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13 agosto 2019

Trinta zero sete - Missão ultra-secreta na terra das três mentiras

30/07/2019 - Vila Nova de Milfontes
Há dias maus para surgirem notícias de raridades. Para quem tem um trabalho com horários mais tradicionais, de segunda a sexta, os primeiros dias da semana - segundas, terças - são complicados de gerir a nível psicológico. Se estes já são maus, imagine-se algo que aparece num Domingo à noite…
Foi precisamente isso que sucedeu com a Gaivota-das-pradarias (Leocophaeus pipixcan) de Vila Nova de Milfontes. Dia 28/07 o Hugo Lousa descobriu-a no meio dos guinchos do estuário do Mira ao final da tarde (18h30). Digo eu que terá certamente reparado que poderia ser algo muito especial. A ID foi, entretanto, confirmada num grupo especializado em gaivotas no Facebook e a notícia começou a circular cá no burgo já ia a noite bem avançada.
No meu caso já estava encostado e meio a dormir.

Gaivota-das-pradarias (foto Rui Jorge)
Tirada 2a, 29/7 às 20h30
Cabe aqui abrir um parêntesis para referir que esta gaivota americana tem feito aparições aqui e ali, sem ficar nunca muito tempo, pelo menos nos últimos anos. Tive uma oportunidade perdida em 2013, na que apareceu fugazmente no estuário do Douro. Ia eu na A1 a caminho de Lisboa, já quase 100km abaixo do Porto, quando sou avisado pelo Pedro Ramalho que estava lá uma. Fosse pelo cansaço, paragem mental ou sei lá por que razão, decidi não voltar para trás nessa altura e segui caminho. Outras que foram aparecendo, normalmente em Julho, nunca foram relocalizadas - Vaza-Sacos, Praia dos Coelhos. E, assim, a pipixan foi ficando a faltar na lista.

 Mas, agora, havia esta em Vila Nova de Milfontes, que fez disparar a adrenalina e não me deixava adormecer. Como não estou só nesta loucura, o Pedro Nicolau ainda tratou de me ligar quase à 1h da manhã, a perguntar como era a minha vida. 
Na realidade, esta até era bastante simples neste caso. Segunda não poderia lá ir de certeza absoluta. Depois, logo se veria. No limite, só no fim de semana. Para quem, como eu, não acreditava que o bicho ficasse mais de um ou dois dias, a perspectiva do fim de semana era dramática. Por outro lado, iríamos entrar em Agosto, mês de multidões. A maré vazia iria passar a ser de manhã, e sei lá mais o quê. Na minha cabeça dei o bicho como praticamente perdido.
A angústia instalava-se mas, com o tempo vai-se aprendendo a fazer a gestão destes eventos. O que não tem solução, solucionado está.   
Mesmo com a pouca informação disponível, o Nicolau tinha alguma disponibilidade na 2ª e resolveu arriscar, e bem. Como eu lhe disse no tal telefonema da madrugada, se pudesse faria o mesmo.
Fui seguindo à distância o desenrolar dos acontecimentos. Logo de manhã surgiu o “Não está cá nada!”. Ou seja, não estavam gaivotas no estuário. Seria da maré? 
A verdade é que eles não desistiram. Partiram do princípio de que os guinchos subiriam o rio à medida que a maré subia e, foram também subindo, mas por terra. 

