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04 abril 2018

Tourada na Murtosa

31/03/2018
Tourada na Murtosa

No dia 5 de Fevereiro, na Murtosa, um fotógrafo local - Carlos André - fez um registo de um tartaranhão. Pelo que foi descrito pelo próprio no fórum aves, a ave terá parecido na altura um macho de águia-sapeira, o que é completamente normal na zona. No entanto, ao rever as fotos pareceu-lhe ser um tartaranhão-cinzento, o que já não é tão normal. Pelo sim, pelo não, colocou a dúvida no fórum no dia 13. O debate instalou-se e o consenso era de que, provavelmente, estávamos perante um tartaranhão-cinzento-americano, circus hudsonius. A confirmar-se, seria uma super mega raridade. A discussão acabou bruscamente no dia 16, quando Deus desceu à Terra. “O” Dick Forsman respondeu ao pedido de ajuda do Paulo Alves com a sentença de que se tratava claramente de um macho de circus hudsonius. Este desfecho só chegou onze dias depois da observação. Ou seja, uma eternidade.

Tartaranhão-cinzento-americano - Foto Carlos André
(05/02/2018) A história começou assim


Na altura, achei que ele já teria seguido caminho. As buscas infrutíferas nos dias 13 e seguintes pareceram confirmar essa teoria. Houve alguns avistamentos de circus sp., mas nada de definitivo, nem que colocasse a comunidade em alerta. Por isso, nunca coloquei seriamente a hipótese de ir ver a Ria à Murtosa. E assim, a pouco e pouco, o assunto foi morrendo, passando para as brumas da memória.

Mas estas questões raramente são simples (ver A Odisseia do Sula - Sete Meses de Sofrimento). No dia 27 de Março, uma terça-feira, pelas 16h, o Carlos voltou a fotografar o hudsonius. Desta vez, a divulgação foi mais rápida. Logo no dia seguinte, pela manhã, a comunidade já sabia do acontecimento. Quem é vivo sempre aparece. Neste caso, cinquenta dias depois. Pelos vistos, não só não tinha ido embora, como tinha gostado da zona. Estou sempre a dizer que, às vezes, parece que há aves que têm encontro marcado connosco. Nas duas aparições, o registo foi efectuado pelo mesmo fotógrafo. Não se materializou para mais ninguém, e não foi por falta de alma. Já muito esforço inglório tinha sido feito até ali por vários observadores, a começar pelo Samuel Patinha. 



Neste ponto, comecei a pensar que já me restavam poucas hipóteses além da óbvia, que era a de arriscar. Com cada vez menos aves para ver, quando há uma hipótese superior a um por cento, tem de se avançar. E neste caso teríamos, pelo menos, um e picos.


Quinta era impossível. Sexta-feira Santa estava mau tempo. Sábado estava com uma previsão bastante razoável e afigurava-se como a melhor hipótese. Além disso, podia ser que alguém visse a ave entretanto, ajudando a estabelecer um padrão. A verdade é que isso não aconteceu.
Contudo, a decisão foi razoavelmente fácil de tomar. No fundo, já sabia que ia lá acima desde que a notícia apareceu. Foi só seguir o instinto. Na sexta disse a duas ou três pessoas que neste caso estava com uma fé inexplicável. Nesta atividade raramente sinto grande confiança de que vou ver o objetivo. Desta vez também ia sem grande expetativa, mas aquele tal sentimento ninguém me tirava. A coisa foi de tal maneira diferente do costume que até dormi descansado na noite anterior. Pouco, mas descansado.
 
Circus hudsonius - Foto Carlos André (05/02/2018)
Pormenor do dorso

Sábado, o dia começou por volta das seis da manhã. Do Sul mais ou menos profundo seguimos dois de Lisboa, um de Peniche e um de Leiria. No troço final de 150km até à Murtosa éramos quatro dentro do carro. Um quarteto - ou uma quadrilha - em busca da sorte. O António Gonçalves, Pedro Ramalho, o João Tomás e eu. 

