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31 janeiro 2020

Fim de Semana com o Morto


22/12/2019 - Belém - Garajau-de-dorso-castanho

Domingo, dia 22 de Dezembro estive o dia todo no "trabalho". Traduzindo, estive o dia todo na passarada. Foi um dia bem passado com o Pedro Nicolau, em Lisboa e arredores. Sempre achei fascinante a forma como este hobby aproxima gerações.

Garajau-de-dorso-castanho
Foto Jorge Fernandes

Numa das muitas conversas do dia lembro-me de o Pedro se sair com um "temos de pensar que algures por aí está uma bomba, resta saber onde". No fundo, verbalizou aquilo que toda a tribo estava a pensar. Nos dias anteriores tínhamos sofrido as consequências da depressão Elsa, e estávamos em pleno rescaldo. Mau tempo no mar e em terra podem trazer surpresas ornitológicas e foi isso que procurámos o dia todo. Surpresas não houve, mas vimos algumas aves raras, como os gansos que ainda hoje andam pela Ponta da Erva, e uma gaivota-prateada em Algés.
Satisfeitos, demos o dia por terminado ainda antes das 17h. Mal sabíamos que ainda faltava o melhor. Mais ou menos como quem vai à feira popular e sai sem ter andado na montanha russa. 
A verdade é que às cinco e pouco da tarde eu já estava no sofá, meio sonolento.

Eram 17h37 quando o smartphone do diabo emite o aviso sonoro do WhatsApp. Como um cão obediente condicionado por Pavlov, agarro nele quase no segundo seguinte. Era o Carlos Pacheco a mandar uma foto para um dos grupos sobre raridades que hoje pululam por todo o lado. Na foto estava uma gaivina que parecia um garajau-de-dorso-preto (Onychoprion fuscatus). Aí os olhos saltaram-me das órbitas e a começou a volta na Space Mountain. 
Para quem não conhece, esta é uma montanha russa espetacular da Disneylândia em Paris, que tem a particularidade de ser fechada e ser feita às escuras (*). O sol já tinha desaparecido, e o paralelo faz todo o sentido neste caso. 

Voltando à vaca fria ou, neste caso, ao WhatsApp, além da já referida foto, estava apenas uma curta mensagem a informar o local: “Agora mesmo no Parque das Nações”. Aguenta coração. Uma bomba daquelas no meu quintal. A informação foi rapidamente complementada com a referência de que a ave estava muito debilitada e com um apelo para que se procedesse à recolha, para entrega em Monsanto.
Logo de seguida vieram as coordenadas.

Garajau-de-dorso-castanho
Ainda consegui ler as mensagens até às 17h40 – altura em que o Pedro Nicolau perguntou quem tinha lanterna - mas confesso que já não conseguia raciocinar e quase perdi o dom da fala.
Limitei-me a articular um “Tenho de sair! Preciso duma lanterna!”. Vendo os meus nervos, a Sandra só disse “Respira!!!”. Bem que tentei, mas estava difícil.

Saí a correr, com uma caixa de papelão, uma toalha e a lanterna. 
Entrei no carro, coloquei as coordenadas no telemóvel, e segui sem olhar para trás. O WhatsApp não parava de tilintar. 
Dois ou três minutos depois, cheguei ao destino. Era perto do Pingo Doce, ao lado da estrada. “Que raio! Isto não faz sentido. Não há aqui nada que se pareça com as pedras da foto.”
Toca o telemóvel. Era o Pedro Marques a perguntar se eu já estava no local. “Ainda não. Estou a tentar perceber onde é!”. 
Lá começo a olhar outra vez para as mensagens. Afinal as coordenadas eram perto da antiga FIL, e não na Expo.
-Ora bolas!
Voltei a colocar as coordenadas no Maps e realmente aquilo era entre Alcântara e Belém. Isto de faltar oxigénio no cérebro tem destas coisas. Não sei bem como, tinha posto o destino errado na App. Devia ter respirado fundo, em vez de sair desalvorado. Das duas uma, ou as coordenadas estavam erradas, ou o bicho não estava no Parque das Nações. 
Mais um ou dois telefonemas ao Carlos Pacheco e, finalmente, lá chegou a confirmação de que as coordenadas estavam certas. Eram mesmo na antiga Feira das Indústrias, a cerca de vinte minutos. 

Fui o mais rápido que consegui, sem desrespeitar (muito) os limites de velocidade. O Nicolau tentou ligar-me várias vezes sem sucesso. O raio do Bluetooth estava a fazer das suas outra vez. Lá conseguimos falar, para aí à décima tentativa, apenas para chegar à conclusão de que não sabíamos bem onde é que aquilo era. O telefonema foi rápido. 
Dei-lhe as referências que me tinham dado a mim. 
“Eh pá, tenho de desligar, que estou quase sem bateria.” Que surpresa. O Pedro, como de costume, andava no fio da navalha. No final do dia quase tinha ficado sem bateria na câmara. Agora era no telemóvel. Ainda pensei como é que ele faria, se ficasse incontactável e não encontrasse o sítio. Enfim, “Not my problem!”.  
Quando desliguei é que tentei, finalmente, respirar fundo. “Ainda falta mais de um quarto de hora de condução. Tenho de ter calma.” Até ali tinha-me limitado a agir por instinto. 
Lá comecei a perceber qual era o caminho que ia seguir e, ao fim de um percurso que me pareceu da Terra à Lua, cheguei. Ou, melhor dizendo, quase. Faltavam trezentos metros e não era possível avançar mais de carro. “Só acesso ao parque” dizia o sinal de sentido proibido. Estacionei o melhor que pude e segui a pé. Trezentos metros são três minutos. Há males piores.

