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29 abril 2024

Levante em Abril

Narceja-real nos Salgados - 21/04/2024

No dia 20 de Abril, um sábado, surgiu no WhatsApp do ciberespaço, num dos grupos de entre as dezenas de grupos que por lá proliferam, a notícia pouco menos que mirabolante de que alguém teria visto uma Narceja-real (Gallinago media) no reino dos Algarves, mais concretamente na mal afortunada e tão pouco preservada Lagoa dos Salgados.

Narceja-real

O lançador do caos era o Francisco Maia, assíduo frequentador do local. Apesar de não ser membro do grupo Whatsapp, transmitiu o avistamento a outros, que o divulgaram, bem como à sua convicção. Estava seguro e tinha fotos. Bom, vamos lá ver essa evidência, pensei. Confesso que estive sempre incrédulo e, pelos comentários que fui vendo, não me pareceu estar sozinho. Uma narceja-real é difícil de ver e de identificar, mesmo onde ocorre. E eu que o diga...

Quem não conhece a espécie poderia ser tentado a dizer que "narcejas há muitas, seu palerma!". É verdade, mas esta é quase mítica. Sempre difícil de ver, mesmo nos locais de nidificação. Por cá havia apenas três registos, incluindo aves abatidas por caçadores. O último tinha sido em 2004 (!).
Quando tive a fortuna de ver algumas, na Polónia, já era quase de noite. É nessa altura que os machos vão para as arenas exibir-se para as fêmeas. Um momento que nunca mais se esquece. De dia não consegui ver nenhuma...

Nunca acreditei que pudessem existir fotos conclusivas para um caso destes.
Não podia estar mais enganado! Quando as fotos apareceram, deixaram muito pouco espaço para conversas, fossem elas relevantes ou de chacha. Viam-se claramente as diagnosticantes riscas brancas bem marcadas nas coberturas da asa.
Das reações no grupo retenho o emoji de olhos esbugalhados lá colocado pelo Thijs, o Holandês mais Algarvio de Portugal. Os ventos prolongados de Levante na Primavera tinham trazido mais uma surpresa.

Mandei logo mensagem aos meus companheiros amigos sofredores Pedro Nicolau e Pedro Ramalho a dizer que, face ao que se via nas fotos, não estava a ver como é que aquilo não era uma Narceja-real. Como o Português é uma lingua traiçoeira, quer um, quer o outro perceberam exatamente o contrário...

Narceja-real - veja-se o branco nos lados da cauda

Agora que o evento anteriormente impossível estava confirmado, estávamos na hora das decisões. O gabinete de crise - neste caso eu e o Pedro Nicolau - reuniu rapidamente e, após o esclarecimento do mal-entendido da minha mensagem anterior, a decisão foi de sair às três e meia da manhã para o Algarve. Parece mas, não é um erro. Foi mesmo às três e meia. Isto, para estar nos Salgados pouco antes do nascer do sol. Ainda se falou em ir mais tarde, esperar por notícias mas, essa moção perdeu por larga margem. Também veio ao de cima a preocupação do Pedro com a possibilidade de o filho nascer durante o arrolamento. Pensei que, isso sim, seria uma crónica a sério. Sair às três da manhã para ver uma ave a 250km é uma coisa. Juntar a isso a possibilidade de ter um filho ao mesmo tempo é todo um outro nível de loucura.


Contrariamente ao que é habitual, consegui dormir umas três horas, uma enormidade, face aos nervos e às circunstâncias. Às 3h30 da manhã de dia 21 estávamos a caminho.
Éramos três, porque o António Goncalves optou por aproveitar a boleia. Era uma equipa inédita mas promissora. Veio-me à cabeca a espantosa descoberta que eu e o António fizemos há uns anos no mesmo local, de uma felosa-boreal. Tínhamos tido uma sorte monumental. Será que tinha sobrado alguma?

A viagem fez-se sem incidentes, de noite e com a tradicional paragem na área de serviço do costume. Desta vez passámos mais cedo que o habitual e as prateleiras dos bolos ainda estavam vazias. A senhora que nos atendeu, ainda meio ensonada, ficou a olhar para nós. Quem seriam estas aves raras a pedir café às 4h30 da manhã e a interromper o seu sono?
Chegámos aos Salgados ainda não eram 6h30. O Sol já se fazia anunciar mas, ainda faltavam uns bons vinte minutos para aparecerem os primeiros raios. O frio ainda era mais que muito. Estávamos a estacionar, quando reparámos noutros faróis logo atras de nós. Outro carro? Quem seria? Àquela hora já não poderiam ser os frequentadores noturnos que tão má fama dão ao local. Abre-se a porta e sai o Sérgio Correia. Mais um maluco. Rapidamente chegaram também o Nuno dos Santos e o Rogério Rodrigues. Já éramos uma multidão.

