27 de Janeiro de 2025
Há uma ilha no meio do nada, a meio caminho entre o Cabo das Tormentas e a Antártida. Na ilha Marion e na sua vizinha, a ilha Prince Edward, nidificam cerca de dois milhões de aves marinhas, de 29 espécies.
A importância destas ilhas é vital. Só uma das espécies, o albatroz-gigante (Diomedea exulans) tem lá a nidificar 40% da sua população total.
A vida nos "Roaring Forties" não é fácil mas, o homem, como sempre, encarregou-se de a complicar ainda mais. No início do século 19 as frotas baleeiras que frequentavam a zona levaram para lá os ratos domésticos, que se adaptaram excepcionalmente bem e passaram a alimentar-se das crias das aves, sem defesa para fazer face a essa ameaça.
Foi com este panorama que a BirdLife da África do Sul concebeu o ambicioso projeto Mouse-free Marion, para libertar de vez a ilha dos ratos. A ideia é excelente mas é preciso dinheiro. Muito dinheiro.
Uma das iniciativas em que pensaram para aumentar a notoriedade do projeto, além de angariar fundos, foi o Flock to Marion. Um cruzeiro às referidas ilhas, num barco de luxo, com largas centenas de observadores.
Tinha seguido de longe a iniciativa em 2022, aquando do primeiro cruzeiro mas, na altura, estávamos ainda em plena época de pandemia ou finais de pandemia. Nunca coloquei a hipótese de participar.
Como o mundo dá muitas voltas, três anos depois acabei por me inscrever no Flock to Marion 2025. Não foi um caminho muito direto mas, fosse lá como fosse, inscrevi-me.
A inscrição foi feita com quase um ano de antecedência mas o tempo passou, como sempre o tempo faz, e foi com entusiasmo que aterrei em Durban no dia anterior ao embarque no MSC Música.
Finalmente, após quase um ano de espera depois da inscrição, chegou o grande dia, Sexta-feira, 24 de janeiro de 2025. Na pequena multidão de 1900 pessoas que foi embarcando a conta-gotas estava eu e mais sete portugueses. Os procedimentos foram muito mais simples do que imaginei e rapidamente me instalei no convés 7 de estibordo a ver as aves que andavam pelo porto.
O barco saiu ao fim da tarde e sabíamos que só íamos chegar a Marion na segunda, dia 27. Tinham-nos dito que os dias em trânsito seriam para descansar e que o esforço de observação deveria ser concentrado nos dias nas ilhas - 27 e 28. Ouvi esse conselho mas, fiz orelhas moucas, que isto não é todos os dias que se está nos mares do Sul. Olhando para trás, obviamente que quem nos aconselhou tinha razão.
Todos os dias do cruzeiro foram especiais mas, houve um que foi mais especial que os outros e, é nesse que vamos concentrar o relato. Navegamos assim até ao nosso dia D, 27 de Janeiro, o "Dia mais Longo" da viagem.
A emoção tinha sido em crescendo desde o primeiro dia. Domingo, 26, já tinha sido excelente e os albatrozes-gigantes tinham aparecido aqui e ali. Os albatrozes mais pequenos e os faigões (prions) também. No fim do dia, vi o meu primeiro pardelão (macronectes) e fiquei emocionado. Tinha sido um dia em cheio e tinha atingido quase todos os objetivos que delineei para a viagem.
Seria possível ter um dia ainda melhor? Muita gente que tinha vindo no cruzeiro de 2022 havia avisado "espera até chegares à ilha e vais ver".
Sempre achei que estavam a exagerar.
Como mais vale prevenir, não fosse o pessoal ter razão, no dia 27, eu e o meu companheiro de quarto, Rui Pereira, combinámos a alvorada para as 3h20 (!!!). Às 3h45 já estava no convés. Estava lusco-fusco, mas mais para o fusco. Obviamente que não fui o primeiro mas, ainda havia pouca gente à vista. Como só se viam silhuetas, e mal, o silêncio imperava entre os guias e restantes madrugadores, leia-se malucos, que por lá andavam. Nisto, começo a aperceber-me que um guia americano de um grupo que conhecia já estava a dar indicações. "Possível isto, possível aquilo, possível aqueloutro". Fartei-me de rir. Realmente, com aquela luz tudo era possível.
