha razão. Não ia haver Bucanetes para ninguém mas, o vício é assim, não nos larga. Pouco antes das dez respirámos fundo e seguimos, sem pressa.
Estávamos a chegar. Vimos o Márcio, a uns cinquenta metros. Nem liguei quando vi o Vasco a atender o telemóvel, nem reparei que o Márcio, ao longe, também estava com o telemóvel na mão, nem perguntei ao Vasco quem tinha ligado. Ainda passou um ou dois segundos até o Vasco dizer com um sorriso ligeiro e com uma calma despropositada:
-Bora! O Márcio tá a ver o bicho!
-Hã?!
Teve de repetir, a frase, para eu finalmente acreditar que tinha mesmo ouvido o que tinha ouvido. Acelerámos o passo e dois minutos depois já lá estávamos. Ah e tal, apareceu no fio, vocalizou e depois foi para ali para o terreno de cima, com uns pintarroxos. Dito isto, abre a P1000 e mostra a jóia da coroa. Não deixava dúvidas a ninguém. Escusado será dizer que agora não estava à vista. Bolas, pensei, agora vou ter de estar aqui o dia todo! Só me saem duques!
-Bom pelo menos está cá! - disse.
Fraco consolo. Passavam uns dez minutos das dez. Rapidamente ligámos aos sofredores que tinham desistido. O Pedro Ramalho que, vim a saber, já estava no Meco, o Pedro Marques que se não estava, devia estar lá perto, o Frade, estou em Alcochete agora já não volto e o Rogério já estou em cima da ponte hoje já não vou. Os dois primeiros voltaram a correr e, dez minutos depois já estávamos cinco juntos outra vez.
Ah e tal, vocalizou e foi para o fio... A foto que o Márcio nos mostrou quando chegámos (foto Márcio Cachapela) |
Nesta segunda iteração a tensão era de cortar à faca. As palavras eram poucas ou nenhumas. Junto aos pardais e pintarroxos das redondezas não andava. Raio do bicho!
-A cor é muito clara. Nota-se logo. - diz o Márcio.
Está bem, está bem, mas eu quero é ver com os meus olhos, pá - pensei - eu depois logo te digo.
-E descobri-o porque ele vocalizou.
Está bem, está bem, mas eu quero é ouvir com os meus ouvidos, pá - pensei - eu depois logo te digo.
-E descobri-o porque ele vocalizou.
Está bem, está bem, mas eu quero é ouvir com os meus ouvidos, pá - pensei - eu depois logo te digo.
Foi às 10h25. Passam uns dois ou três bichos em por cima das nossas cabeças, ao mesmo tempo que se ouve a voz do Pedro Marques:
-Vejam lá esse!
Quase de seguida diz o Márcio:
-É esse!
Vi um bicho mais corpulento que um pardal, cor de areia clara, com uma barra escura na cauda. Pousou no fio e consegui logo pôr-lhe os binóculos em cima. Já está!
Ainda ficou lá uns segundos até me lembrar de pegar na bridge. Quando apontei ao fio já ele estava no chão junto a uma poça. Ainda disparei mas já ele ia a levantar na direção do terreiro em frente ao santuário. Típico. Podia ter esperado mais uns segundos, mas não quis. O que é certo é que o tick já não me tiravam e que as minhas previsões de sofrimento tinham sido manifestamente exageradas.
Depois deste primeiro contacto, tendo o bicho desaparecido de vista, começámos rapidamente a espalhar-nos pelas redondezas, um aqui, outro ali.
Pensei um bocado e coloquei-me onde achei que dominava mais terreno, no extremo do terreiro, de costas para o santuário, a olhar para o jardim murado da mãe d'água. Nem cinco minutos tinham passado quando ouço algo parecido como uma daquelas cornetas de plástico dos miúdos. Pensei logo no Trombetas. O som vinha precisamente do lado oposto ao que me encontrava, do outro lado da mãe d'água.
-Alguém está a chamar o bicho? - perguntei.
Não houve resposta. Mais um minuto e ouve-se a voz do Pedro Ramalho:
-Não é ele em cima do muro?
Era mesmo. Tinha voltado e estava em cima do muro.
