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25 junho 2021

A Cornuda do Patinha

13/06/2021 Vagos

O Domingo começou cedo. Às seis já estava de pé e às sete estava na Ponta da Erva. Ia ser uma manhã calma, com a minha outra metade. A ideia era sair de lá às onze e estar em casa, no sofá, às onze e meia. Ia ser um domingo mais ou menos descansado, portanto.
Não podia estar mais enganado. 
Pouco antes das dez horas, estávamos a dar meia volta ao carro em 38 Moios, já depois do café, quando toca o telefone. Pedro Ramalho? Isto não pode ser nada de bom, pensei. 
   -Então? Já estás a caminho?
   -Caminho? Mas o que é que apareceu?
   -Não sabes? Então tchau!
É o que dá não olhar para o telemóvel durante uns minutos. Já não se pode estar descansado.
   -Peraí! Diz lá o que é que se passa!
   -O Patinha descobriu uma calhandra-cornuda em Aveiro. 
Pronto. Estava o caldo entornado. Os planos iniciais foram todos metidos rapidamente no lixo. 

Calhandra-cornuda (eremophila alpestris)

Era a primeira Calhandra-cornuda (eremophila alpestris) que aparecia em Portugal e, pelos vistos, era possível ir vê-la. No meio dos nervos ainda consegui ter uma conversa mais ou menos racional. Sim, ia para lá. Sim, podíamos ir juntos. A Sandra decidiu que desta vez também ia, uma vez que já estava ali. Combinámos um ponto de encontro em Santarém. 
No caminho ainda liguei ao Vasco Valadares, que tinha ido passar o fim de semana por lá.  Foi apanhado um bocado desprevenido, mas resolveu alinhar.

O esquema parecia complicado, mas o certo é que, ainda antes das onze estávamos a sair da Capital do Gótico.
Pouco mais de hora e meia de conversa e condução depois, estávamos a estacionar na Praia do Areão, em Vagos. A viagem não teve grande história. Das conversas que fomos tendo, retive a parte do Pedro ter falado várias vezes que queria mesmo ver este bicho, que tinha falhado na Holanda. Também retive a parte em que vi a minha vida a andar para trás, quando disseram que se tinha que andar meia hora na praia até chegar ao ponto. 
-Meia-hora na areia?! - para quem não tem joelhos é complicado de conceber.
O Vasco ainda tentou por água na fervura - "Não é nada meia hora!" - mas o medo já estava instalado. Era desta que os joelhos acabavam.

Calhandra-cornuda (eremophila alpestris)
Foto Vasco Valadares
 
Estacionámos no acesso mais próximo possível que, mesmo assim, era tipo em Marte, ou mesmo Namek. Isto, claro, relação ao ponto onde estava o bicho. Estava, é como quem diz, tinha sido visto pela última vez.
Era meio dia e meia, uma linda hora para ver aves. Já havia alguns banhistas a abandonar o barco ou, neste caso, a praia. Para nela entrar havia dois passadiços. Um para a esquerda e um para a direita. A nossa quadrilha estava um bocado espalhada. A Sandra estava uns dez metros atrás e o Pedro e o Vasco para aí a uns cinquenta. Um dó li tá, escolhi o caminho da esquerda. Ainda ouvi a Sandra gritar para trás:
   -Esquerda ou direita?
Esperava uma resposta do Pedro ou do Vasco aos gritos mas, espantosamente, o que se ouviu foi a voz de uma banhista que estava encostada ao corrimão, logo ao lado. 
   -É para a esquerda! Os outros foram todos para lá.
E esta, hein?! Afinal toda a praia já sabia que se passava um evento extraordinário qualquer.  "Os outros" quereria dizer exatamente o quê? Os outros que estavam vestidos como vocês? Os outros com câmaras e telescópios? Os outros marcianos? Enfim, o que interessa é que ajudou. Lá segui a toda a velocidade pelo passadiço, ainda a tempo de ouvir a Sandra agradecer.

Calhandra-cornuda (eremophila alpestris)

Nem cem metros se andava, até atingir a praia. Cheguei ao outro lado e espreitei imediatamente pelos binóculos. Além das muitas banhistas em biquini vi, bem lá ao fundo do lado esquerdo, o que me pareceu à primeira vista ser uma fila de postes na areia. Olhei uma segunda vez, com mais calma e comecei a entrar em pânico. Afinal os postes eram pessoas, com os respectivos telescópios. E estavam a mais de um quilómetro, isso era mais que certo. Ora bolas! A história de andar meia hora na praia era mesmo verdade.
 
Os veraneantes olhavam para nós como se fôssemos alienígenas, o que no fundo, até era verdade. Como o que não tem remédio, remediado está, não pensei mais na vida e comecei a andar. Assim que passei o grosso dos banhistas, fui para a zona da areia molhada e acelerei o passo. Assim sempre era mais fácil. Os joelhos, e o corpo em geral não deram sinal e fui andando. Só ao fim dos primeiros dez minutos é que comecei a procurar o grupo que tinha visto ao longe, quando entrei na praia. Já deviam estar à vista, pensei. O certo é que nem ia a meio. Só ao fim de mais um quarto de hora é que comecei a vislumbrar o grupo. 