Com a importância duma ave deste calibre, um primeiro indivíduo para Europa continental, acabaram por andar na zona mais de uma dezena de observadores ao longo do dia. Uns mais persistentes, outros menos.
A nossa quadrilha chegou ao local por volta das 10h. O céu ainda deixou cair umas últimas gotas, mas o tempo acabou por estabilizar, como previsto. Do tempo não nos íamos poder  queixar. 
No local já andavam o Samuel, o Marco Nunes e o Paulo Ferreira, entre outros. Um pouco mais tarde encontrámos o Flávio Oliveira. A tourada instalava-se. Parecia hora de ponta.
 

Viuvinha-bico-de-lacre
Foi um movimento jamais visto por aquelas bandas e que despertou de sobremaneira a curiosidade dos locais. Mais para a tarde até apareceu a dona de um dos terrenos, com a pergunta da praxe. “O que é que estão para aí a ver no meu terreno? Estão a filmar?”. Como sempre, nestas situações o primeiro abordado costumo ser eu. Um dia ainda hei de descobrir porquê. Dei a resposta número dois. “Nada! E não estamos a filmar.” Será que pensou que tínhamos encontrado ouro ou petróleo por ali? A tourada consumou-se quando apareceu uma carroça. “Não se mexam que o cavalo está a aprender!”. Já só faltava passar um porco a andar de bicicleta.

Durante a manhã, numa primeira fase acabámos por nos dividir em dois grupos, o que é sempre perigoso. Se uns veem e outros não é o diabo…
Andei com o Samuel e o Marco no carro, a fazer o circuito entre os dois pontos de observação conhecidos, a 5km um do outro. Milhafres, búteos, sapeiras e pouco mais. Deu para perceber que a tarefa não ia ser fácil. Os circus voam baixo e a zona é grande. As ervas altas também ajudavam à festa. 



Avistamento número 2 - Foto Carlos André
Quase me esquecia de referir que também vimos, claramente vista, a gaivota-polar que por lá anda, o que não é coisa pouca. Foi daqueles twitches perfeitos. Chegar, sair do carro e ver o bicho. Outra colateral do dia foi a viuvinha-bico-de-lacre. Finalmente acabaram-se os milhares de emails com alertas de viuvinhas. “Já não se perde tudo!”, pensei quando a vi.

Lá para o meio-dia houve “mudança de turno”. O Samuel e o Marco foram à sua vida. O Pedro Moreira, dono da zona, veio “controlar a situação” e reforçar a equipa. Todos concordámos que o melhor era ir almoçar. E assim foi, apesar de o António ter logo dito que não gosta nada de ir almoçar nestas situações. Lembrei-me logo de uma certa tichodroma. Mas isso são contas de outro rosário.
Qualidade de vida é assim. ‘Bora lá almoçar! 


Gaivota-polar
Depois do almoço, mais volta menos volta, acabámos por nos concentrar numa zona mais ou menos central, onde conseguíamos cobrir uma boa porção de terreno, incluindo a zona do último avistamento. Durante as horas que por lá estivemos, o costume. Milhafres, búteos, sapeiras e pouco mais. Três da tarde, três e meia, quatro da tarde – hora do último avistamento. “É agora!”, pensei. Mas não. Nada de bicho.
Lá para as cinco, comecei a pensar se seria hora de seguir para baixo. Ainda troquei umas impressões com o António, mas ele desconvenceu-me logo. “Tens horas para estar em casa? Já que estamos aqui, é aproveitar!”, disse ele. Como já não ia conseguir ir ao Estádio da Luz, o único local onde ainda poderia ver alguma coisa para a história nesse dia era ali. Por isso, e por mais qualquer coisa indefinida, fiquei.

