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08 outubro 2021

Viva a República!

 05/10/2021 Sagres

Este ano resolvi não ir ao festival das aves em Sagres. Nos últimos dias das habituais férias de Setembro estive na Cabranosa e aquilo tinha estado fraquinho. Fiquei sem vontade de ir, logo no fim de semana seguinte, outra vez para o Algarve.  

O fim de semana anteriormente prolongado mas que deixou de o ser, até estava a correr bem. Sábado fiz uma pelágica à Berlenga onde, entre outras coisas, consegui ver um Alcatraz-pardo. Era a minha quarta vez mas, tomaram muitos! Domingo dediquei-me, sobretudo, à recuperação do físico depois da pelágica, ou seja, pouco ou nada fiz. A segunda foi um dia de trabalho normal e, por pouco, muito pouco, quase decorreu sem incidentes de maior. Por volta das cinco e meia da tarde, sai mais um dos muitos alertas que costumo receber no ebird mas, este era especial. O Pedro Henriques tinha visto uma felosa-assobiadeira (Phylloscopus sibilatrix) em Sagres.

Peito-carmim (Carpodacus erythrinus)

 Aqui faz sentido fazer um parêntesis sobre esta felosa. Primeiro que tudo, é bonita. Amarela na cara e branca por baixo. Tem um canto que faz lembrar uma moeda a rodar sobre a mesa. Já a tinha visto algumas vezes na Europa mas, em Portugal, nada. As poucas que apareceram nos últimos anos não me deixaram ir vê-las. Numa, estava na Polónia a ver muitas dessas, entre outras aves. Noutra, estava a trabalhar e ela não se aguentou até ao fim de semana. A vida é feita de encontros e desencontros, tal como diziam no programa.

Olhei várias vezes para a mensagem a pensar na vida. Obviamente que, estando a mais de três horas de distância não havia pressa para reagir. Não era possível chegar ao local antes do pôr do sol, pôr do sol, pôr do sol. Passado uns minutos comecei a achar estranho não ouvir no telemóvel os plins do costume, sempre que acontecem eventos deste género.  Imperava um silêncio pesado. No Facebook nada. No WhatsApp idem. Que raio?! Consegui perceber que havia um apagão algures. Pensei que era do meu equipamento até que as notícias dos problemas no ecossistema Facebook começaram a aparecer. Estava tudo explicado. WhatsApp, Instagram, Messenger e Facebook estavam em baixo. Lindo! 

Só passado meia hora é que recebi mais notícias. Teve de ser à antiga. O Hugo Blanco mandou-me um sms a dizer que o Carlos Pacheco tinha observado a ave. Ah, os sms e telefones afinal ainda servem para alguma coisa. Quem diria... Fui sabendo mais detalhes. Portanto, os dois observadores eram o Pedro Henriques, já referido, e o Carlos Pacheco. O local era uma zona de arbustos e mato, que conhecia razoavelmente. Achei que, caso o bicho ficasse nas redondezas, seria possível encontrá-lo. Estava mais que visto que tinha de ir. Ou seja, já me tinham estragado as perspetivas de ter um feriado de 5 de outubro descansado. Viva a República!

Afinal, sempre ia ao festival. Ainda pensei em seguir nessa noite para baixo, mas acabei por abandonar a ideia. Mais valia fazer o sacrifício e ir de madrugada. O Hugo ajudou-me a decidir. "Tenho uma pelágica amanhã e vou para baixo.", "Queres vir?", "Ok", "Então às  quatro da manhã passo aí." Quatro da manhã... É dura a vida de um profissional da passarada. A equipa ficou completa com o António Gonçalves e o Pedro Marques, que também não tinham a assobiadeira. Afinal não era só eu.

Peito-carmim (Carpodacus erythrinus)
Foto António Gonçalves

 O sono foi o possível, curto e mau. Às 3h55 da manhã recebi um sms sui generis. "Bom dia. Rádio Táxis de Carcavelos à sua porta". Como o raciocínio é lento a essa hora, ainda demorei uns segundos a perceber do que se tratava. "Vou descer". 