O vídeo possível

Rapidamente percebi que o bicho não estaria à vista. Quando vês um a olhar para aqui outro para ali e o grupo espalhado entre a duna e o areal, nunca é um bom indicador. Os receios confirmaram-se quando, quase ao chegar, vejo um dueto a bater em retirada. Ao passar dizem, com o que na altura achei ser um prazer disfarçado, "Ah e tal, já não se vê há dez minutos". 
Conversas destas já eu conheço de ginjeira. Não fiquei contente, mas também não era isso que me ia desmoralizar logo nos primeiros cinco minutos. Já que estava ali, agora era aguentar. Preparei-me psicologicamente para um dia de inferno. Calor, longe de tudo, o dia inteiro à procura do bicho, com a sede e a fome a apertar.
Cheguei ao local e cumprimentei a malta. Quase todos eram conhecidos, e quase ninguém tinha ainda visto o bicho. A exceção era o duo de descobridores, Samuel e Pedro, e pouco mais.

Calhandra-cornuda (eremophila alpestris)
 
Instalei o telescópio e preparei a máquina. Começou a espera. Nos primeiros minutos ainda estava a tremer e suar do esforço. No caminho nem notei mas, agora, com a seca que se perspetivava, estava tudo a vir ao de cima. 
Um ou outro borrelho ainda deu para assustar mas, da calhandra-cornuda nem sinal. O pessoal olhava para todo o lado mas, não estava fácil. Reparei que o mais ativo do grupo era o descobridor, o Samuel Patinha. Já tinha o olho treinado, quer para o bicho, quer para o local. 
Entre uma ou outra espreitadela no telescópio, comecei a pensar na vida. Quando o sol espreitava por trás das nuvens, o calor apertava. Será que a garrafinha de água ia chegar? E quando a fome apertar, como vai ser? E se o bicho aparece quando estivermos a comer? Esta praia é quase daqui até à lua. Se o bicho se mexe cem metros estamos lixados, etc., etc.
Enfim, coisas de quem já deu umas voltas nesta vida complicada de arrolador de aves.

Parecia que já tinha passado mais de uma hora mas, nem um quarto ainda ainda tínhamos em cima quando se ouviu a voz da esperança. Ou, no caso, a voz do Patinha, que era quase a mesma coisa. É mesmo assim. Os milagres acontecem a horas incertas.
   -Está ali, na base da duna!
Para variar, não vi logo onde ela andava. Ainda por cima ela aparecia e desaparecia para dentro da duna. Ainda demorou um ou dois minutos mas, a um após outro, toda a gente que ali estava foi vendo a estrela, neste caso personificada numa calhandra de cara amarela e máscara preta, com uns corninhos cómicos de lado.
A pouco e pouco, ela tornou-se mais afoita e mostrou-se cada vez melhor. A melhor parte foi quando resolveu dar um passeio à beira-mar. Com as conchas na areia à frente e o mar azul por trás, a visão encheu-me as medidas. 
Deixei-me estar sentado, a tirar as fotos possíveis, enquanto a Sandra foi filmando. Nem uma coisa nem outra ficaram espetaculares, o que era de esperar, sendo duas da tarde, num dia cada vez mais quente. 
Há sempre um crítico mas, neste caso ninguém teve a lata de assumir esse personagem. De zero a cinco, a observação foi um cinco. Fotos, é outra conversa.

Marcha triunfal na Praia do Areão

O regresso aos carros foi mais lento. Uma espécie de marcha triunfal. Não havia orquestra à vista, mas eu fui sempre a ouvi-la.
A verdade é que às duas e meia estávamos junto aos carros, de barriga cheia. Só faltava ir almoçar. 
Nem nas previsões mais otimistas tinha imaginado este cenário. Nem ao Purgatório tínhamos necessitado de ir, quanto mais ao Inferno. A Cornuda, além de gira foi simpática e relativamente pontual.

Apercebemo-nos que nos podíamos dar ao luxo, quase inaudito nestas ocasiões, de ir almoçar como deve de ser. Rapidamente o Pedro Ribeiro, um dos donos da zona - o outro era, obviamente, o Samuel - sugeriu um restaurante perto, em Mira. A hora era tardia. Íamos chegar por volta das três, mas quando liguei isso pareceu não ter importância, nem quando lhes disse que éramos um pequeno grupo de sete. Às vezes, o que parece complicado acaba por ser extremamente simples. Obviamente que ficou decidido logo ali que o protagonista do dia - Samuel Patinha - não pagava. 
O almoço foi excelente, mas o mais cómico foi o Samuel querer pagar a parte dele, mesmo depois de lhe dizerem mais de vinte vezes para guardar o dinheiro. Insistir uma ou duas vezes até se considera normal mas, vinte nunca tinha visto. Finalmente, lá aceitou, a contragosto.
 
O repasto de luxo
(foto Vasco Valadares)

 

 
Não há muitos dias assim, mas há que aproveitar quando aparecem. Entre transbordos e paragens, às sete já estava em casa, a descansar no sofá. Ou seja, a minha previsão concretizou-se. Teve foi um pequeno atraso de sete horas.

Epílogo:  
A calhandra só foi vista nesse dia e às sete da manhã do dia seguinte. Depois desapareceu sem deixar rasto. Às vezes, ter calma não nos ajuda nada.