Cheguei à conclusão de que me tinha levantado cedo de mais e de que só valia a pena levantar os binóculos ou a câmara dali a pelo menos mais meia hora.
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Albatroz-tisnado (Light-mantled Albatross) |
Quando a luz já permitia ver qualquer coisa, o espetáculo começou a revelar-se. Os bichos eram aos milhares. O campo de visão estava sempre preenchido. Em vez de ficar a processar as emoções e a pensar na vida, resolvi começar a trabalhar e a registar o que via. Foi disparar e não pensar mais nisso. Afinal, tinha trazido 20 cartões para quê?
Antes do pequeno-almoço, a estrela foi o primeiro Albatroz-tisnado da viagem (Light-mantled albatross). Talvez o mais bonito das sete espécies de albatroz observadas na expedição. A subtileza na variação de tons castanho e prata é do outro mundo. A surpresa foram os vários petrel-mergulhador-comum (Comon diving petrel). Nunca pensei vê-los tão bem e, ainda por cima, ser capaz de fazer registos a partir de um porta-aviões. Uma espécie de mini torda, com asas minúsculas e que voa de uma forma desajeitada, ao ponto de ter de atravessar as ondas a mergulhar. O nome "mergulhador" fica-lhes bem, sem dúvida.
O show teve skuas, pardelões, painhos, albatrozes de várias espécies, tudo com fartura. Foi preciso uma grande força mental para virar as costas àquilo e ir tomar o pequeno-almoco, pouco depois das seis da manhã.
O que vale é que até da mesa no 12º andar se via a bicharada. Não comi sozinho, porque me encontrei lá com um dos companheiros da viagem, o Hugo Blanco, que também tinha ganho o hábito de tomar o pequeno-almoço à mesma hora. Isto há gostos para tudo.
Depois dessa primeira paragem para reabastecimento, resolvemos ir os dois para a popa. O espetáculo continuava. eram pardelões com fartura, além de albatrozes-gigantes (Wandering albatross) e albatrozes mais pequenos. "Olha o pardelão fresquinho!", foi a frase que o Hugo popularizou por esses dias. Por vezes havia reuniões de condomínio com cinco, seis, dez bichos pousados na água. Muitos subiam até à altura do nosso convés, no décimo segundo andar e até acima das nossas cabeças. Para compor o panorama ainda passavam faigões (prions), freiras de vários tipos. Foi sempre a disparar e quando não disparava para descansar o braço, ficava a admirar o show. Foi dos melhores momentos da expedição, poder ver tanto pardelão tão perto. É daquelas aves que parece vinda de outra época. Um dinossauro voador com ar de ser mau como as cobras. Era o meu principal objetivo da viagem, que já tinha visto no dia anterior por uns segundos. A emoção era muita mas, não a deixei tomar conta do acontecimento. Aproveitei a oportunidade e desfrutei, para além de encher os cartões com mais uns milhares de registos.
Quando achámos que já tínhamos pardelões suficientes, resolvemos mudar de pouso. Continuámos pela ré, mas descemos dois ou três andares.
Não tinha passado muito tempo quando começámos a ouvir um grande sururu vindo um pouco de todo o lado. Andava um Pintado à volta do barco (Daption capense). A loucura estava instalada. Não é que fosse um bicho raro mas era completamente inesperado para a o local e altura do ano. Aparentemente, estaria do lado oposto do barco. Nós estávamos à esquerda e, ao que parecia, estava a ser visto à direita. Estas manobras de mudança de bordo raramente correm bem e, por isso, resolvemos procurar mesmo dali. Não tinham passado nem dois minutos quando deteto o bicho na esteira do barco. "Está ali!". Lá vinha ele a fazer manobras acrobáticas por cima da água azul-turquesa. O Hugo ainda teve de perguntar várias vezes o habitual nestas situações, "Onde? Onde é que está?", e eu de dar a resposta que já estava célebre na viagem "Eh pá, põe-te atrás de mim!". Finalmente, lá o detectou também. O Pintado, além de bonito, foi simpático e deixou-se ficar algum tempo. As fotos não foram fáceis mas ficaram boas. Isto de passar de pardelões e albatrozes para pintados é complicado. É como passar de uma corrida de camiões para uma de fórmula 1.