A partir daqui foi meia-hora de fartar vilanagem. No telescópio foi encher o olho. Quem quis fotografar fotografou, quem quis filmar filmou. Não estava muito perto mas, a vida é assim. A minha P610 fez o que pôde mas, os filmes ficaram fracos e as fotos fracas ficaram. A observação foi cinco estrelas. As fotos e os filmes nem três. Isto de escolher o material que se leva tem destas coisas. Como não contratei um caddy, optei pelo mínimo de peso possível e por dar prioridade à observação, em detrimento do registo. Neste caso resultou...
Quando se deu a debandada ainda houve um momento caricato. Íamos a sair quando o bicho pousa no muro, dois metros ao lado do Márcio sem ele se aperceber. Provavelmente reconheceu-o e veio despedir-se.
-Márcio! Olha aí!
Vi-o aflito a pegar na P1000 e a tentar apanhar o Trombetas. As bridge levam uma eternidade a ligar, fazer zoom e focar. A verdade é que ainda se aproveitou qualquer coisa.
O regresso aos carros foi mais um desfile triunfal, com o pessoal a ocupar toda a largura da estrada, em linha. Quinze minutos de êxtase.
O confinamento tinha definitivamente terminado com estrondo. Não foi um estrondo monumental e nem sequer foi um estrondo mas, nenhum dos envolvidos se irá certamente queixar de só ter ouvido o som de uma trombeta de plástico.
Resta-me agradecer ao Hélio Batista pelo aviso pronto, e ao Márcio Cachapela, Paulo Diva, Pedro Marques e Vasco Valadares pelas fotos que ajudam a ilustrar a crónica.
#canaldoxofred
Ainda ficou lá uns segundos até me lembrar de pegar na bridge. Quando apontei ao fio já ele estava no chão junto a uma poça. Ainda disparei mas já ele ia a levantar na direção do terreiro em frente ao santuário. Típico. Podia ter esperado mais uns segundos, mas não quis. O que é certo é que o tick já não me tiravam e que as minhas previsões de sofrimento tinham sido manifestamente exageradas.
Pintarroxo-trombeteiro - mais corpulento que os pardais (foto Vasco Valadares) |
Pensei um bocado e coloquei-me onde achei que dominava mais terreno, no extremo do terreiro, de costas para o santuário, a olhar para o jardim murado da mãe d'água. Nem cinco minutos tinham passado quando ouço algo parecido como uma daquelas cornetas de plástico dos miúdos. Pensei logo no Trombetas. O som vinha precisamente do lado oposto ao que me encontrava, do outro lado da mãe d'água.
-Alguém está a chamar o bicho? - perguntei.
Não houve resposta. Mais um minuto e ouve-se a voz do Pedro Ramalho:
-Não é ele em cima do muro?
Era mesmo. Tinha voltado e estava em cima do muro.
A partir daqui foi meia-hora de fartar vilanagem. No telescópio foi encher o olho. Quem quis fotografar fotografou, quem quis filmar filmou. Não estava muito perto mas, a vida é assim. A minha P610 fez o que pôde mas, os filmes ficaram fracos e as fotos fracas ficaram. A observação foi cinco estrelas. As fotos e os filmes nem três. Isto de escolher o material que se leva tem destas coisas. Como não contratei um caddy, optei pelo mínimo de peso possível e por dar prioridade à observação, em detrimento do registo. Neste caso resultou...
Quando se deu a debandada ainda houve um momento caricato. Íamos a sair quando o bicho pousa no muro, dois metros ao lado do Márcio sem ele se aperceber. Provavelmente reconheceu-o e veio despedir-se.
-Márcio! Olha aí!
Vi-o aflito a pegar na P1000 e a tentar apanhar o Trombetas. As bridge levam uma eternidade a ligar, fazer zoom e focar. A verdade é que ainda se aproveitou qualquer coisa.
Quando pousou a 2 metros(foto Márcio Cachapela) |
O confinamento tinha definitivamente terminado com estrondo. Não foi um estrondo monumental e nem sequer foi um estrondo mas, nenhum dos envolvidos se irá certamente queixar de só ter ouvido o som de uma trombeta de plástico.
Resta-me agradecer ao Hélio Batista pelo aviso pronto, e ao Márcio Cachapela, Paulo Diva, Pedro Marques e Vasco Valadares pelas fotos que ajudam a ilustrar a crónica.
#canaldoxofred