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19 fevereiro 2025

O dia mais longo

Ao largo da Ilha Marion, África do Sul
27 de Janeiro de 2025

Há uma ilha no meio do nada, a meio caminho entre o Cabo das Tormentas e a Antártida. Na ilha Marion e na sua vizinha, a ilha Prince Edward, nidificam cerca de dois milhões de aves marinhas, de 29 espécies. 
A importância destas ilhas é vital. Só uma das espécies, o albatroz-gigante (Diomedea exulans) tem lá a nidificar 40% da sua população total. 

Albatroz-preto (Sooty albatross)

A vida nos "Roaring Forties" não é fácil mas, o homem, como sempre, encarregou-se de a complicar ainda mais.  No início do século 19 as frotas baleeiras que frequentavam a zona levaram para lá os ratos domésticos, que se adaptaram excepcionalmente bem e passaram a alimentar-se das crias das aves, sem defesa para fazer face a essa ameaça.

Foi com este panorama que a BirdLife da África do Sul concebeu o ambicioso projeto Mouse-free Marion, para libertar de vez a ilha dos ratos. A ideia é excelente mas é preciso dinheiro. Muito dinheiro.
Uma das iniciativas em que pensaram para aumentar a notoriedade do projeto, além de angariar fundos, foi o Flock to Marion. Um cruzeiro às referidas ilhas, num barco de luxo, com largas centenas de observadores. 

Pardelão-subantártico (Northern Giant Petrel)

Tinha seguido de longe a iniciativa em 2022, aquando do primeiro cruzeiro mas, na altura, estávamos ainda em plena época de pandemia ou finais de pandemia. Nunca coloquei a hipótese de participar. 
Como o mundo dá muitas voltas, três anos depois acabei por me inscrever no Flock to Marion 2025. Não foi um caminho muito direto mas, fosse lá como fosse, inscrevi-me.
A inscrição foi feita com quase um ano de antecedência mas o tempo passou, como sempre o tempo faz, e foi com entusiasmo que  aterrei em Durban no dia anterior ao embarque no MSC Música. 

                O gigante MSC Música, atrás do terminal de cruzeiros Nelson Mandela, em Durban

Finalmente, após quase um ano de espera depois da inscrição, chegou o grande dia, Sexta-feira, 24 de janeiro de 2025. Na pequena multidão de 1900 pessoas que foi embarcando a conta-gotas estava eu e mais sete portugueses. Os procedimentos foram muito mais simples do que imaginei e rapidamente me instalei no convés 7 de estibordo a ver as aves que andavam pelo porto.

O barco saiu ao fim da tarde e sabíamos que só íamos chegar a Marion na segunda, dia 27. Tinham-nos dito que os dias em trânsito seriam para descansar e que o esforço de observação deveria ser concentrado nos dias nas ilhas - 27 e 28. Ouvi esse conselho mas, fiz orelhas moucas, que isto não é todos os dias que se está nos mares do Sul. Olhando para trás, obviamente que quem nos aconselhou tinha razão. 

Albatroz-gigante (Wandering Albatross)

Todos os dias do cruzeiro foram especiais mas, houve um que foi mais especial que os outros e, é nesse que vamos concentrar o relato. Navegamos assim até ao nosso dia D, 27 de Janeiro, o "Dia mais Longo" da viagem. 

A emoção tinha sido em crescendo desde o primeiro dia. Domingo, 26, já tinha sido excelente e os albatrozes-gigantes tinham aparecido aqui e ali. Os albatrozes mais pequenos e os faigões (prions) também. No fim do dia, vi o meu primeiro pardelão (macronectes) e fiquei emocionado. Tinha sido um dia em cheio e tinha atingido quase todos os objetivos que delineei para a viagem.
Seria possível ter um dia ainda melhor? Muita gente que tinha vindo no cruzeiro de 2022 havia avisado "espera até chegares à ilha e vais ver".
Sempre achei que estavam a exagerar.