A euforia estava instalada um pouco por todo o barco. Era a alegria do povo. O Hugo estava quase fora de si. Ainda sinto as palmadas de contentamento que me deu nas costas.
Achei que o dia estava ganho mas, o problema é que ainda nem sequer eram oito horas.
Fomos outra vez para o deck 7 e continuou o fartar vilanagem. A bicharada às centenas, não parava de aparecer. Nunca os olhos tiveram um minuto de descanso.
Já tínhamos passado a ilha Prince Edward e, por volta das nove horas, avistava-se ao longe a ilha Marion. Fiquei impressionado com a dimensão, mas sobretudo com a altura, que me disseram ser superior a 1200 metros. Lá no alto, ainda se conseguia avistar neve. Na minha cabeça tinha um ilhéu pequeno de rocha mas o que vi foi uma ilha a sério. Pena não termos sido autorizados a aproximar-nos a menos de doze milhas.
Foi por volta das 10h30 que comecámos a ouvir pessoal a gritar "pinguim!". Tinha esperança de ver um mas, agora, a esperança transformava-se rapidamente em possibilidade. "Pinguim às 2h", gritava alguém e, logo os olhos se viravam para a área em questão à procura dos bichos.
Ainda foram precisas algumas iterações para afinar a vista e perceber como se via um pinguim e mais umas quantas para os conseguir fotografar. Claramente, o bicho mais difícil de ver e, consequentemente, de fotografar durante toda a expedição. O raio dos bichos estavam sempre em movimento e a mergulhar sem parar. Era preciso descobrir o sítio aproximado onde estavam e, depois, ter a sorte de os apanhar a sair da água. A maioria das vezes só se viam salpicos ou a água a borbulhar mas, com paciência, lá consegui ver quatro espécies ao longo do dia. A saga dos pinguins continuou o dia todo. Tudo foi possível, até fotografar pinguins em vôo.
A manhã foi animada, mas havia que ir almoçar e, de preferência, cedo. Isto para termos acesso a uma das mesas à janela. Já toda a gente tinha percebido que nesta viagem se tinha de estar permanentemente com um olho no burro e outro no cigano. Estávamos à mesa a comer alegremente quando o Hugo diz "Ora vê lá se não é o Albatroz de que precisamos". Olhamos para a zona e vemos dois ou três albatrozes a passar, um deles com o bico laranja. Era sem dúvida um Albatroz-de-sobrancelha (Black-browed albatross). O próximo minuto foi dramático. Como fotografar um albatroz através do vidro cheio de sal? Com algum esforço lá consegui ficar com a evidência. Não era um grande registo mas era um registo. E assim se fizeram três estreias numa. O albatroz-de-sobrancelha, fotografar através do vidro do barco e ainda fotografar ao mesmo tempo que se almoça. Não é para qualquer um.
Depois do almoço animado, voltámos ao trabalho, que um cruzeiro destes não é para calões. Durante a tarde, além dos pinguins, dos faigões e dos múltiplos-painhos-de-barriga-preta, entre muitos outros, apareceram algumas novas estrelas no firmamento. Uma foi o Painho-de-dorso-cinzento (Grey-backed storm petrel). Para o ver tive de aprender a reconhecer Kelp. Uma alga em formato de polvo a que eles se costumam associar para se alimentarem. Sempre a aprender. O outro foi Petrel-azul (Blue Petrel). É parecido com um faigão mas tem a ponta da cauda branca e não preta. A verdade é que esse tinha o estatuto de estrela maior, ao ponto de causar debandadas sucessivas de umas dezenas de observadores. "Petrel-azul a bombordo", e lá ia a manada de estibordo para bombordo pelo meio do casino. "Afinal voltou para estibordo!", e lá ia o pessoal de volta à casa partida. Fiz isso algumas vezes ao longo da viagem, mais com maus resultados do que bons. Numa das vezes lembro-me de ouvir perfeitamente as vozes dos funcionários do casino. "Bird! Bird!". O importante é que toda a gente estava divertida. O que nós fazemos em nome da ciência...