Gaivota-das-pradarias quase a dormir.
Esteve assim uma boa parte do tempo.
Ao fim de umas horas comecei a pensar que o assunto estava resolvido mas, por volta das 13h, surge a inesperada notícia de que a gaivota estava a dormir no cais do Zambujeiro, cerca de 2km para dentro do rio. Cada um tem o seu estilo. Como atleta que é, o Nicolau tem o costume de ir fazendo piscinas e mais piscinas – ver “Marfim na Nazaré”. Não resultou aí, mas resultou aqui. Um esforço mítico e com direito a recompensa. Era um começo. O bicho ainda andava por lá. 
Foram mais umas horas para pensar na vida até ao fim  do dia quando o dono da zona – Rui Jorge – reportou que tinha avistado a gaivota no local inicial – o estuário – por volta das 20h30 (ver foto acima).
Aqui sim, com esta notícia, começaram as contas de cabeça. Pelos vistos, o bicho tinha tendência a aparecer ao final da tarde no estuário, na maré vazia. Já era o segundo dia. Por outro lado, parecia que a aparição avançava com a maré. Uns bons 40 minutos, ou mais, de cada vez. Aqui tínhamos claramente um problema. Com o pôr do sol por volta das 20h50 na terca-feira, se o bicho mantivesse a rotina, iria aparecer já de noite. Isto se quisermos chamar rotina a uma amostra de dois dias, claro.
O raciocínio foi parecido com a canção. De Lisboa a Milfontes são duas horas de distância, e não nove como de Bragança a Lisboa, e não é sequer necessário rebentar com radares, nem a gaivota se chama Maria. É fazer a conta, como dizia o outro.  À noite, comecei a pensar que um ataque no dia seguinte poderia ser uma hipótese. Com alguma flexibilidade da componente profissional, saindo às 16h30 de Lisboa, conseguiria lá chegar por volta das 18h30. Mas era arriscado. Só com histórico de dois dias e com tantas outras variáveis, era mesmo arriscado. 
Uma pequena hipótese, mas com probabilidade claramente superior a zero. Uma pequena janela de duas horas, a única que teria até ao fim de semana. A minha companheira de aventuras, a Sandra, disse logo que ia lá comigo. Ainda cheguei a dizer que não ia, que era muito arriscado mas logo ela me repreendeu - “O que é que tens a perder?” - ao que respondi que na verdade só tinha a perder a despesa e o frete. Ficou decidido. Também decidi que iria sempre, quer o bicho fosse avistado de manhã no estuário ou não. Por outro lado, apenas faria sentido fazer um tudo ou nada ao fim do dia no estuário. Outras hipóteses ficariam para o fim de semana, se fossem necessárias e se o coração aguentasse até lá.
Terça o dia custou a passar. Às 16h34 estávamos a atravessar a Vasco da Gama. O caminho não teve história, a não ser a explicação que tive de dar à Sandra, do porquê da paragem na área de serviço de Grândola. “Ah, e tal, a tradição”. É sempre melhor não facilitar. Contrariamente ao habitual, desta vez sentia-me estranhamente optimista.
Três sofredores no estuário do Mira
Lá para as 18h30, estávamos no estuário do Mira. Já lá estavam mais dois sofredores, o Pedro Moreira e o Flávio Oliveira. Tinham resolvido vir ao casino no mesmo dia. Agora era ver se a roleta dava par ou ímpar, preto ou vermelho. Quando lhes disse que desta vez achava que íamos ter sorte, não ficaram muito convencidos. "Olhem que quando estou com fé, as coisas costumam correr bem". Não me pareceram mais animados com a conversa.

À vista estavam só cinco ou seis bichos. Uma mistura de guinchos e gaivotas-de-cabeça-preta. Sem surpresas, da pipixcan nem sinal. Sempre achei que se ela resolvesse aparecer, seria sempre depois das 20h30. Isto, claro, se ela fosse cumpridora de horários. Lá nos instalámos, a olhar para cada bicho novo que aparecia. Passado um bocado chegou o já referido Rui Jorge. Como já nos conhecíamos, tratei de lhe apresentar a Sandra e o resto da malta. "É o Rui Jorge, o dono aqui da zona." Os sorrisos foram tímidos. A tensão estava no ar. 
Quando ele referiu "De manhã não apareceu", o Pedro Moreira saiu-se logo com um "Ui, isso é que é pior!". Do meu lado já estava à espera desta notícia. Tratei logo de dizer que já tinha decidido vir, com ou sem aparição matinal da gaivota. Não fiquei preocupado, e mantive-me fiel ao passadiço. A tal já muitas vezes falada “crença do touro”. O Pedro, o Flávio e o Rui oscilaram, aqui e ali, entre a praia e o passadiço. Sempre se cobria mais terreno. 
Por volta das 19h30, já com cerca de dezena e meia de bichos à vista, a espera continuava. Nem sinal de pradaria. O Pedro começou a entrar em transe:
-Eh pá, não sei como é que vocês aguentam estas esperas!
-Esperas? Ainda nem uma hora esperaste! Sabes lá o que são esperas. Quando muito, vais esperar duas horas e depois vais para casa! - ripostei.
A dada altura, passou um guincho perto e, fosse da luz ou fosse o que fosse, o Pedro dispara:
-É essa!!!
Pipixcan em voo - Quase de noite com ISO 51200
Perante o início de excitação, vi claramente nos binóculos que era um guincho - “É um Guincho, vi bem que a cabeça era castanha” - lá se acalmou tudo outra vez. “Estamos a começar a delirar.”, pensei.
Mais uns minutos, ouviu-se o sino da Vila a bater as oito horas. o Pedro continuava no muro das lamentações. Quando perguntei se alguém estava a fazer a lista disse logo:
-Lista? Qual lista? Se não virmos a gaivota quero esquecer que estive aqui! Nem quero que ninguém saiba.
A espera continuava. Vinte gaivotas, trinta. 
-Quando estiverem cinquenta, ela aparece! - disse o Rui.