Freira-de-penas-lisas (Soft-plumaged petrel) 
Na sua mais rara forma escura

Como mais vale prevenir, não fosse o pessoal ter razão, no dia 27, eu e o meu companheiro de quarto, Rui Pereira, combinámos a alvorada para as 3h20 (!!!). Às 3h45 já estava no convés. Estava lusco-fusco, mas mais para o fusco. Obviamente que não fui o primeiro mas, ainda havia pouca gente à vista. Como só se viam silhuetas, e mal, o silêncio imperava entre os guias e restantes madrugadores, leia-se malucos, que por lá andavam. Nisto, começo a aperceber-me que um guia americano de um grupo que conhecia já estava a dar indicações. "Possível isto, possível aquilo, possível aqueloutro". Fartei-me de rir. Realmente, com aquela luz tudo era possível. 
Cheguei à conclusão de que me tinha levantado cedo de mais e de que só valia a pena levantar os binóculos ou a câmara dali a pelo menos mais meia hora.

Albatroz-tisnado (Light-mantled Albatross)

Quando a luz já permitia ver qualquer coisa, o espetáculo começou a revelar-se. Os bichos eram aos milhares. O campo de visão estava sempre preenchido. Em vez de ficar a processar as emoções e a pensar na vida, resolvi começar a trabalhar e a registar o que via. Foi disparar e não pensar mais nisso. Afinal, tinha trazido 20 cartões para quê? 

Albatroz ao pequeno-almoço

Antes do pequeno-almoço, a estrela foi o primeiro Albatroz-tisnado da viagem (Light-mantled albatross). Talvez o mais bonito das sete espécies de albatroz observadas na expedição. A subtileza na variação de tons castanho e prata é do outro mundo. A surpresa foram os vários petrel-mergulhador-comum (Comon diving petrel). Nunca pensei vê-los tão bem e, ainda por cima, ser capaz de fazer registos a partir de um porta-aviões. Uma espécie de mini torda, com asas minúsculas e que voa de uma forma desajeitada, ao ponto de ter de atravessar as ondas a mergulhar. O nome "mergulhador" fica-lhes bem, sem dúvida. 
O show teve skuas, pardelões, painhos, albatrozes de várias espécies, tudo com fartura. Foi preciso uma grande força mental para virar as costas àquilo e ir tomar o pequeno-almoco, pouco depois das seis da manhã. 
O que vale é que até da mesa no 12º andar se via a bicharada. Não comi sozinho, porque me encontrei lá com um dos companheiros da viagem, o Hugo Blanco, que também tinha ganho o hábito de tomar o pequeno-almoço à mesma hora. Isto há gostos para tudo. 

Petrel-mergulhador-comum
(Comon diving petrel)

Depois dessa primeira paragem para reabastecimento, resolvemos ir os dois para a popaO espetáculo continuava. eram pardelões com fartura, além de albatrozes-gigantes (Wandering albatross) e albatrozes mais pequenos. "Olha o pardelão fresquinho!", foi a frase que o Hugo popularizou por esses dias. Por vezes havia reuniões de condomínio com cinco, seis, dez bichos pousados na água. Muitos subiam até à altura do nosso convés, no décimo segundo andar e até acima das nossas cabeças. Para compor o panorama ainda passavam faigões (prions), freiras de vários tipos. Foi sempre a disparar e quando não disparava para descansar o braço, ficava a admirar o show. Foi dos melhores momentos da expedição, poder ver tanto pardelão tão perto. É daquelas aves que parece vinda de outra época. Um dinossauro voador com ar de ser mau como as cobras. Era o meu principal objetivo da viagem, que já tinha visto no dia anterior por uns segundos. A emoção era muita mas, não a deixei tomar conta do acontecimento. Aproveitei a oportunidade e desfrutei, para além de encher os cartões com mais uns milhares de registos. 

Faigão-do-índico (Salvin's prion)

Quando achámos que já tínhamos pardelões suficientes, resolvemos mudar de pouso. Continuámos pela ré, mas descemos dois ou três andares. 
Não tinha passado muito tempo quando começámos a ouvir um grande sururu vindo um pouco de todo o lado. Andava um Pintado à volta do barco (Daption capense). A loucura estava instalada. Não é que fosse um bicho raro mas era completamente inesperado para a o local e altura do ano. Aparentemente, estaria do lado oposto do barco. Nós estávamos à esquerda e, ao que parecia, estava a ser visto à direita. Estas manobras de mudança de bordo raramente correm bem e, por isso, resolvemos procurar mesmo dali. Não tinham passado nem dois minutos quando deteto o bicho na esteira do barco. "Está ali!". Lá vinha ele a fazer manobras acrobáticas por cima da água azul-turquesa. O Hugo ainda teve de perguntar várias vezes o habitual nestas situações, "Onde? Onde é que está?", e eu de  dar a resposta que já estava célebre na viagem "Eh pá, põe-te atrás de mim!". Finalmente, lá o detectou também. O Pintado, além de bonito, foi simpático e deixou-se ficar algum tempo. As fotos não foram fáceis mas ficaram boas. Isto de passar de pardelões e albatrozes para pintados é complicado. É como passar de uma corrida de camiões para uma de fórmula 1. 