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Petrel-azul (Blue Petrel) O maior causador de debandadas da viagem |
Foi também depois de almoço que os Portugueses, coletivamente, deram sinal de vida e se mostraram à turba. Chegámos ao Deck 7 e de imediato o Rui Pereira vê e fotografa um faigão-de-bico-curto (fairy prion), pondo a malta das redondezas a mexer, à procura do bicho, que não é nada fácil de encontrar e identificar no meio das outras centenas de faigões. Passado uns minutos, estava o Luís Custódia a queixar-se da vida, de que ainda não tinha conseguido ver um Petrel-azul e logo o Bruno Silva avista um, provocando mais uma debandada a bordo. Mais uns minutos e o mesmo Bruno avista uma freira-de-cabeça-branca (White-headed petrel) que muita gente, incluindo ele próprio ainda não tinha visto. Mais uma pequena multidão a mexer. Tudo isto no espaço de menos de meia-hora. Foi aí que reparei que estávamos rodeados de gente e disse que era a nossa vez, dos Portugueses andarem a "espalhar magia" e a risota instalou-se. Dito isto, resolvemos ir "espalhar magia" para outro lado.
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A Freira-de-cabeça-branca do Bruno (White-headed petrel) |
Uma nota mais delicada foi a ida ao hospital por volta das quatro da tarde. O Luís tinha passado mal a noite e não se sentia bem. Seria da emoção? Conhecendo-o desde 2010 achei que não estava a brincar. Ao longo do dia fui-lhe dizendo que, se ele quisesse ia com ele ao médico, uma vez que o Inglês não é o seu forte.
Assim, às 16h lá fomos ao hospital do navio - mais uma estreia. A médica era bem gira, por sinal. Além de outra medicação, recomendou também fazer um aerossol. Fomos para a sala de tratamento e lá estivemos um bom bocado. Felizmente, a sala tinha uma vigia e conseguimos estar sempre de olho nos albatrozes. Até cheguei a pegar nos binóculos. Teria sido uma estreia mundial? Observar aves na sala de tratamentos do hospital do navio. Julgo ter visto um sorriso - seria de gozo? - na cara dos enfermeiros e da própria médica... O importante é que, no final da desventura, o Luís se sentia melhor. A carteira também ficou mais leve, que as consultas nos cruzeiros não são baratas.
Voltámos ao deck 7, e por lá estivemos a aproveitar até ao último segundo, até ao lusco-fusco se tornar fusco. A última imagem que recordo é a do enxame de aves atrás do navio. Milhares de bichos de todas as espécies faziam pela vida, com a luz do fim de tarde. Uma visão do outro mundo mas, no fundo, fazia sentido porque era no fim do mundo que nós estávamos.
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Panorama do deck 7 de estibordo |
Durante o dia, vários guias perguntaram-me o que pensava da experiência. A minha resposta veio diretamente do fundo do coração:
-Podias contar-me mil vezes como era. Só vivendo é que se compreende.
Regressei ao quarto de coração cheio. Perguntei ao Rui, enquanto dono de um daqueles relógios de pulso que tudo controlam, quanto tínhamos andado nesse dia e fiquei atónito com a resposta. Dez (!) quilómetros. Num barco de trezentos metros parece difícil de acreditar, mas lá que o relógio dizia isso, dizia.
Apesar do cansaço, o dia acabou como todos os outros. Fomos jantar a um dos restaurantes do navio, o Belle Époque. Fui vestido mais ou menos a rigor, que isto há que respeitar as tradições. Devia ser dos poucos naquela expedição a fazê-lo, e já me tinham dito, logo no primeiro dia, que era dos mais bem vestidos ao jantar. Não percebi se era um elogio ou uma crítica mas também não me importei. O meu contentamento, e o do grupo, via-se e sentia-se.
E o melhor de tudo é que aquilo ainda ia a meio. Amanhã havia mais.
E o melhor de tudo é que aquilo ainda ia a meio. Amanhã havia mais.
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