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02 outubro 2021

Como fazer Fortuna nos Açores

Agosto de 2021 - Ilha Terceira

Já há uns cinco anos que tinha posto uma pelágica nos Açores na lista de desejos. Foi o Carlos Pereira que me falou no Banco da Fortuna pela primeira vez. É um local entre as ilhas Terceira e Graciosa, que se tornou quase mítico desde que, há uns anos, aí foram avistadas algumas aves de sonho como o painho-de-swinhoe, freira da trindade ou a freira-de-barrete.

Painho-de-monteiro (oceanodroma monteiroi)
Mas as aves referidas são o Euromilhões. Se descermos à terra e formos realistas, o grande objetivo numa ida ao Bando da Fortuna é, obviamente, o painho-de-monteiro. É uma ave endémica dos Açores e que só há meia dúzia de anos adquiriu estatuto de espécie. Em 1999 a população estava calculada em cerca de 300 casais, o que sublinha a preciosidade e dificuldade de se observar.

O problema principal, ainda antes de pensarmos em aves é, sobretudo, como ir ao Banco da Fortuna. O tema é sempre o mesmo nas pelágicas: não existem, e muito menos em tempos de Covid.
 
Painho-de-monteiro (oceanodroma monteiroi)
Foto Ruben Coelho
 Foi assim que me fui mentalizando que tão cedo não iria fazer Fortuna. 
Só já em 2020, numa das minhas três idas aos Açores, é que soube que o Ruben Coelho andava a tentar organizar uma saída. Claro que o Covid foi deixando tudo em águas de bacalhau.
Depois de muita conversa virtual nesse ano conheci, finalmente, o Ruben pessoalmente em Março de 2021 - ver Limpeza na terra dos Impérios. É sempre melhor assim, para se perceber com quem estamos a falar. Entusiasta das aves, terceirense de gema e, ainda por cima, com idade para ainda ter joelhos e costas a cem por cento. Qualidades não faltam.
Foi por isso que lhe disse para contar comigo, caso conseguisse organizar a pelágica ao Banco.

Cachalote (physeter macrocephalus)
Foto Carlos Ribeiro
 
A logística é sempre complicada. Há o barco, o engodo, arranjar gente suficiente, e sabe-se lá mais o quê. 
Aqui, ainda havia a agravante da distância. O Banco é a cerca de 20 milhas náuticas do oeste da Terceira e a 10 milhas náuticas da Graciosa. Há poucos operadores disponíveis para fazer o frete e, muito menos a partir da Terceira. Historicamente, as poucas idas ao local partiram sempre da Graciosa. Vinte milhas é muita fruta.

O tempo foi passando e já estávamos em Junho de 2021. Pessoalmente, já tinha abandonado a ideia mas, um belo dia recebo uma chamada do Ruben a dizer que a viagem estava confirmada para o final de Agosto. E esta, hein!?
Fosse lá como fosse ele tinha conseguido ultrapassar todos os obstáculos e concretizar a saída. Às vezes o impossível torna-se possível. O homem sonha, a obra nasce...

Pardela-de-barrete (puffinus gravis)
Agora era só uma questão de arranjar alojamento, carro e voos para o final de Agosto, mas há com certeza coisas piores. 
Até ao dia da partida, ainda dei uma pequena ajuda na organização do evento, ao arranjar maneira de termos um dos componentes essenciais do engodo. Fiquei contente por sentir que aquela viagem também era minha, mesmo que fosse só um bocadinho de bocadinho de nada.


Cachalote (physeter macrocephalus)
 Dia 27 de Agosto finalmente chegou. A viagem para a Terceira decorreu sem incidentes e, depois de um almoço tardio, ficámos muito bem instalados em Angra do Heroísmo, a cinco minutos da marina.
O dia não podia, obviamente, acabar sem uma visita a Meca, como já lhe chamaram. Fomos ao Paul do Cabo da Praia. Aquilo parecia o Colombo ao fim de semana, mas em versão light, ou seja, estavam lá umas oito pessoas. 
Além dos donos do local, Carlos Pereira e Ruben Coelho, estavam presentes quase todos os participantes na pelágica do dia seguinte. Terceira, S. Miguel e Pico estavam bem representados. Não me senti nada deslocado por ser o único continental. A Sandra fez de repórter e a reunião ficou bem documentada. Foi um fim de tarde tranquilo, com dois pilritos-de-colete a abrilhantar a ocasião.
O jantar foi excelente mas comedido, que isto de encher a barriga no jantar antes da pelágica dá mau resultado. De qualquer forma, as lapas não podiam faltar. Era o que mais faltava!

Casquilho (oceanites oceanicus)
E foi assim que chegámos ao dia D, 28 de Agosto. 
Ainda era de noite - 6h15 - quando nos encontrámos na marina. É dura a vida de um profissional da passarada. O grupo era pequeno. Poucos mas bons. Além do já referido pessoal da Terceira, S. Miguel e Pico, havia apenas um continental e um estrangeiro verdadeiro. Já contando com a tripulação, não chegávamos a dezena e meia de almas. Já se sabe que nestas organizações há sempre muita gente interessada mas, na hora da verdade, é complicado meter o preto no branco. No meio dos preparativos, registei a frase do Carlos:
-Hoje vamos fazer história. Pode ser só uma nota de rodapé mas, vamos fazer história. 
Oxalá conseguíssemos. Era a primeira vez que alguém iria ao Banco da Fortuna a partir da Terceira. Iríamos, no fundo, dar novos mundos ao mundo da observação de aves. 

