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21 dezembro 2021

Magia nas Astúrias

Astúrias, Novembro de 2021

A coruja-das-neves (bubo scandiacus) é uma espécie de santo graal para qualquer observador de aves europeu. Faltam adjetivos para descrever essa ave do Ártico, branca de olhos amarelos. A juntar à imponência, a dificuldade de a ver é enorme, mesmo indo à sua casa na zona ártica da Noruega, por exemplo. A coruja do Harry Potter é mágica e desaparece com muita facilidade.

Fui alimentando o sonho de um dia a conseguir observar e, inclusivamente, cheguei a combinar com um amigo uma eventual ida aos Açores, caso aparecesse uma por lá. E aparecer, até aparece uma de vez em quando, leia-se de dez em dez ou quinze em quinze anos. Ou seja, quase todos os dias.
Fosse como fosse, a verdade é que os anos foram passando e a oportunidade nunca se proporcionou.

Coruja-das-neves (bubo scandiacus)

A minha história das corujas-das-neves das Astúrias tinha começado há mais de uma semana, na segunda-feira dia 8 de Novembro. Eu é que ainda não o sabia. Desde essa altura, nada mais nada menos do que 3 indivíduos foram avistados na província. Dois machos e uma fêmea, todos jovens. Sabe-se lá como conseguiram chegar à Península mas, a verdade é que estavam cá. Um deles morreu logo ao segundo dia, apesar de ter sido levado para um centro de recuperação. Os outros foram aparecendo aqui e ali, mas sempre de forma relativamente fugaz.

Foi só no domingo, dia 14 de Novembro, que os observadores espanhóis tiveram um contacto prolongado com o macho sobrevivente, que se deixou observar de forma tranquila, horas a fio. O problema foi que, desde esse domingo, as notícias desapareceram por completo. 
Do meu lado, fui seguindo o acontecimento à distância mas também me fui esquecendo a pouco e pouco das corujas, e das Astúrias.

Como já tem acontecido noutras ocasiões, nisto da passarada as coisas raramente são simples. Tudo se descontrolou mais uma vez no dia 17, quarta-feira. Nesse dia reaparecem o macho e a fêmea, sendo que esta última estava num local bastante acessível - o Cabo Peñas - e permitia observações de alto calibre. Alto calibre, leia-se, de um a cinco, cinco. No dia 18, quinta-feira, manteve-se por lá, e as fotos e vídeos começaram a aparecer. 

Não me lembro do que sonhei nessa noite mas, a verdade é que na sexta, dia 19, acordei a pensar na coruja das Astúrias. Para ir a esta nem era preciso apanhar avião. São oito horas de caminho mas, o que é isso para quem persegue um sonho?  Comecei a andar às voltas, de um lado para o outro, com bicho carpinteiro. Já não conseguia pensar em mais nada. 

Coruja-das-neves (bubo scandiacus)

Como os amigos são para as ocasiões, resolvi contactar um amigo das Astúrias, que tinha estado no centro desta tempestade e que conhecia todos os detalhes. A resposta foi rápida e decidida. "Estão a vê-la agora mesmo!". Mandou-me de seguida a coordenada e o grupo de WhatsApp onde se trocavam informações sobre o tema do momento. Eu ainda estava indeciso. "Go for it!", disse-me ele. As desculpas para não ir estavam a acabar rapidamente. 
Liguei para a minha melhor metade e contei-lhe o que se estava a passar. Ah e tal, acordei a pensar na coruja. "Queres ir lá?", perguntou-me. "Não sei. Para já estava a pensar na vida". E lá continuei a hesitar a manhã toda. 
Por volta da hora de almoço, voltei a ligar-lhe. A primeira frase que ouvi foi um "Já meti a tarde!". Não havia hipótese. Tinha mesmo de ir às Astúrias.


Por volta das cinco e meia da tarde fizemo-nos ao caminho. O plano era simples, se é que há planos simples para estas coisas. Dormíamos a meio e, no dia seguinte, o mais cedo possível, avançávamos para o destino final e para o encontro com Destino. Para por a adrenalina a fluir, ao anoitecer surgiu a notícia de que a coruja tinha voado. "Ha salido, se ha ido sobre el mar paralelo al acantilado hacia el NE". Ora bolas! Ainda só íamos com uma hora de caminho. Era mais que óbvio que isto não ia ser fácil. 

