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12 fevereiro 2019

Vila Real...Felosa-Real

02/02/2019
Melanopogon: 5 horas em 3 segundos

2 de Fevereiro de 2019. Mais um dia em que estava descansado no sofá quando o céu me caiu em cima da cabeça e tive de sair de casa a correr.
Para se perceber melhor a história, faz sentido voltar uns dias atrás.



Felosa-real (foto Pedro Moreira)
Dia 30 de Janeiro de 2019, uma quarta-feira, surge no Facebook e, posteriormente na mailing list das raridades, a notícia do avistamento de uma, possivelmente duas Felosas-reais (Acrocephalus melanopogon) em Vila Real de Sto António. Os autores eram conhecidos da malta. O Ricardo Silva - que conheço pessoalmente - e o Rui Rufino, ambos observadores experientes. Toda a gente se engana - como disse alguém do meu círculo de amigos na altura - mas, a verdade é que foi logo assumido que a probabilidade de a notícia ser verdadeira era muito elevada. A única coisa estranha nisto era a pergunta do Ricardo no Facebook: 
"Acrocephalus melanopogon, Vila Real de st. António, numa zona húmida perto da linha do comboio. É comum?"


Felosa-real - finalmente a foto que desfez as dúvidas, mesmo desfocada
 (foto Nuno dos Santos)
Comum? Claro que não! Era raro. Era super mega raro! 
A Felosa-real já andava no topo da minha lista de desejos há bastante tempo. Por algumas vezes tinha pesquisado onde era possível observar esta espécie em Espanha. 
Mais uma vez, lá se instalou a habitual angústia misturada com entusiasmo. Será que estão mesmo por lá? E nesse caso será que vão ficar? Estariam de passagem? Será que vão aparecer mais notícias até ao fim de semana?  A tal espiral de pensamentos da qual é difícil sair, e em que acabo sempre por entrar. 
A verdade é que quinta e sexta não existiram grandes novidades. Quem lá foi não viu nada e quem ouviu qualquer coisa não achou que pudesse ser alguma coisa. Fui ficando cada vez mais convencido que, desta vez, iria poupar uma ida ao Algarve.
Sábado chegou tranquilo. O almoço de véspera tinha-me caído mal e achei por bem não concretizar os planos, que cheguei a ter, de ir ver marítimas a Peniche. Não estava, claramente, nos meus dias. 
Estava literalmente em pijama quando, às 9h13 o Sérgio Correia dá a notícia de que o bicho estava lá. Tinha ouvido o call e visto a cabeça a espreitar nos caniços por um instante. Aguenta coração!
Ainda antes de lhe perguntar de ele estava disposto a meter a cabeça no cepo por um "call e uma cabecita a espreitar", já estava o Pedro Marques a perguntar se ia alguém de Lisboa. 
Esperei uns minutos pela resposta do Sérgio, que foi suficientemente positiva para achar que tínhamos caso.
Apesar da meteorologia altamente desfavorável - leia-se vendaval - que colocava as maiores dúvidas ao empreendimento, rapidamente decidi que se alguém de Lisboa ia arriscar, eu também arriscaria. Se Sábado não se conseguisse, podia ser que alguém fosse Domingo e aí teríamos um segundo round. No fundo, estava disposto a ter um fim de semana alucinante. Diga-se de passagem que domingo também não tinha uma previsão muito melhor que sábado.
Ora, o Pedro, como já foi mencionado numa crónica anterior, reside na Ponta da Erva e raramente se mete nestas coisas. Por isso, percebi de imediato que se estava a preparar para seguir para baixo a toda a velocidade, se é que não estava já quase a chegar. Afinal, já tinham passado quinze minutos do aviso inicial. 
Quando o abordei, disse-me que já estava a caminho e ia só apanhar o António Gonçalves. A minha pergunta foi imediata:
   -Não me querem levar?