Pintado na popa (Pintado Petrel)

A euforia estava instalada um pouco por todo o barco. Era a alegria do povo. O Hugo estava quase fora de si. Ainda  sinto as palmadas de contentamento que me deu nas costas. 
Achei que o dia estava ganho mas, o problema é que ainda nem sequer eram oito horas. 

Fomos outra vez para o deck 7 e continuou o fartar vilanagem. A bicharada às centenas, não parava de aparecer. Nunca os olhos tiveram um minuto de descanso. 

Ilha Marion

Já tínhamos passado a ilha Prince Edward e, por volta das nove horas, avistava-se ao longe a ilha Marion. Fiquei impressionado com a dimensão, mas sobretudo com a altura, que me disseram ser superior a 1200 metros. Lá no alto, ainda se conseguia avistar neve. Na minha cabeça tinha um ilhéu pequeno de rocha mas o que vi foi uma ilha a sério. Pena não termos sido autorizados a aproximar-nos a menos de doze milhas. 

Albatroz-de-bico-pintado-do-índico
(Indian Yellow-nosed Albatross)

Foi por volta das 10h30 que comecámos a ouvir pessoal a gritar "pinguim!". Tinha esperança de ver um mas, agora, a esperança transformava-se rapidamente em possibilidade. "Pinguim às 2h", gritava alguém e, logo os olhos se viravam para a área em questão à procura dos bichos. 
Ainda foram precisas algumas iterações para afinar a vista e perceber como se via um pinguim e mais umas quantas para os conseguir fotografar. Claramente, o bicho mais difícil de ver e, consequentemente, de fotografar durante toda a expedição. O raio dos bichos estavam sempre em movimento e a mergulhar sem parar. Era preciso descobrir o sítio aproximado onde estavam e, depois, ter a sorte de os apanhar a sair da água. A maioria das vezes só se viam salpicos ou a água a borbulhar mas, com paciência, lá consegui ver quatro espécies ao longo do dia. A saga dos pinguins continuou o dia todo. Tudo foi possível, até fotografar pinguins em vôo. 

Pinguim-macaroni (Macaroni penguin)
Sim, eles voam.

A manhã foi animada, mas havia que ir almoçar e, de preferência, cedo. Isto para termos acesso a uma das mesas à janela. Já toda a gente tinha percebido que nesta viagem se tinha de estar permanentemente com um olho no burro e outro no cigano. Estávamos à mesa a comer alegremente quando o Hugo diz "Ora vê lá se não é o Albatroz de que precisamos". Olhamos para a zona e vemos dois ou três albatrozes a passar, um deles com o bico laranja. Era sem dúvida um  Albatroz-de-sobrancelha (Black-browed albatross). O próximo minuto foi dramático. Como fotografar um albatroz através do vidro cheio de sal? Com algum esforço lá consegui ficar com a evidência. Não era um grande registo mas era um registo. E assim se fizeram três estreias numa. O albatroz-de-sobrancelha, fotografar através do vidro do barco e ainda  fotografar ao mesmo tempo que se almoça.  Não é para qualquer um.

Albatroz-de-sobrancelha
ao almoço, através do vidro.

Depois do almoço animado, voltámos ao trabalho, que um cruzeiro destes não é para calões. Durante a tarde, além dos pinguins, dos faigões e dos múltiplos-painhos-de-barriga-preta, entre muitos outros, apareceram algumas novas estrelas no firmamento. Uma foi o Painho-de-dorso-cinzento (Grey-backed storm petrel). Para o ver tive de aprender a reconhecer Kelp. Uma alga em formato de polvo a que eles se costumam associar para se alimentarem. Sempre a aprender. O outro foi Petrel-azul (Blue Petrel). É parecido com um faigão mas tem a ponta da cauda branca e não preta. A verdade é que esse tinha o estatuto de estrela maior, ao ponto de causar debandadas sucessivas de umas dezenas de observadores. "Petrel-azul a bombordo", e lá ia a manada de estibordo para bombordo pelo meio do casino. "Afinal voltou para estibordo!", e lá ia o pessoal de volta à casa partida. Fiz isso algumas vezes ao longo da viagem, mais com maus resultados do que bons. Numa das vezes lembro-me de ouvir perfeitamente as vozes dos funcionários do casino. "Bird! Bird!". O importante é que toda a gente estava divertida. O que nós fazemos em nome da ciência...