A cabeça continuava às voltas. Voou mas, será que voa todos os dias? Será que volta? Será que estou a fazer um passeio à Nossa Sra. da Asneira? Ninguém sabia. "Mañana lo veremos.", diziam no grupo. Também não os vi muito alarmados com a notícia da coruja ter levantado ao anoitecer. Fiquei com uma réstia de réstia de esperança. 
Ainda pensei aguardar a meio por notícias e só avançar para o último troço se houvesse fumo branco. Ao jantar, discuti o tema com a Sandra e, rapidamente percebemos que não seria possível essa abordagem, devido à distância que ainda nos faltava. Três horas e meia implicavam que era impossível reagir rapidamente. "Já estamos aqui, temos de ir até ao fim!" disse ela, decidida. Percebi que também estava muito entusiasmada com a perspetiva de ver aquele bicho.

A coruja na escarpa.

A noite foi mal dormida. A incerteza e o risco do dia seguinte não me saíam da cabeça. Ainda era de noite quando saímos do hotel e fomos ao encontro do sonho.
Faltava ainda um pouco para o nascer do sol quando começou a agitação no grupo do WhatsApp. Já está alguém no Cabo Peñas? Já a viram? 
O suspense nem durou meia hora. Por volta das oito alguém diz que o bicho já está localizado. 
A esperança renasceu a toda a velocidade. Ainda estava por lá. Uhu! O carro encheu-se de júbilo. É acelerar a toda a velocidade e, dito isto, até aumentei mais dez quilómetros a velocidade programada no cruise control. Velocidade sim mas, dentro das regras, que as multas em Espanha são caras e eles cobram-nas mesmo.
Como isto de andar atrás dos bichos é uma montanha russa, tinham passado apenas dois minutos quando alguém diz que um peregrino a tinha espantado e que ela tinha voado. Ora bolas! Mais dois minutos e dizem que tinha pousado no empedrado do costume. Não há coração que aguente. Pouco passava das nove quando as coisas acalmaram. Mandaram a coordenada de onde se podia observar, juntamente com uns conselhos para disciplinar a malta, e pronto. 
Olhei para o GPS. Já "só" faltavam duas horas e pouco para chegar. 
Foram bastante longas estas duas horas. A natureza é muito bonita, sobretudo a partir do momento em que entramos nas Astúrias mas, eu queria mas é ver o bicho. Curiosamente, o que custou mais foram os últimos cinco quilómetros. Uma estrada cheia de curvas onde apanhámos um molenga à frente. Impossível ultrapassar. Raio do homem!

Ainda no carro, começámos a ver o mar e a zona do farol. Cerca de um quilómetro antes, começámos a ver movimentações de pessoal com binóculos e telescópio um pouco por todo o lado. Um pouco mais perto, começa a vislumbrar-se a longa fila de carros estacionados. Na minha cabeça, imaginei que pudessem lá estar umas cinquenta pessoas. Qual cinquenta, qual quê. Só carros eram mais de trezentos. Comecei a pensar na vida, e onde ia estacionar. Que todos os problemas fossem estes. Foi só uma questão de nos irmos afastando do ponto quente, e a umas centenas de metros lá conseguimos arranjar um lugar.

"As veces la cabeza asoma por allí."

Eram onze horas, mais coisa menos coisa. A adrenalina aumentava a cada segundo. Saímos do carro e levámos tudo o que pudemos, incluindo a água e a pouca comida de que dispúnhamos. 
Começámos a caminhar calmamente na direção que parecia ser a certa, ou seja, para onde toda a gente se encaminhava também. Nestas ocasiões o melhor é mesmo ser "Maria vai com as outras". Menos de cinco minutos depois entrámos no caminho de acesso ao ponto que tinha sido enviado através do grupo há umas horas. Finalmente via-se a escarpa em todo o seu esplendor. O ponto mais setentrional das Astúrias era ali. Era um cabo como outro qualquer cabo escarpado. Quer dizer, igual, igual, não era. Por ali, algures, estava uma coruja-das-neves. Seria este o dia?

Já com os nervos a darem sinal, contemplámos o panorama geral. A dimensão do arrolamento atingiu-nos em cheio na cara. O facto de ser o bicho que é, estar num local acessível, ter sido divulgado em tudo quanto era fórum da especialidade e, cereja no topo do bolo, ter aparecido na televisão nacional, deu nisto. Ficámos em choque. Estavam, à vontade, umas quinhentas pessoas na zona. Parecia o Colombo num sábado à tarde, antes da pandemia.

Até havia uma fita de plástico, daquelas da polícia, para limitar a aproximação à escarpa, colocada pelo guarda da natureza lá do sítio.