Por volta das 6h30 saímos do porto. O tempo estava manhoso mas, quem vem aos Açores para ter um tempo certinho vem ao sítio errado. Quatro estações num dia, não é o que dizem?
O barco era muito confortável e espaçoso, para semi-rígido. Nas cerca de duas horas de caminho apanhámos chuva, sol, céu nublado e céu limpo. O que não estava à espera de apanhar foram algumas baleias-de-bico e um cachalote. Duas estreias para mim. Também se viu, ao longe, uma alma-negra. O dia prometia. 

Painho-de-cauda-forcada (Oceanodroma leucorhoa)
Chegámos ao primeiro ponto de engodagem ainda frescos. A chuva no caminho tinha sido pouca e quem se molhou já tinha a roupa seca. A pouca ondulação quase nem se notou.
Era a hora da verdade. O Ruben tinha aquilo bem preparado. Calçou as luvas e meteu mãos à obra. Começámos a engodar e, quase de seguida, começaram a aparecer os painhos. Logo num dos primeiros reparei que havia uma falhas nas asas. A muda era evidente. Dei logo conta disso ao pessoal. Era bom sinal. Era sinal de painho-de-monteiro, o objetivo principal da viagem. 
Rapidamente começámos a ver as fotos back of the camera dos muitos painhos que foram aparecendo e em vários era clara a cauda bifurcada, a cor acastanhada e a muda nas asas. Nem dez minutos tinham passado e o stress já tinha acabado. Painhos-de-monteiro há muitos, seu palerma!
Fosse da qualidade do engodo, fosse de haver muitos por lá, o frenesim dos painhos continuou quase ininterruptamente, nos diversos pontos por onde andámos.

Painho-de-monteiro (oceanodroma monteiroi)
Só passada a primeira emoção e adrenalina é que reparei que a alegria no barco não era generalizada. Não vou dizer nomes, mas houve alguém da passarada que esteve a viagem toda a engodar por conta própria. Como a crueldade humana não tem limites, o pessoal foi gozando com ele a perguntar se estava bem. A resposta foi sempre a mesma;
-Impecável!
E o resto da malta ria a bandeiras despregadas.  
Mais aborrecido ainda foi constatar que havia um elemento da tripulação que estava nas mesmas condições. Apareceu esverdeado, com ar desesperado quando ainda estávamos a começar:
-Falta muito?
Deitou-se várias vezes. Andou num desassossego para cá e para lá. Será que escolheu a profissão errada? Outro dia falaram-me de pessoal que vai para a marinha e enjoa. Até me disseram que, por causa disso, acabam por escolher os submarinos. Acho que, neste caso, não deve haver essa hipótese. 

Os painhos continuaram a dar espetáculo. Além dos muitos monteiros, vimos painho-da-madeira, dos Açores e muitos casquilhos. A surpresa só surgiu depois ao vermos as fotos em casa, quando reparámos que também tinham aparecido dois painhos-de-cauda-forcada. Esses são complicados de apanhar, uma vez que não gostam de vir ao engodo. Pessoalmente nunca tinha visto nenhum numa pelágica. 
No que toca a pardelas, vimos algumas de barrete e a omnipresente cagarra, ou cagarro, como lhe chamam nos Açores.

Resumindo, ninguém se podia queixar da vida. Quer dizer, ninguém exceto os dois elementos já referidos.

Angra do Heroísmo
Quando achámos que a barriga já estava cheia que chegasse, começámos a viagem de volta, com paragens nas múltiplas jangadas de cagarros que encontrámos. 
O regresso também teve o seu encanto, sobretudo a partir do momento que a Terceira começou a aparecer no horizonte. De noite todos os gatos são pardos. De dia a coisa tem outro encanto. A costa sul é lindíssima, vista do mar, culminando com a entrada na baía de Angra. Aí até eu tirei o telemóvel do seu refúgio, para registar o momento. É a minha baía preferida.  
Por volta das duas já estávamos no porto. Saímos do barco e tirámos as fotos da praxe. A alegria reinava, sobretudo para os dois que tinham virado o barco. Ou seria alívio? O gozo continuava mas, o nosso companheiro disse logo "Ia já amanhã outra vez!”.  É esse o espírito. 

O convívio da pelágica só acabou no café da marina. Tinha prometido pagar uma imperial a quem quisesse e o prometido é devido. Uma estreia do valor do painho-de-monteiro merece isso e muito mais.
 
A foto para a posteridade.
Agradeci ao Ruben múltiplas vezes durante a viagem e volto a agradecer aqui. É mais do que justo. Não há dúvidas que esta aventura só aconteceu graças ao empenho que ele colocou na causa. Oxalá possamos repeti-la muitas vezes. 





















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