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17 novembro 2018

Tic-tac, tic-tac, tic-tac...

10/11/2018
Romaria no Baixo-Vouga

O Perna-amarela-grande (tringa melanoleuca) era, desde há anos, uma ave do topo da minha lista de desejos. Nas minhas quatro viagens ao Brasil nunca tive a sorte de me cruzar com um, e isso só fez com que a sede aumentasse. Em Portugal havia apenas quatro observações até à data, sendo a última em 2011, com uma foto em voo e uma identificação posterior.
Com este panorama, nunca tive muita esperança de ver um por estas bandas.

Perna-amarela-grande - foto Pedro Marques
É uma ave bonita e elegante, de dimensão razoável.
Contudo, por outro lado, em termos de raridades, as coisas andavam muito imprevisíveis ultimamente, com a chegada das aves que apelidei como “filhas do furacão”.
Nas últimas semanas tinham sido descobertas em Portugal uma juruviara-boreal, dois socó-mirim, um falaropo-tricolor. Tudo aves do outro lado do Atlântico. Em Espanha havia também sinais de que as coisas estavam ainda quentes. Era mais ou menos consensual entre a comunidade que haveria e haverá por aí muitas raridades americanas ainda por descobrir. Restava apenas esperar que o que fosse descoberto fosse arrolável, por um lado, e aparecesse o mais próximo do fim de semana possível, por outro.

Mais uma vez, como quase tudo nesta vida, a realidade não replicou o sonho. 
Dia 7/11/2018, uma quarta-feira, aparecem no "Fórum Aves" umas fotos que, desde o primeiro minuto, não deixaram dúvidas a ninguém. Estava um perna-amarela-grande no Baixo-Vouga, descoberto pela Ana Botelho e Tiago Carvalho. E agora?!

Com uma semana cheia de compromissos profissionais, tive mais uma vez de me sujeitar à espera angustiante da chegada do fim de semana. Logo no próprio dia da descoberta, as tentativas de relocalização durante a tarde foram infrutíferas. Na maré cheia o local fica alagado e do bicho nem sinal. A dúvida instalava-se.
Restava esperar pelo dia seguinte, Quinta-feira. 

O suspense não durou muito. Às 8h40 já havia notícias de que o bicho estava à vista. 
Nesse dia, mais um grupo de observadores teve a sorte de ver a estrela. Desta vez mais em cima das 9h. A maré avançava um pouco todos os dias e os avistamentos avançavam com a maré. A mim, o reavistamento só aumentou a angústia. O bicho estava ao alcance, mas sexta-feira estava fora de hipótese. 


Perna-amarela-grande - foto Luís Rodrigues
Sempre à distância
As contas estavam cada vez mais difíceis. A meteorologia do fim de semana estava muito complicada. Domingo era dia de dilúvio. Chuva contínua. 
Restava, assim, o sábado. Apesar de chover muito de madrugada, iria haver uma aberta a partir das 8h. A escolha parecia simples, mas não era. Nesse dia tinha um almoço em Lisboa ao qual era proibido faltar. Se fosse ao bicho no sábado teria de sair às 10h, o mais tardar. 
Com uma janela de tempo tão pequena, a viagem teria de ser a solo. Obviamente, ninguém se queria juntar a um plano com tantas variáveis, onde basta um cabelo para o comboio descarrilar. Sentia-me como o caracol no fio da navalha. Aquele de que fala o Marlon Brando no célebre monólogo do "Apocalipse Now".

Resumindo, as condicionantes eram "poucas". Havia o tempo instável, a maré a avançar meia hora todos os dias e os minutos contados. Além disso a distância era razoável,  viajaria sozinho e a chegada a Lisboa teria de ser no máximo às 12h30. Tudo sem stress, portanto. Como disse aos meus companheiros de loucura "Para quem gosta de adrenalina, sábado é o melhor!".  

Claro que havia também a hipótese de ficar em casa mas, seguindo a máxima de "quem dá o que tem a mais não é obrigado", decidi arriscar. 
Para maximizar o tempo no local e minimizar o cansaço, comecei a pensar em ir para cima sexta à noite e, como quem tem amigos tem quase tudo, o António Martins ofereceu logo a sua casa, a 15 minutos do local, como base. "Dormes cá em casa!". 
A hospitalidade do norte no seu melhor, e melhor era impossível. 

O plano ficou completo já a tarde de sexta ia bem avançada. Lembrei-me de uma frase muito usada na minha última viagem ao Brasil, em Outubro. "Vai dar tudo certo!". Os dados estavam lançados. 


Perna-amarela-grande - foto Pedro Marques
Saí do trabalho, agarrei na trouxa e arranquei para cima. Às sete e pouco já estava na A1. Cheguei a Azurva por volta das 21h30, sem apanhar uma gota de chuva no caminho, tal como previsto. O Windguru parecia estar certo e o plano estava a começar bem. 

Os meus anfitriões incluindo a simpática cadela - Farrusca - receberam-me de braços abertos. Consegui dormir a noite quase toda. Um luxo, apesar de os nervos me obrigarem a acordar mais cedo que o costume. Tudo normal, portanto.

Apesar de saber que não ganhava nada em chegar muito cedo, porque a maré ia estar muito alta, estava no local ainda antes das 8h. Começava a espera enervante mas, pelo menos desta vez, esta não poderia ser longa, infelizmente. 
O pessoal da zona e arredores começou a chegar. Acabámos por nos ir espalhando pelos vários pontos de observação onde o bicho já tinha sido avistado nos dias anteriores. Mais uma meia hora, e já lá estava um carro do Ribatejo e outro de Lisboa. Já dava quase para fazer uma equipa de rugby com suplentes e tudo. 