A busca começou de imediato, ainda com aquela claridade quase inexistente que faz com que todos os gatos sejam pardos. Nem cinco minutos tinham passado quando, o António Gonçalves descobre uma narceja perdida no meio dos caniços e em contraluz. Seria a nossa? Parecia riscada de branco nos flancos e o bico parecia curto. Começou a hipnose coletiva e começámos a deitar foguetes. Ah e tal que que se viam perfeitamente as riscas brancas nos flancos, que o bico era curto, e mais outras que tais. Recordo-me de o único a pôr água na fervura ter sido o próprio descobridor, o António. Aquilo ainda durou uma meia hora, até a luz ser suficiente para se ver que, afinal, as riscas eram riscas mas não eram brancas e que o bico era curto mas não era assim tão curto. Tudo terminou subitamente quando ela decidiu ir à sua vida e o Nicolau nos mostrou uma foto em vôo onde se via claramente que a ave não era de sangue azul. Era só uma narceja do povo.

Pousou no prado...

Foi triste mas, ainda era cedo para desilusões. Por outro lado, estava mais que provado que havia mais de uma narceja na zona, o que não era nada bom para a busca. Como estávamos em contraluz, optámos por mudar de posição e ficar do outro lado das poças, com a ruína lá da zona nas nossas costas. Como a água era muita, tivemos de dar uma "granda volta" e contornar as grandes poças. No meio das ervas e já com os pés molhados, lembro-me de ter pensado que devia mas é ter trazido as botas e já agora, outras calças.
Foi nesta altura que não podia ser melhor aplicado o provérbio "há males que vêm por bem". Ouço de repente o pessoal que estava uns vinte metros à frente a gritar "Olha! Olha!" e "É ela!". Uma narceja tinha levantado perto do caminho. Levanto os binóculos e vejo claramente as marcações brancas na asa. O vôo era pesado, mais direto e mais baixo que o que se costuma ver nas narcejas normais. Não havia dúvida que esta era da nobreza, uma Narceja-real.
As fotos que alguns conseguiram tirar mostravam exatamente o mesmo, incluindo a cauda, com os lados brancos. Desta vez, não se tratava de hipnose coletiva. Era mesmo verdade.

Pousou no prado a uns bons cinquenta metros. Durante uns minutos conseguimos ver a estrela no telescópio, com todo o pormenor.
Era a euforia geral nos Salgados. A minha ainda maior se tornou quando a narceja resolveu voltar para a poça onde estávamos e consegui, finalmente, os primeiros registos fotográficos.

Estávamos a digerir o sucesso, quando começam a chegar os primeiros nativos, neste caso o Alexandre Guerreiro e a sua companheira. Olhei para o telemóvel e vi que eram apenas 8h30. Estranho, pensei, o pessoal de cá chega sempre às 9h30. Vieram cedo... Pouco depois chegou também o José Godinho, para compor o contingente.
O pássaro madrugador é que apanha a minhoca e o bicho estava escondido nessa altura mas, não tiveram de esperar muito. Mais uns minutos e lá voltou a levantar para o prado. Toda a gente ficou contente. O êxtase foi completo e as caras de todos diziam isso.


Narceja-real 

A Operação Narceja estava no fim e o pessoal começou a desmobilizar. Sim, porque isto aos domingos não costuma ser fácil sair de casa sem hora para voltar.
O nosso trio ainda deu umas voltas pela zona, não fosse mais uma felosa-boreal desta vida andar por lá mas, já tínhamos gasto a sorte toda desse dia. Por volta das onze estávamos a caminho. Chegámos a Lisboa às duas da tarde e ainda deu para comparecer ao almoço de família. Quando corre bem, corre bem.

Esta crónica é dedicada ao meu amigo Pedro Nicolau. Não é todos os dias que se vai a um arrolamento com alguém que tem a possibilidade de ser pai a qualquer momento. Acabámos por falhar o grande dia por uma semana, e ainda bem.
Um grande abraço e muitas felicidades!


#canaldoxofred