Resolvemos mudar de poiso e fomos para um talude ali perto. Quem andou apeado de manhã tinha gostado do sítio, uma vez que permitia ter mais um metro de altura em relação ao terreno. Também achei uma boa ideia, uma vez que durante a tarde tinha visto por segundos uma ou duas sapeiras a voar muito baixo por ali. Do talude sempre se veriam melhor. Why not?
Fomos alternando a conversa com a vigília. O frio começava a instalar-se. Alguns já falavam em fracasso aqui e ali. Não vou mencionar nomes, mas até houve alguém que apelidou este twitch de “o maior falhanço da história de Portugal” e, inclusivamente, o referiu em chamadas telefónicas efetuadas no local. Lembro-me de o António ter dito “Isto ainda não acabou!”, uma frase que eu já tinha usado mais de uma vez nessa tarde. 



Avistamento número 2 - Foto Carlos André

Por volta das 18h, resolvi ir ao carro beber água. O movimento era pouco, e os carros estavam a menos de cem metros. De qualquer forma, aquilo já estava quase a acabar, ou não estava? 
Comecei a andar. Ainda não tinha dado dez passos, começo a ouvir a voz do Pedro Ramalho aos gritos. Qualquer coisa como “É o gajo! É o gajo! Olha ali!”. Confesso que não registei as palavras exatas. 
Lembrei-me da história do Pedro e do Lobo. O “nosso” Pedro tinha feito uma dessas um mês antes em Sagres e, por isso, não dei grande credibilidade aos gritos nas minhas costas. Ainda andei mais um ou dois metros mas depois resolvi virar-me, para poder fazer aquela representação da figura típica com os braços abertos, como quem diz “Vai gozar com o c…!”.

Não poderia estar mais enganado. Quando me virei, o que vi foi o pessoal a olhar todo para o mesmo lado. Era um circus, sem dúvida, e era claro. Quando o vi nos binóculos, juro que consegui ver as pintas laranja nos flancos, e o dorso de um cinza pouco uniforme, com tons castanhos aqui e ali. Era Ele, sem dúvida. A rapina mais procurada do último mês.
Ainda o apanhei na máquina, mas já um pouco para a esquerda e longe. Parecia uma seta. Passou para trás dos caniços e começou a andar para a direita, sempre a grande velocidade. Cada vez mais longe, mais longe. Perdemo-lo de vista junto a um engenho de rega. Foi um minuto de pura adrenalina.


Uma dos meus fracos registos - longe e à esquerda.
"Ligeiramente" diferente dos registos do Carlos André

Depois, as opiniões dividiram-se. Uns queriam ir atrás dele de carro, outros achavam que ele ia voltar. Ninguém teve razão. Este bicho é mágico e consegue aparecer e desaparecer sem deixar rasto.
Restavam os despojos do dia, ou seja, as fotos. Entre todos, conseguimos pouco mais de uma dezena de fotos manhosas. Não estavam perfeitas, mas era evidência que chegasse. Entre a observação e as fotos, de um a cinco, três e meio. Nada mau, para quem chegou a pensar num zero.

O dia acabou com mais uma descida triunfal até Lisboa, onde eu e o António só chegámos às 23h. Custa menos, com a barriga cheia.

Houve várias lições a reter neste evento. A última é minha, as outras são do Pedro Ramalho.

1. Mais vale uma bridge na mão que duas SLR no saco.
Sobre esta, cabe dar nota que ao longo da espera questionei o Paulo e o António sobre o paradeiro das respetivas câmeras, que nunca tinham na mão. Um respondeu-me que a dita estava no carro, o outro que estava no saco, mas que era rápido a sacar.

2. Quando alguém começa a gritar que a ave apareceu, convém não ignorar completamente o aviso.
Concordei com esta e até complementei na altura com uma adenda:
-Quando muito ignorar o aviso durante dois ou três segundos e virar-se para trás com ar de desprezo.

3. Uma SLR a funcionar mal apanha mais detalhe que uma bridge a funcionar bem.
Esta resulta da análise direta às fotos.


E foi isto... 
Deixo aqui um agradecimento ao Carlos André pelas fotos e à malta pela companhia, amizade e pelo dia excelente.

#canaldoxofred 

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