Oito e meia. Hora H. A partir daqui apurei ainda mais os sentidos. A dada altura vi passar uma gaivota-de-cabeça-preta e ouço a voz do Rui, vinda do lado da praia:
-É essa!!
-Não. Era uma cabeça-preta. - dissemos.
O delírio continuava.

Mais uns minutos e o sol já começava a desaparecer atrás do monte. O Pedro estava em desespero, o Flávio taciturno e silencioso. “É até à última luz!”, pensei. Já estávamos a entrar nos tais cinco, sete minutos do lusco-fusco. Já se viam cinquenta gaivotas, cinquenta e uma cinquenta e duas. “Raio do bicho, bem que podia aparecer!”. Confesso que comecei a pensar que podia ter aquilo perdido. 
20h50. Vem mais uma gaivota da praia a passar em direção ao estuário. Estava a olhar para ela e ouço a voz da Sandra: 
-Vê lá se não é esta…
Não dava para enganar. Era mesmo. Escura como tudo. Era a mesma história da gaivota-marfim. Eu a olhar e a Sandra a ver e a gritar primeiro. Pousou perto de uma pedra, junto das outras.
    - Está aqui! Está aqui! - gritei.

"Ali, junto à pedra!"
O Flávio, em desespero, a tentar perceber o local exacto - tal como na marfim - e nós com a dificuldade habitual em explicar. 
-Ali! Junto à pedra!
  -Qual pedra?

O último a aparecer, uns segundos depois, foi o Pedro, que estava na praia. Quando o vi a querer montar o telescópio, disparei logo:
-Vem mas é ver aqui no meu! - provavelmente com mais um ou dois palavrões à mistura. Confesso que não me lembro.
Enquanto disparava a máquina sem dó nem piedade, ainda olhei uma vez para trás e vi o meu querido Leica quase a cair ao chão, com a Sandra e o Pedro a conseguirem segurá-lo in extremis. Não sei que raio de manobra é que tinham tentado executar, mas iam-me estragando o dia.

A Gaivota-das-pradarias no telemóvel da Sandra
O certo é que, mais uns segundos e toda a gente tinha visto o bicho. Contei as gaivotas. Cinquenta e seis. O Rui tinha quase acertado na mouche.
Estava escuro. Estávamos a sair do lusco-fusco e a entrar na noite. Mais umas fotos e uma vista de olhos nos binóculos e ela levantou e voltou a pousar um pouco mais perto. Ainda a apanhei em voo com a câmara e fiz uns disparos. Quando vi as imagens, percebi que, realmente é mais grão que imagem mas, o iso 51200 da máquina afinal ainda serve para alguma coisa. Fui buscar a bridge ao carro para fazer uns clipes. A Sandra resolveu tirar uma foto ao bicho com o telemóvel, e até se via qualquer coisa. Deu para tudo. Quando corre bem, corre bem. 

 Mais uns minutos e a bridge já não conseguia focar. A luz era mínima. O Pedro já andava a fazer fotos do pessoal. Resolvemos dar o twitch por encerrado. “Vamos embora?”
A alegria do povo. Na praia às 21h30.
(Foto Pedro Moreira)
Podia ter corrido melhor? Sim. Podia ter aparecido mais cedo, com melhor luz. Mas, pesando todas as circunstâncias e o risco assumido, acho que não tenho razões de queixa. Realmente, havia qualquer coisa que me dizia que aquela aventura ia correr bem. Acreditei até ao fim - ou quase. Foi por pouco, à última hora, mas o bicho apareceu.

Resta-me agradecer ao Hugo Lousa a espetacular descoberta e rápida divulgação da mesma. Ao Rui Jorge a diligência e voluntarismo com que foi dando novidades do local, essenciais para ir fazendo planos à distância. Finalmente, ao Pedro Moreira e ao Rui Jorge pelas fotos que ajudam a ilustrar esta crónica.


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