A viagem para baixo decorreu normalmente, até pela paragem tradicional na área de serviço tradicional. A tradição tem de ser mantida. No caminho, o Hugo resolveu contar a história do rádio-taxi de Carcavelos e esclarecer o sms intrigante que tinha enviado às quatro da manhã. Acontece que a sua esposa, aparentemente, não confia na condução do marido. Aquando da preparação para o parto do primeiro filho, quando ele lhe disse que a levava ao hospital, ela terá respondido que não senhor, ela ia mas é chamar o Sr. Espada e o respetivo táxi. Na altura não haveria muitos táxis na zona e o serviço era personalizado. Há que confiar nos profissionais e o Sr. Espada era o melhor. Qual Hugo, qual quê. Muito nos rimos com esta.

 E assim chegámos a Sagres ainda antes do nascer do sol. O Hugo ainda nos acompanhou nos primeiros minutos da busca, mas ainda antes das oito seguiu caminho. "Vou para a pelágica e ainda quero comer qualquer coisa".

Lá ficámos eu, o Pedro e o António a andar para trás e para a frente, nas redondezas do avistamento do dia anterior. A claridade foi aumentando e cada vez ficou mais claro que aquilo estava vazio de bichos, Migradores eram poucos ou nenhuns. É a vida... Aquilo estava perdido. Fomos seguindo a máxima do "já que estou aqui..." e continuámos, estoicamente, a varrer cada metro de terreno. Por volta das nove horas vejo, ao longe, mais um grupo de três observadores. Um deles era o Thijs Valkenburg. Vinham, com certeza, ao mesmo que nós. Reparei que estava também o Vasco Flores Cruz, com quem já me tinha cruzado e alguém com o colete da SPEA que, vim a saber mais tarde, era a Sandra Fernandes. 

Piiiu!
Peito-carmim (Carpodacus erythrinus)

O Thijs, quando se cruza comigo, é uma espécie de estrelinha da sorte, no que respeita a ver raridades.  Assim de repente, lembro-me de estarmos juntos no arrolamento ao Corredor do Alvor, no de uma piadeira-americana em Faro, onde acabámos por lhe pagar o almoço bem merecido, no Alfaneque da Cabranosa e, até o vi ao sair da Quinta de Marim, depois de ver a felosa-de-hume, isto já em 2020. Por isto tudo e pelo seu ar tranquilo, gosto sempre de o ver. Depois das saudações habituais, continuámos o trabalho, agora com reforços. "Eh pá, isto está muito vazio. Ontem estava com muito mais bichos!", disse ele. Era a confirmação de que hoje não seria o dia da sibilatrix.

Continuámos à procura, cada um para seu lado, até que recebo um telefonema do António a dizer que o Thijs tinha sugerido irmos até aos pinheiros junto ao restaurante ali perto. Realmente, aquilo estava vazio e achei que era um plano tão bom como outro qualquer. Rapidamente me juntei ao grupo e fomos andando calmamente, negociando o caminho pelo meio dos arbustos. Quando já estávamos quase lá ainda perguntei:
  -Quais pinheiros? 
  -Aqueles ali, não vês? - disse-me o António.

Já tinha estado nas redondezas algumas vezes e até já tinha almoçado no restaurante mas, não me lembrava de pinheiros nenhuns. Só quando olhei com mais atenção é que reparei que havia, nas traseiras, uns quantos pinheiros muito baixos, da altura de um homem. São tão baixos que nem o tronco é visível. Os ventos de Sagres assim determinaram, e eles cresceram como puderam. 

Chegámos e aquilo estava calmo e silencioso. Pouco passava das nove e meia. O Thijs disse logo que, pelos vistos, também não estava nada por ali. Quando não se vê nada, costumo, por vezes usar o artifício do som pssht, pssht, pssht. Às vezes resulta e o que está escondido dentro da vegetação vem ver o que se passa. Resolvi experimentar. Assim como assim, não se perdia nada.