Reparámos que a multidão estava dividida em dois grandes grupos. O da esquerda e o da direita. Só mais tarde compreendemos que aquela divisão não era arbitrária. As castas deste pequeno mundo das aves nem sempre vivem em harmonia. Do lado esquerdo estava o pessoal das câmaras e, do direito, o pessoal dos telescópios. 

O molho da direita (observadores)

A divisão era clara e tínhamos de optar. Fomos para o molho da direita. Tivemos de procurar um buraco onde houvesse visibilidade para o local da escarpa onde, supostamente, a coruja estaria. 

Lá nos instalámos, na segunda ou terceira linha. Não era o ideal mas, pelo menos, tínhamos alguma visibilidade. Da coruja nem sinal. Comecei rapidamente a tentar perceber o que se passava. Ah e tal, viemos de Lisboa, a coruja está exatamente onde? 
  -Pues, hombre, vez aquella piedra? As veces asoma la cabeza por allí. 
Ato contínuo, o nosso interlocutor mostra-nos uma foto onde teoricamente se via uma bocado da cabeça do bicho por uma nesga entre duas pedras. 
  -Estás viendo? Aqui se puede ver un poco de la cabeza.
As pedras vi bem. A cabeça é que não. Optei por acreditar e apontei o telescópio para o local aproximado que ele me tinha mostrado no ecrã. O que havia mais por ali eram pedras e tivemos de confirmar. 
  -Puedes verificar si es este el sítio? 
  -Pues si, hombre! 
  -Muchas gracias! 
O espanholês a funcionar na perfeição. 

Agora só faltava aparecer a estrela do momento. Mais uma vez tivemos de nos instalar no conforto de um lajedo à espera do Destino. Espreita no telescópio, espreita nos binóculos, espreita no WhatsApp. Ninguém dizia nada lá no grupo.       -Saes hace cuando tiempo no se vê? 
   -Pues, hombre, hace mas de una hora, ya!
É assim a vida. Facilidades não costuma ser comigo. Fui aceitando a pouco e pouco que a coruja, como todos os bichos, haveria de fazer o que muito bem entendesse. Se quisesse aparecer, nós cá estaríamos. 
Pelo menos ela está cá, pensei. Já estive em situações piores e até mais longe de casa - ver Especial nos Mosteiros

Os minutos foram passando e a conversa foi pouca. Apesar de uma ou outra troca de impressões ocasional com os nuestros hermanos, também se percebeu rapidamente que a tensão era gigantesca. O bicho ia tardando em reaparecer. Uma da tarde, já comia qualquer coisa, a sandes e as poucas barras que tínhamos foram desaparecendo rapidamente. Lá para as duas já só tínhamos água. E o raio do bicho não aparecia. Não arredámos pé, não fosse o diabo tecê-las. O sacrifício impunha-se. A dada altura perdi a vergonha e cheguei a deitar-me, com a mochila a servir de almofada, para aproveitar o sol e dar descanso às costas. Não sei se acharam curioso ou uma boa ideia mas, a verdade é que passado uns minutos vi um vizinho a copiar-me. 

Visão do interior do grupo dos fotógrafos

Eram cerca de duas e um quarto quando se houve uma voz feminina lá atrás a dizer aos gritos que a coruja tinha voado para o lado oposto à nossa posição. Começou o sururu. Tudo a olhar uns para os outros com incredulidade. Seria possível? Quinhentas pessoas ali e ninguém tinha dado por isso? Mas ela insistia. O não sei quantos ligou-me agora dizer que ela voou. Ninguém se mexia e, como ninguém se mexia, mexeu-se ela e desapareceu rapidamente por entre a multidão aos gritos. 
  -Voou! Voou! - ia dizendo, tresloucada.
O caos podia ter-se instalado mas, a verdade é que ninguém mais se mexeu. Pelos vistos ninguém acreditou. Encolhemos os ombros e continuámos a trabalhar, que é como quem diz, a olhar para os dois ou três metros de pedras que o telescópio tinha na mira. Coruja é que nada. 

Foi por volta das duas e meia que se ouviu um clamor. 
  -Está ali! Está ali! Está à vista! 
Vi-a nos binóculos quase de seguida, com o coração aos saltos. Ouço a voz da Sandra, ao meu lado, com uma emoção que raramente lhe vi nestas ocasiões. 
  -Iiiiii! Tem uma cabeça enorme! Pensei que fosse do tamanho das pedras ao lado, mas é muito maior!
A cabeça era gigantesca e, para já, o que se via era apenas a cabeça. Tomaram muitos!
Dei por mim a pensar que a viagem não tinha sido em vão e que tinha à minha frente uma das aves da vida. A emoção ainda começou a dar sinal mas, rapidamente voltei a concentrar-me em desfrutar do momento. Havia de ter tempo de sobra para processar o evento.
Fomos filmando e tirando umas fotos, apesar da distância não ser a ideal. Ainda tentei dar a volta ao penhasco, e ir para o lado dos fotógrafos mas, uns vinte metros para a esquerda o bicho deixava de se ver. Pelos vistos o clamor que tinha ouvido era só do lado dos observadores. Os fotógrafos ainda não tinham tido sequer um vislumbre. 