Garajau-de-dorso-castanho
Ia a toda a velocidade, com a caixa e a toalha na mão, já a meio caminho quando, de repente, um Smart sobe o passeio e se atravessa à minha frente. Era o Nicolau a chegar em grande. Pelos vistos neste caso, além da montanha russa, também havia carrinhos de choque. Teve de dar meia volta para estacionar lá atrás onde eu tinha deixado o Duster. Veio a correr e mais um ou dois minutos já estava ao meu lado. Terá batido algum recorde? 

Chegámos juntos ao destino. Era “numa árvore ao pé do viaduto em frente à antiga FIL”. Liguei a lanterna e começámos a busca. Ao fim de trinta segundos já tínhamos passado a pente fino as oito árvores que correspondiam à descrição. Nada! Comecámos a ver a relva, os buracos na relva, o passeio, o alcatrão junto ao rio. Nada! O pânico começava a instalar-se. “Acho que estamos f****!”, disse o Nicolau.
Entretanto começo a ver lá ao fundo alguém com uma lanterna a fazer sinais de luzes. Eram o Pedro Marques e o António Gonçalves. Tinham chegado uns minutos antes e também andavam a bater a zona sem sucesso. Como eu disse já há alguns anos, “Isto são sempre os mesmos!”. 
A busca continuou. Estávamos cada vez mais longe do ponto original, e a expressão “baratas tontas” servia que nem uma luva. Às 18h28 o Pedro Marques liga-me. “Está aqui. Já morreu!”. O registo de chamadas não mente e a chamada só durou dez segundos. É assim na montanha russa. A diversão acaba de repente. 

Mais um minuto e já estávamos todos juntos outra vez. O bicho tinha sido encontrado a uns bons cinquenta metros da árvore onde o tinham deixado. Fraco como estava não teria certamente ido lá parar pelos próprios meios. Alguém teria pegado nele? Um cão ou um gato? Nunca saberemos. 
Ainda ficámos um bom minuto especados a olhar para o bicho, a processar a notícia. Até houve alguém que reparou que o olho ainda brilhava. Tinha morrido há pouco tempo, mas que estava morta, lá isso estava. Não havia como fugir a essa triste realidade. Bem que podia ter esperado mais meia-hora.
"O olho ainda brilha!"
Garajau-de-dorso-castanho
Só restava documentar o acontecimento, e assim fizemos. Foto para aqui, foto para ali. Vira deste lado, vira daquele. De asa aberta, de cima, de baixo, de lado. 
Havia também a questão da identificação. Seria mesmo um garajau-de-dorso-preto? Nesse caso seria um terceiro avistamento em Portugal Continental, o que não era coisa pouca.
Apesar da luz amarelada dos candeeiros, o bicho parecia mais acastanhado do que preto. Rapidamente fui ao carro buscar o Collins. Como se tratava de um juvenil, a identificação era mais complicada. Poderia ser um garajau-de-dorso-castanho (Onychoprion anaethetus) ? Nesse caso seria o primeiro a aparecer em Portugal Continental. Uma bomba das grandes. Essa possibilidade já justificava mais uma ida ao carro, desta vez para consulta ao Duivendijk, o tal guia de aves só com texto. A pouco e pouco, a ideia começou a ganhar forma. O tamanho, padrão da cabeça e a já referida cor apontavam todos na mesma direção. Tínhamos mesmo uma bomba atómica nas mãos. 

Aí surge o pedido do Carlos Pacheco para alguém guardar a morta no congelador, para posterior análise de proveniência. Morta sim, mas ainda podia servir a ciência. Como portador da caixa de cartão eu era, obviamente, o melhor candidato. Comecei rapidamente a fazer contas de cabeça. A Sandra não iria de certeza achar piada ao convívio com um cadáver no congelador. "Se quiseres eu levo!". Era o Pedro Marques a oferecer-se para levar a cabo a árdua tarefa. Lá me fiz homem e liguei para casa. O que ouvi do outro lado foi um "Hã?!" incrédulo. Realmente, como é que se justifica o pedido quase irreal? Tive que me esforçar bastante - "É só por uns dias..." - mas acabei por conseguir. "Traz lá isso!"

E pronto. Foi assim que acabei por passar umas semanas com um morto no congelador. Não é para todos. 
A história acabou - por agora - no dia 4 de janeiro com a mensagem mais estranha que recebi na vida:
"Olá! Bom Ano! Queria combinar contigo para recolher o cadáver."
Era  o Carlos Pacheco, que queria pôr a investigação em marcha. Muito me ri a ler o texto. Segundo sei, as análises já estão em curso.
Um dia destes saberemos novidades. 

Resta-me agradecer ao Jorge Fernandes pela única foto da ave ainda com vida. Vim a saber mais tarde que estava a dar um passeio de bicicleta quando teve o encontro imediato e que tirou a foto com o telemóvel. E esta, hein?!

#canaldoxofred

(*) Hoje em dia o Space Mountain chama-se Hyperspace mountain.