Acrocephalus melanopogon (foto Pedro Moreira)
Aquele supracilio não engana.
Combinámos um local de recolha e, pouco depois das 10h já estávamos a atravessar a ponte. A viagem teve pouca história. Tentámos ter as conversas do costume, para manter a tradição, mas falhámos redondamente na paragem do costume. Quando reparámos nisso já a tínhamos passado há uns quilómetros. Não é que acredite em bruxas mas, a verdade é que convém respeitar certas tradições. Mais tarde percebeu-se porquê.
A meio da viagem saiu mais uma nota do Sérgio, a jogar à defesa. Sim tinha visto o bicho, mas podia ser que não tivesse visto o bicho. Um pouco como estar no meio da estrada com um carro prestes a atropelar-nos a tentar decidir se avançamos ou recuamos. 
Bom, nós já íamos a caminho. Para nós o tempo das dúvidas tinha passado. Já não estávamos na fase do "Should I stay or should I go" que um dos meus amigos desta luta gosta tanto de usar nestas situações. Agora era uma questão de ver o que saía na roleta. Estávamos irredutíveis, apesar de termos muito mais medos do que apenas o de que o céu nos caísse em cima da cabeça.
Numa coisa estávamos todos de acordo. Este arrolamento ia ser muito complicado. Mesmo sabendo disso, lembro-me de ter dito algures no processo que achava que íamos ter sucesso e que, quando acho isso, normalmente o bicho aparece. 

Três horas de conversa e, lá para as 13h, estávamos em Vila Real de Sto. António. Decidimos seguir de imediato para o local do avistamento. Como quase sempre, as minhas já célebres e, por vezes desprezadas, coordenadas ajudaram a encontrar a estrada de terra certa. Estacionámos, voltámos a olhar para o Google Maps e, passado um quarto de hora, estávamos ao lado da charca mais importante dos últimos meses. 
É um local curioso, mesmo ao lado da linha do comboio. Por um lado é chato, pelo movimento e exposição, mas por outro acaba por nos proporcionar um acesso mais fácil ao local, e até um assento no "conforto" do cascalho onde assentam os carris. Confesso que pensava que a linha tinha menos movimento. Em vez de um ou dois, em cinco horas passaram por nós uns cinco ou seis comboios. Um deles até me apareceu pelas costas, enquanto ia a caminhar descansado pela linha. O que vale é que eles apitam de vez em quando. 


Eles passam perto... (vídeo Nuno dos Santos)

Em termos de aves é que a coisa não estava famosa. O vento não ajudava nada. Na charca só umas quantas felosinhas. Cantos ou chamamentos, nada. Os minutos foram passando e nenhum de nós conseguiu transformar as felosinhas na felosa-real. 
Após algum debate sobre os próximos passos, lá para as 14h30 resolvemos ir comer qualquer coisa, para estar com os sentidos mais despertos ao final da tarde, altura tradicionalmente melhor para observações. Por outro lado, o vento às 17h estaria no mínimo do dia. Após um repasto digno de um rei - uma sandes de queijo e um caracol seco - voltámos rapidamente para o posto. Teria decorrido pouco mais de meia hora.

Mais uns minutos, chega um dos proprietários da zona, o Gonçalo Elias, que eu e o Pedro Marques tínhamos tido o cuidado de avisar. A tarde foi decorrendo, connosco a olhar para aquela meia dúzia de metros. O Pedro e o António ainda fizeram umas incursões a outra área promissora uns cem metros mais à frente. Pelo meu lado, estive quase sempre mais concentrado na charca. Sobretudo numa área onde conseguia ter mais visibilidade, sentado no cascalho da linha. Costumo ter mais sorte quando estou sentado, pensei. Já conhecia cada caniço de cor. Malditas felosinhas que não se transformavam na felosa!

E assim chegamos às 17h, altura em que estava a olhar para as canas, em amena cavaqueira com o Gonçalo, que estava de costas para a charca. Devo ter-me apercebido de algum movimento com o olhar, porque levei instintivamente os binóculos ao rosto. Foi  atónito que vi que o movimento era, não da felosinha que esperava, mas da felosa-real, que já nem eu, nem ninguém, esperava. Passou da direita para a esquerda, rente à água, bem ao fundo da clareira à minha frente. O padrão da cabeça e a cor dos flancos não me deixou margem para dúvidas. É como se costuma dizer, quando é, não há dúvidas. Como sempre, não me lembro bem das palavras usadas. Julgo ter sido qualquer coisa como "Olha! olha! É a gaja! É mesmo! É mesmo! É a gaja!" tão depressa o disse, tão depressa ela desapareceu. O Gonçalo virou-se rapidamente, o Pedro e o António vieram a correr. A verdade é que ninguém mais viu nada. Quando lhes consegui apontar o local exato, já o bicho ia a chegar ao Porto. 
Fiquei com as mãos na cabeça, incrédulo. "Era a gaja! Era ela! Aíííííí! Não acredito!". Lembro-me de o António afirmar que a minha cara dizia tudo. A observação durou uns três segundos, mas foram daqueles que valem anos, em que o tempo pára.