Petrel-azul (Blue Petrel) 
O maior causador de debandadas da viagem

Foi também depois de almoço que os Portugueses, coletivamente, deram sinal de vida e se mostraram à turba. Chegámos ao Deck 7 e de imediato o Rui Pereira vê e fotografa um faigão-de-bico-curto (fairy prion), pondo a malta das redondezas a mexer, à procura do bicho, que não é nada fácil de encontrar e identificar no meio das outras centenas de faigões. Passado uns minutos, estava o Luís Custódia a queixar-se da vida, de que ainda não tinha conseguido ver um Petrel-azul e logo o Bruno Silva avista um, provocando mais uma debandada a bordo. Mais uns minutos e o mesmo Bruno avista uma freira-de-cabeça-branca (White-headed petrel) que muita gente, incluindo ele próprio ainda não tinha visto. Mais uma pequena multidão a mexer. Tudo isto no espaço de menos de meia-hora. Foi aí que reparei que estávamos rodeados de gente e disse que era a nossa vez, dos Portugueses andarem a "espalhar magia" e a risota instalou-se. Dito isto, resolvemos ir "espalhar magia" para outro lado. 

A Freira-de-cabeça-branca do Bruno
(White-headed petrel)

Uma nota mais delicada foi a ida ao hospital por volta das quatro da tarde. O Luís  tinha passado mal a noite e não se sentia bem. Seria da emoção? Conhecendo-o desde 2010 achei que não estava a brincar. Ao longo do dia fui-lhe dizendo que, se ele quisesse ia com ele ao médico, uma vez que o Inglês não é o seu forte. 
Assim, às 16h lá fomos ao hospital do navio - mais uma estreia. A médica era bem gira, por sinal. Além de outra medicação, recomendou também fazer um aerossol. Fomos para a sala de tratamento e lá estivemos um bom bocado. Felizmente, a sala tinha uma vigia e conseguimos estar sempre de olho nos albatrozes. Até cheguei a pegar nos binóculos. Teria sido uma estreia mundial? Observar aves na sala de tratamentos do hospital do navio. Julgo ter visto um sorriso - seria de gozo? -  na cara dos enfermeiros e da própria médica... O importante é que, no final da desventura, o Luís se sentia melhor. A carteira também ficou mais leve, que as consultas nos cruzeiros não são baratas.

Visita ao hospital, sempre com os albatrozes na mira.

Voltámos ao deck 7, e por lá estivemos a aproveitar até ao último segundo, até ao lusco-fusco se tornar fusco. A última imagem que recordo é a do enxame de aves atrás do navio. Milhares de bichos de todas as espécies faziam pela vida, com a luz do fim de tarde. Uma visão do outro mundo mas, no fundo, fazia sentido porque era no fim do mundo que nós estávamos. 

Panorama do deck 7 de estibordo

Durante o dia, vários guias perguntaram-me o que pensava da experiência. A minha resposta veio diretamente do fundo do coração:
-Podias contar-me mil vezes como era. Só vivendo é que se compreende.
Regressei ao quarto de coração cheio. Perguntei ao Rui, enquanto dono de um daqueles relógios de pulso que tudo controlam, quanto tínhamos andado nesse dia e fiquei atónito com a resposta. Dez (!) quilómetros. Num barco de trezentos metros parece difícil de acreditar, mas lá que o relógio dizia isso, dizia.

Albatroz-gigante (Wandering albatross)

Apesar do cansaço, o dia acabou como todos os outros. Fomos jantar a um dos restaurantes do navio, o Belle Époque. Fui vestido mais ou menos a rigor, que isto há que respeitar as tradições. Devia ser dos poucos naquela expedição a fazê-lo, e já me tinham dito, logo no primeiro dia, que era dos mais bem vestidos ao jantar. Não percebi se era um elogio ou uma crítica mas também não me importei. O meu contentamento, e o do grupo, via-se e sentia-se.
E o melhor de tudo é que aquilo ainda ia a meio. Amanhã havia mais.

Jantar de Gala no Belle Époque