O Outono estava no fim e o fim do ano aproximava-se a toda a velocidade. Apesar de já não ter dias de férias disponíveis, tinha vontade de ir dar uma volta. A sensação, por vezes inexplicável, chamada bicho carpinteiro. O raciocínio que tive em setembro - ver Sexta-feira 13 - pelos vistos repetiu-se e foi, mais uma vez, dar à Terceira.
Sabendo que andava lá um pato que me faltava e que a maldita garça-morena tinha sido vista outra vez marquei, com pouco mais de uma semana de antecedência, mais uma ida à Ilha dos Impérios. Seria a oitava em quatro anos. Não há fome que não dê em fartura.
Não ia ter muito tempo. Apenas um dia completo no sábado e duas horas no domingo mas, era o que se podia arranjar. Quem trabalha e tem poucas férias tem de se sujeitar a esta ditadura.
E foi assim que, na sexta dia 29 de Novembro, fiz uma viagem sem incidentes e me instalei no hotel na Praia da Vitória quando já passava da meia noite.
Uma boa notícia que tive, entretanto, foi que iriam lá estar mais dois birders alemães que eu conhecia. Isto quanto mais olhos, maior se torna a probabilidade de ver qualquer coisa.
Em contrapartida, a maior ajuda, ou seja, os meus companheiros lá do sítio, não ia estar disponível desta vez. O Carlos estava fora e o Ruben só remotamente, no ciberespaço. A vida é assim. Podia ser mais grave se não conhecesse nada do local.
Comecei o sábado com um bom pequeno almoço e uma visita ao Paul da Praia, onde o pato que queria ver não se fez rogado e apareceu logo à minha frente. O sol ainda estava a nascer e a luz era fraca. Tirei umas fotos de registo e segui viagem lá para cima, para procurar a famosa garça, mais uma vez. O objetivo com maior probabilidade da viagem estava alcançado nos primeiros dez minutos. Agora era continuar na depressão da procura de uma garça-branca fantasma, que não se queria materializar. E assim começou mais uma volta no carrossel.
Andei pelo Reservatório do Cabrito e charcas adjacentes. Nada. Fui a mais umas charcas, incluindo a poça onde ela tinha sido vista pela última vez. Nada de nada.
Pior ainda, num desses locais ainda temi pela vida. Para ver a charca entrei num terreno e, só uns bons cinco minutos depois é que reparei nos vinte touros que tinham parado de pastar e que estavam a olhar para mim. Saí em bicos de pés e bati em retirada o mais rápido que consegui.
Fui para a Lagoa do Junco e arredores, onde já tinha passado vezes sem conta na última visita. Nada.
Soube também que os meus colegas alemães tinham ido ver a Caldeira Guilherme Moniz com telescópio e que também não tinham tido sorte. Isto não estava fácil.
Sem mais ideias, resolvi ir pensar na vida o que, neste caso, significou ir comer a sandes de alcatra que me tinha fugido na última visita. Soube que nem ginjas.
Depois de almoço, como as ideias teimavam em não aparecer e não havia notícias dos meus colegas, resolvi regressar à casa partida, ou seja, ao Paul da Praia. Não havia muitas nuvens no céu, podia ser que o pato permitisse umas fotos melhores.
A ideia foi boa porque, além do pato, ainda apanhei três garças-brancas-americanas a caçar por lá. Às vezes é difícil ver a natureza em ação e não intervir mas, nós temos a nossa vida e, os bichos têm a vida deles. Mais uma vez senti-me um privilegiado. O Mickey é que não teve tanta sorte.
Por volta das duas e meia da tarde, achei que a brincadeira tinha terminado e que tinha de voltar ao trabalho. Maldita garça, pensei. Resolvi ir outra vez para o Junco para continuar a labuta. Pelo menos, sempre se viam mais uns muros vazios. Eram quase três da tarde quando cheguei ao destino.
Da estrada não vi nada e resolvi ir a uma charca fora de vista, dentro de um terreno. Era um dos locais onde tinha observado o maçarico-solitário na última visita. Parei o carro o melhor que pude, para não estorvar muito os camiões de leite e tratores que estão sempre a passar e lá fui. Pelo menos narcejas haviam de estar algumas, pensei. Fui-me aproximando da borda e nem uma narceja. Típico. Mais uns passos e, quase debaixo dos meus pés, levantam três codornizes, e depois mais duas e depois mais uma. Bem que tentei tirar uma foto, mas sem sucesso. Ora bolas, que isto não está a correr nada bem. Subitamente, começo a ouvir uma vocalização que não conhecia. Tiiiiiiiii! Tiiiiiiiii! Mas que raio é isto, pensei. Parecia vir de muito perto. Andei uns metros para cima. Tiiiiiiiii! Vinha de uma pequena poça, junto ao canto do terreno. Levo os binóculos à cara e, vejo materializar-se um dos unicórnios em que mais tinha pensado nos últimos anos. Um borrelho-de dupla-coleira olhava para mim a uma dezena de metros. Tiiiiiiiii!
Não me lembro de pensar em mais nada. Peguei na máquina e premi o gatilho. Ele ainda ficou pousado uns segundos mas, rapidamente levantou voo, sempre a vocalizar. Tiiiiiiiii! Deu várias voltas pela zona, comigo sempre a disparar como se não houvesse amanhã. Finalmente, lá pousou num terreno do outro lado da estrada. Percebi onde estava e, resolvi não me aproximar, para não espantar a caça.
Avisei os colegas. Seguiu mensagem para o Ruben e para os Alemães, que vieram a correr. "Frederico, we are coming!", mandaram estes últimos no WhatsApp.