Ficou tudo na mesma durante algumas dezenas de segundos, até que começámos a ouvir um chamamento contínuo. Inicialmente pensei que podia se uma felosa-musical mas, aquilo na realidade parecia uma felosa-musical misturada com pintarroxo. Pelos vistos toda a gente estava confusa, porque ninguém pôs a boca no trombone e disse do que se tratava. A tensão estava no máximo. Avançámos uns metros para a esquerda, para junto do segundo pinheiro e reparámos numa ave a chamar no cimo dos ramos. Coloquei-a nos binóculos e vi uma ave castanha com bico escuro. "O que é aquilo, pá?", perguntei. Ouvi a pergunta mais uma ou duas vezes, vinda de outras bocas. Passaram dois ou três segundos que, pareceram uma eternidade, até que ouço o Thijs, à minha direita, dizer "Carpodacus! É um carpocacus!" (peito-carmim, carpocacus erythrinus). O curioso é que conseguiu dizê-lo com toda a calma. "É mesmo!". Assim como se fez luz para mim, fez-se luz para todo o grupo. Não havia tempo para pensar ou para emoções. Baixei os binóculos e levantei a máquina. Comecei a disparar o mais rápido que consegui. O bicho estava meio tapado pelos ramos, e ainda logrei dar uns passos à esquerda e disparar mais umas vezes até que ele se lembrou de ir andando, e desapareceu. Reparámos que o Pedro Marques, que vinha mais atrás, não estava ainda connosco. Pensámos que ele não tinha conseguido ver o bicho, quando o vemos surgir do outro lado do pinheiro. Também tinha tido sorte. 

A chamada telefónica no fio
Peito-carmim (Carpodacus erythrinus)

 
Éramos seis observadores em êxtase quando finalmente pudemos descontrair.  Que sorte incrível!  Não me lembro bem do que fiz mas, do que me recordo, abracei e cumprimentei quem pude. 

Mas, o bicho ainda não tinha terminado a sua aventura connosco. Estávamos já na parte da frente do restaurante, eufóricos, quando voltámos a ouvir o chamamento do lado da estrada. Tinha ido para o fio telefónico e estava a falar. Piiiu! Piiiu!. Foram poucos segundos. Logo de seguida, levantou, passou por cima de nós, a despedir-se, e seguiu para norte. Ainda consegui tirar uma ou duas fotos no fio e em voo mas, tudo fraquíssimo. Foi o que se pôde arranjar.

Antes de nos separarmos, lembro-me de brincar uma bocado com o Thijs e deixar todo o grupo a rir. Sei que ele não levou a mal. Acho que percebeu que, no fundo, eram elogios.
-Pago-te uma imperial!
-Ah, eu não bebo.
-O Thijs para Holandês é porreiro! És Holandês, não és Thijs?
-Tenho nacionalidade holandesa, sim.
-Eh pá, nunca vi um Holandês falar Português perfeito, com sotaque algarvio.  

A risota continuou. 
Sei que entretanto, quer o Thijs, quer o António divulgaram o acontecimento em alguns grupos whatsapp, que entretanto já funcionava. Incluiram a respetiva foto back of camera. Isto claro, como sempre, só em nome da rápida divulgação. Com certeza, ninguém teve um ataque cardíaco a ver a notícia.

A despedida
Peito-carmim (Carpodacus erythrinus)

 Já que estávamos em maré de sorte, ainda demos mais umas voltas, não fosse a sibilatrix ainda andar por ali mas, não vimos mais nada de especial. Já tínhamos gasto a sorte toda para esse dia e a felosa-assobiadeira não apareceu. 

Por volta das 11h, chegou o rádio-taxi, com o nosso Sr. Espada ao volante, ou seja, o Hugo. Já sabia da notícia mas, aparentemente, não vinha desanimado. Fomos outra vez ao local da aparição, mas o peito-carmim castanho nunca mais voltou a ser visto. Até hoje ainda não conheci alguém com o dom da ubiquidade. Temos de decidir onde estar e quando e, só conseguimos estar num local de cada vez. Numas vezes corre melhor do que noutras. 

Depois de um almoço muito razoável, seguimos para Lisboa. A viagem de volta foi mais atribulada. O nosso Sr. Espada é um bocado maluco a conduzir. Segue um código da estrada muito próprio. A verdade é que chegámos sãos e salvos, com um ou dois sustos à mistura. 

Fomos a uma sibilatrix e voltámos com um carpodacus mas, não ouvi ninguém a queixar-se. Foi dos melhores feriados de 5 de Outubro da minha vida. A lição a retirar é clara:

Não há dúvida que a melhor maneira de encontrar uma coisa é ir à procura de outra coisa.

Resta-me agradecer ao António Gonçalves a foto que ajuda a ilustrar esta crónica.

#canaldoxofred

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