Numa ocasião reparei no Luís Rodrigues e no Paulo Leite, que tinham passado por mim de carro, irem para uma zona mais à direita, e a andar em cima do dique. 
Por volta das 8h30 ligaram ao Pedro Moreira a dizer que o tringa tinha aparecido em voo perto deles. Havia foto e tudo. Teria vindo do outro lado do dique, juntamente com um perna-verde, investigar o estado da maré e teria regressado à procedência, quando viu que ainda havia muita água. Maldita maré, que nunca mais descia. 
Escusado será dizer que para o outro lado do dique a visibilidade era zero.  

A aparição inicial do dia - Foto Paulo Leite
"Menos mal", pensei. O bicho ainda andava por ali. Também pensei que bem que podia  mas era ter passado junto ao meu posto. Aguenta coração!
A espera continuou. Mais uma volta de carro e resolvi ir para o local do avistamento inicial. A ideia era que ele acabaria por ir para lá mais tarde ou mais cedo. Porque não? Era uma estratégia tão boa como outra qualquer. 
A verdade é que a água continuava alta e o bicho não aparecia. Mais cinco minutos, mais quinze minutos, mais meia hora. Nove horas. Nove e meia. Nada. 
Comecei a fazer contas de cabeça. "No limite, se sair às dez e meia e for para baixo à velocidade da luz ainda consigo chegar a tempo". O stress aumentava, aumentava, aumentava. Raio do bicho que nunca mais aparece!

À bonita hora 9h49, toca o telefone. Era o Paulo Alves. "Pegas no carro, metes a primeira e vens ter ao sítio onde estavas há bocado!". Nem quis ouvir mais nada, nem olhei para trás. Passei a informação ao Luís Rodrigues e ao Paulo Leite, que estavam comigo, e segui a correr para o carro. Correr é como quem diz, qualquer coisa entre o andar rápido e o correr sem tirar os pés no chão. Aquela figura ridícula que se faz quando os joelhos já tiveram melhores dias. Segui a toda a velocidade pela estrada alagada e cheia de buracos - another one drives the Duster. Um minuto depois estava no local referido. Nada! Nem carros nem pessoas. Mau... 
Liguei ao Paulo. 
   -Onde é que vocês estão? Não está aqui ninguém!
   -Continua em frente! Segue! Segue! Estou a ver o teu carro! Vira à esquerda no fim da estrada!
Percebi que estava a caminho do dique, com a estrada cada vez mais alagada. Quando passava nas poças a acelerar a água subia acima do tejadilho.  
   -Paulo, isto está cheio de água! Vou ficar atascado!
   -Bora! Segue! Se o carro do Pedro Moreira passou, o teu também passa! - e passou.
Lá comecei a ver pessoal em cima do dique e os carros parados. Saí do carro e subi para junto da malta.
   -Está à vista? 
   -Não, pá! Voou para o outro lado das canas, mas está ali.
"Que surpresa!" - Pensei.
Mas todos os malandros têm sorte. Passado mais um ou dois minutos o pessoal mais à direita detetou o tringa. Apontei os binóculos e lá estava ele. Umas fotos, uma olhadela num telescópio emprestado. Perna-amarela-grande...Check. 
Olhei para o relógio. Eram 9h57! Adoro quando um plano dá certo! 


Um dos meus fracos registos. Não se pode ter tudo...
Abro um pequeno parêntesis para só para contar o que consegui apurar sobre este segundo avistamento do dia. O pessoal de Lisboa, Rui Machado, Pedro Marques, António Gonçalves e Bruno Herlander Martins resolveu ir para o dique e a dada altura o malandro do bicho passou por eles e pousou na lama bastante perto. Telefonaram ao Pedro Moreira que chamou o pessoal do Ribatejo. O Paulo telefonou para mim, e pronto. Assim se faz a alegria do povo.

Mais umas dezenas de fotos, mais uma olhadela nos binóculos, mais umas espreitadelas nos telescópios e, claro, uns palavrões para aliviar a tensão acumulada. 10h05.
   -Já te vais embora? - perguntaram-me.
   -Já. Estás a imaginar o stress, não estás?
As fotos não ficaram grande coisa. O bicho estava longe e o tempo manhoso. "Querias o quê? Tudo?", pensei.
Tive pena de não ter ficado mais tempo. Podia ser que o bicho se aproximasse. 
Contudo, parece que nesse dia ele manteve sempre a distância, e não foi para os locais onde andou nos dias anteriores, segundo consegui apurar.

A foto de uma família feliz. Mais uma vez fiquei de fora...
foto Pedro Moreira
Já só faltava o mais difícil. O regresso. Depois de levantar água em mais umas poças, lá consegui regressar ao alcatrão e seguir para Lisboa. E se chove? E se o carro avaria?
Nada. Deu mesmo tudo certo. Chuva, sim, mas nada de especial. Às 13h20 estava sentado à mesa do restaurante, com Lisboa aos pés e o castelo em frente, no cimo da colina. Com o tringa e a vista, sentia-me mesmo nas nuvens. A meio do almoço, começou o dilúvio.
Tudo dentro do plano. Há dias assim.

Uma nota final para agradecer a ajuda de todos nesse dia, a começar pelo António Martins e esposa. Também para agradecer ao Luís Rodrigues, Paulo Leite, Pedro Marques e Pedro Moreira as fotos que ajudam a ilustrar esta crónica.

Epílogo: 
Apesar de na altura ter a forte convicção de que o bicho ia ficar uns meses, e inclusivamente ter dito aos meus companheiros que voltava lá no Natal, para o filmar e fotografar com calma, a verdade é que, desde esse dia, o perna-amarela nunca mais foi visto por ali. Pelo menos até à data em que escrevo esta crónica. 
É daquelas coisas que nos deixa a pensar...

#canaldoxofred 

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