O molho da esquerda (fotógrafos)

A cena mais hilariante foi ouvir um dos meus vizinhos contar, no gozo, a um amigo, a história da mulher enlouquecida que tinha gritado que a coruja tinha voado uns minutos antes. Disse cobras e lagartos da sujeita, e com razão. Quando olho para trás, vejo-a a olhar para ele a abanar a cabeça. Ainda bem que os olhares não matam.

Lá continuámos a encher a barriga com a visão inaudita, durante mais de uma hora. Telescópio, binóculos, bridge e dslr, tudo a trabalhar em pleno. 
De repente, ouve-se novo clamor, mas do lado dos fotógrafos. Era a coruja que tinha resolvido subir uns degraus e começava a mostrar-se em todo o seu esplendor.
Resolvi vestir a pele de fotógrafo e ir lá para a molhada. Já que estava ali...
Se do lado dos observadores era difícil arranjar um espaço com visibilidade, no lado dos fotógrafos era quase impossível. Coladas à fita de plástico estavam umas cinco filas, praticamente ombro a ombro, de pessoal com todo o tipo de câmaras. Se alguém se mexia dez centímetros, havia logo outro alguém a protestar. Face ao panorama, coloquei logo a máscara, não fosse o diabo tecê-las. Está bem que era ao ar livre mas o seguro morreu de velho. Acabei por ter a sorte de encontrar um fotógrafo que tinha um tripé baixo e que estava quase sempre debruçado. Ou seja, mais de noventa por cento do tempo, eu tinha a vista desimpedida. Coloquei-me atrás dele e comecei a disparar. Realmente, dali era uma visão do outro mundo. O céu azul com o sol de fim de dia. O mar lá em baixo, a rocha amarela e uma coruja branca enorme a olhar para nós, imperturbável.
Melhor era impossível. 
Tirei centenas de fotografias. Se é para ser fotógrafo, tem de ser a sério. Ela foi olhando, compondo as penas, incluindo as das patas que neste caso são forradas, tipo pantufas. A adaptação ao Ártico é evidente. Imagino que para ela, nas Astúrias, estava um calor de sufocante. Quando fiquei satisfeito, resolvi sair daquele aperto. Já sabia, pelo WhatsApp, que a Sandra tinha estado o tempo todo a filmar, e que entretanto se tinha colocado entre os dois grandes grupos. Fui ter com ela. 

As pantufas nas patas

A visão dali também não era má, e tinha a grande vantagem de não termos praticamente ninguém ao lado. Éramos apenas nós e mais um casal de asturianos.
Continuámos nas filmagens e na conversa. O sol ia descendo e a luz era cada vez mais fraca. O sonho de conseguir uma foto em voo, com boa luz esboroava-se a pouco e pouco. A última nesga do sol desapareceu no horizonte, e o bicho ainda estava, calmamente, no penhasco a olhar impassível para a multidão.

Foi quando já só se via a silhueta recortada contra um céu antracite que, de repente, ela resolveu ir à sua vida. Levantou e reparei, espantado, que vinha precisamente na nossa direção. Ainda tentei que a máquina registasse qualquer coisa mas, esta não é lá muito boa a focar no escuro. Baixei a máquina e limitei-me a apreciar o espetáculo. Passou a uns dois metros das nossas cabeças. Com o coração a bater forte, observei a envergadura impressionante e o voo silencioso. Vivi cada segundo do que se estava a passar em êxtase.
 
Das centenas de pessoas no local escolheu-nos a nós, os Tugas lá do sítio, para se despedir. Há coisas sem explicação e é melhor nem pensar muito nisso.

Epílogo:
Desde este sábado memorável e até ao dia de hoje, a coruja só foi vista por mais duas vezes, de forma fugaz, e já a mais de 100km de distância do Cabo Peñas. Apenas mais um punhado de observadores teve a sorte de a conseguir observar. Ou seja, foi uma sorte monumental o nosso avistamento, precisamente no último dia em que esteve no cabo mas, a sorte protege os audazes.