Demorou uma boa meia hora até que lá estivesse toda a gente. Quando nos aproximámos ainda estivemos uns minutos até o conseguirmos avistar, a cerca de cinquenta metros, numa dobra do terreno. Para eles não deu para grande coisa, mas uma estreia é uma estreia e, um dos alemães estava eufórico. Isto para alemão, claro. Ou seja, esboçou um leve sorriso.
Nesse fim de tarde, quando desci para o hotel, acho que o carro não precisou de gastar combustível. O trajeto foi todo feito a adrenalina.
A descoberta e estreia desse dia foi devidamente comemorada por todos, num dos meus restaurantes preferidos da Praia da Vitória, o Larica. Três observadores, dois Alemães e um Português, numa sala perdida, no meio do oceano. Mais um momento para recordar.
No domingo, só dispunha de cerca de duas horas antes de ir para o aeroporto. Estava sem grandes ideias e, já não tinha esperança nenhuma na garça maldita. Por isso, resolvi ir a Meca o que, na Terceira, significa ir ao Paul da Pedreira. Pelo menos, sempre se tiravam umas fotos.
Ao chegar ao pequeno almoço não estavam lá as panquecas com maple sirup que tão bem me tinham sabido no dia anterior. Ainda protestei mas, as funcionárias não me ligaram nenhuma. Hoje não há, disseram com um sorriso. Ora bolas, um dos momentos altos do dia tinha ido por água abaixo. Isto começa mal, pensei.
Segui para a Pedreira. O céu estava cinzento e, ainda tive de esperar uns minutos que a chuva abrandasse, antes de sair do carro. Meti a máquina na mochila, para maior protecção e fui andando diretamente para o confortável banco de pedra que por lá está, no canto direito.
Com um céu destes e chuva miudinha vão ser umas excelentes fotos, pensei. Mas persisti e continuei a caminhar que isto, nos Açores, o tempo muda em segundos.
Não costumo parar no caminho mas, desta vez, como aquilo me pareceu animado, resolvi dar uma vista de olhos nas primeiras poças que se vêem do lado esquerdo.
Ainda meio a dormir, espreitei pelos binóculos e, a primeira ave que vi foi uma limícola esquisita de tamanho médio e de cor creme acinzentado, tipo cor-de-burro-quando-foge. Olhei uma e outra vez, para ver se não seria uma miragem. O bicho lá continuava, calmamente, a alimentar-se na lama. Já conhecia aquela silhueta, que tinha visto no Brasil, em 2018. Era um Maçarico-de-asa-branca (Willet, em Inglês) Parecia impossível, mas ele ali estava, à minha frente. Fiquei atordoado por um segundo ou dois, a pensar no que tinha acabado de acontecer.
Os nervos começaram a instalar-se quando me lembrei que tinha a máquina na mochila que, por sua vez, estava às costas. E se o bicho voa, maldita chuva que me fez guardar a máquina, só me saem duques. Os poucos segundos que demorei a tirar a câmara da mochila e a prepará-la pareceram horas. Contrariamente ao que seria típico, o bicho até foi simpático e deixou-se ficar. Consegui tirar as primeiras fotos e as segundas e as terceiras. Comecei finalmente a relaxar e a pensar que tinha de avisar a malta. Quando peguei no telemóvel é que percebi que tinha as mãos a tremer e que nem me conseguia lembrar-me do que tinha a fazer. Respirei fundo e lá me vieram à memória as palavras Ruben e WhatsApp. Mandei-lhe uma foto "back of the camera" e perguntei:
-Willet? Ou ainda estou a dormir?
Isto com confirmação é sempre melhor...
Vi que as mensagens nem davam sinal de ter sido recebidas. Mau! E agora?! Mandei mensagem para o Carlos Pereira e também para os Alemães. Sem ver as respostas, resolvi ligar ao Ruben. Era cedo mas, quem tem miúdos pequenos não costuma ter o luxo de poder dormir até tarde.
-Estou?
-Viste a minha mensagem?
-Não. Ainda não liguei a internet. Espera aí que vou ver.
Desligar a internet nestes dias é pouco visto e tem os seus riscos mas, de certeza que ele terá uma boa explicação.
Um ou dois minutos depois lá veio a chamada de retorno.
-É um willet, é! Vou para aí.
Desliguei a chamada e vi as respostas às mensagens. Todas diziam o mesmo.
Lá vieram os Alemães a correr outra vez. "We are coming!". Segundo percebi, andavam pelo Cabrito a dar mais uma volta ao bilhar grande. Continuavam obcecados pela garça fantasma.
Mais uma meia hora e já lá estava toda a gente. Deu-me um gozo especial ver o Ruben pela segunda vez, num fim de semana em que teoricamente não nos íamos ver.
O bicho ainda tardou uns minutos a colaborar porque andou metido atrás das canas mas, lá apareceu e toda a a gente tirou as suas fotos. Um pouco longe e com chuva mas, não vi ninguém a queixar-se.
Ainda não eram dez horas, quando resolvi ir andando. O voo era ao meio dia e eu já tinha tido stress que chegasse nos últimos dois dias.
Foi um fim de semana sempre em crescendo, com um final nos píncaros do Evereste. Cheguei à Terceira, entrei na Twilight Zone e, só saí de lá quando o avião levantou.
Fui para casa sem garça mas, também sem rancor. Graças a ela, tinha conseguido ver cinco novas espécies em Portugal em poucos meses. Não há dúvida que, tal como já escrevi noutras crónicas, para encontrar uma coisa, o melhor é ir à procura de outra coisa.
Termino com um agradecimento ao Ruben pela ajuda inestimável. As idas à Terceira são, cada vez mais, um regresso a casa.
Sem comentários:
Enviar um comentário