Felosa-real (foto Nuno dos Santos)
Passei o resto do tempo, até à última réstia de luz, a escrutinar em desespero cada centímetro da charca, para tentar reencontrar o bicho para os meus companheiros de sofrimento. Até cheguei a dizer-lhes, mais de uma vez, para falarem menos e procurarem mais. Não me lembro de quem disse "Olha, olha, nós é que não vimos e ele é que está chateado!". 
Enfim, fosse como fosse, quando decidimos bater em retirada, lá para as 18h, só eu é que tinha sido o contemplado com a sorte grande. Pedi-lhes desculpa várias vezes. "A culpa não foi tua. Foi da melanopogon!" 
  - E agora?! O que é que eu faço? 
Já me aconteceu mais de uma vez ser o último do grupo a ver uma ave, agora ser o único, nunca me tinha acontecido. 
  - Tens de dizer ao pessoal que viste o bicho. 
  - Pois tenho... 
Lá me enchi de coragem e, depois de o António avisar o pessoal com um solene "Habemos SONP na Melanopogon!(*)", assumi o que tinha visto e forneci o pouco que tinha, ou seja, a descrição do que observei. Quem dá o que tem a mais não é obrigado. 
É sempre uma situação complicada, ter de assumir um risco destes sem evidência mas, como não costumo ter alucinações, o que vi, vi, e havia que partilhar com a malta, que esperava ansiosamente por novidades. 
Cinco horas de seca, três segundos de êxtase.


Felosa-real (foto Nuno dos Santos)
Aqui está a descrição que partilhei na altura:
Vista durante cerca de 3s junto à água (a cerca de 10cm De altura). O local de avistamento estava à sombra. A distância seriam cerca de 8m e foram sempre utilizados binóculos. 
Cabeça e coroa de aspeto geral muito escuro, sendo que a coroa parecia preta. Supracílio de cor branca, largo, passando claramente o olho. Contraste espetacular entre a cabeça e o supracilio, quase parecendo que o mesmo teria sido pintado a corretor ortográfico, mesmo nas condições descritas. 
Flancos limpos - sem riscado - de um tom castanho vivo (quente talvez seja um termo correto e bem usado pelo Sérgio Correia para o descrever). Levantou muito a cauda uma vez tendo-se movimentado um pouco nessa postura. O movimento decorreu sempre em pequenos saltos de poucos centímetros e sempre a cerca de 10cm da água.

Foi um regresso agridoce. Vim para cima de coração apertado, com um peso enorme na consciência. Achava injusto que os meus companheiros não tivessem sido premiados. O café e bolachas que lhes paguei no caminho foram fraco consolo. Fiz-lhes também uma promessa solene, a de voltar ao local com eles, para vermos a felosa em conjunto.
Chegamos, assim, à grave lição a retirar desta mini-odisseia:
Pelo sim pelo não, quando se vai ao Algarve num twitch é melhor fazer a paragem do costume na área de serviço do costume. 
Outra nota, para ver Felosa-real, obviamente que o local indicado é Vila Real (de Sto. António).

Epílogo: no dia seguinte, domingo, começaram a surgir as muito esperadas evidências: Algumas gravações. O Sérgio conseguiu também uma observação mais prolongada da ave completa, que serviu para confirmar o que já tinha visto antes.
Na segunda-feira, o Nuno dos Santos - like a boss - conseguiu finalmente as fotos que faltavam. Fracas, mas preciosas.
Estava mais que confirmado que o bicho era complicadíssimo. De observar e de fotografar. 

Resta-me agradecer ao António Gonçalves e Pedro Marques, pela companhia, e ao Nuno dos Santos e Pedro Moreira pelas fotos e vídeo que ilustram esta crónica. 
Por fim ao Ricardo Silva e Rui Rufino, pela formidável descoberta e rápida divulgação.

(*) SONP - Single observer, no photo. 
Gíria usada pelos birders, quando apenas um observador viu a ave e não há fotos que confirmem a observação. É uma situação difícil e indesejável. 

#canaldoxofred 

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