O Primeiro Açor dos Açores
Corvo, Outubro de 2024
Um princípio é sempre difícil. Como começar a escrever sobre um microcosmos que tem tanto para contar há tantos anos e onde cada um de nós acaba por ser uma gota de água que corre para um oceano omnipresente e que tudo rodeia?
Os "Fragmentos do Corvo", são episódios que vivi na ilha. Flashes de uma realidade muito maior, que todos os anos acontece por lá entre Setembro e Outubro.
O Corvo é a ilha mais pequena dos Açores mas, para ver aves é, claramente, a mais procurada. Todos os anos, algumas dezenas de arroladores de toda a Europa vão para lá no Outono, com a perspectiva de aumentar as suas já extensas listas, com aves Americanas. Os portugueses foram aparecendo a pouco e pouco e, hoje em dia já temos cerca de uma dezena que lá vai anualmente, com o mesmo objetivo.
Em 2024 ia na minha terceira estadia. Já me começava a habituar à forma como tudo se passa naquele pequeno mundo e a sobreviver ao esforço físico que, para mim, é como se fosse uma recruta. Cada ave é difícil de ver, puxa pelo físico e, uma pessoa já não vai para nova. Nesse Outubro fiquei por lá dez dias.
No dia 17, sétimo dia e quinta-feira, resolvemos descer à caldeira para tentar ver as fugidias escrevedeiras-da-lapónia. Esse epíteto, pelos vistos, só é válido para mim porque toda a gente menos eu as consegue ver lá em baixo. Neste caso, a tradição manteve-se e, escrevedeiras, nem vê-las. Um bútio-calçado americano, que nos passou por cima, ainda tentou compor o panorama, sem sucesso.
A caldeira é realmente de tirar o fôlego, sobretudo na subida mas, eu não tinha lá ido para ver a natureza. Assumimos a derrota e voltámos para cima. Sem escrevedeiras, obviamente que a subida custa muito mais.
Chegados ao parque de estacionamento e recuperado o fôlego, havia que subir mais uns cem metros, para chamar o táxi. O vento estava que não se podia e quase que me tombou no alcatrão. Com algum esforço, consegui chegar lá acima e mandar a mensagem. Por milagre, o telemóvel não foi levado pelo vento. Passada meia hora, nada de táxi. Foi a vez de a Sandra ir lá acima, ver se havia resposta. Nada.
Abrigados junto ao placard à beira da estrada, começámos a pensar na vida. Ainda são uns quilómetros até à estrada principal e mais uns quantos até à vila. Vamos andando ou esperamos? Parecia que estávamos no "Quem quer ser milionário".
A dado momento, por cima do vento, pareceu-me ouvir um som de motor, muito ao longe. Não disse nada porque é nestas alturas que a cabeça nos prega partidas. Mas não, não era só imaginação. O som aproximava-se e era claramente um carro. Seria o táxi?
Quando o carro finalmente aparece, vemos um grande jipe preto a passar. Para meu espanto, o condutor começou de imediato a dizer-me adeus.
Era o Pedro Silva, que tinha conhecido brevemente no Pico em 2021. Parecia uma miragem. Carros na ilha há poucos e ali, num momento delicado, aparece um e logo com alguém que eu conhecia ao volante. Como era possível?
-Olá Fred. Sou o Pedro. Lembras-te de mim?
Conversa puxa conversa, tinha chegado nesse dia com uma jornalista, para fazer uma reportagem sobre o Corvo e o pessoal da passarada que para lá vai em Outubro.
-Fazes já uma entrevista, ok?
Como dizer que não a uma proposta destas, com boleia incluída?
Fomos para baixo juntos. A jornalista apresentou-se:
-Sou a Patrícia, do Fugas, do jornal Público.
Respondi a tudo o que me perguntou. Como comecei, porque estava ali no Corvo e a mais umas quantas.
Foi assim começou uma parceria que acabaria por se revelar extremamente frutuosa para todos, nos três dias seguintes.
O resto do dia passou-se a mostrar ao Pedro as aves que por lá andavam, e que ele ainda não tinha. A grande surpresa foi quando descobrimos um tartaranhão-cinzento-americano perto do reservatório. Fosse como fosse, nesse dia não vi nenhuma ave nova para a coleção.
É a tal coisa, isto aparece quando aparece e, na maioria das vezes, não depende do esforço.
É a tal coisa, isto aparece quando aparece e, na maioria das vezes, não depende do esforço.
No dia seguinte, sexta feira, acordei com a moral em baixo. Realmente, já tinha visto umas coisas nesse ano mas, provavelmente o facto de não ver as escrevedeiras no dia anterior tinha feito mossa. Havia notícias do Lighthouse Valley (Vale do Farol), de que tinham, no dia anterior, visto uma mariquita-de-perna-clara, bem gira. O Ruben já me tinha perguntado se eu não ia à mariquita mas, para quem não tem joelhos, ir ao Lighthouse Valley é quase como ir à Lua.
Estava resolvido. Deixei-me ficar lá por baixo, perto da vila, a bater os campos. A meio da manhã, surge a notícia de que estava uma Riscadinha quase ao lado do parque de campismo. Ui, essa é da Porto Editora. Fui para lá o mais depressa que consegui mas, quando cheguei o bicho já não estava à vista. Típico.
Deparei-me com a cena habitual de uma meia dúzia de pessoas a olhar para uma meia dúzia de salgueiros. A conversa com o descobridor, o austríaco Lucas, foi também a do costume, mas em Inglês, "Ah e tal, estava aqui e depois foi para ali e agora não a vemos". Esperou-se uma boa meia hora e, da Riscadinha, nem sinal. O pessoal começou, lentamente, a dispersar e eu decidi também dar uma volta pelas redondezas.
Passados poucos minutos, quando estava quase de volta à casa partida, na estrada ao lado do local inicial, pareceu-me ouvir algumas vozes e agitação por detrás dos salgueiros. Numa fração de segundo vejo o Lucas ao meu lado, a dizer "black and white warbler" e a Riscadinha a passar a um metro de nós, para o outro lado da estrada. Foram só um ou dois segundos mas, valeram por muitas horas. Confesso que fiquei comovido. Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe. A sorte estava a mudar...
O carrossel do Corvo começou a andar à roda.
Durante a hora de almoço apareceu a notícia de que tinha sido avistada uma outra mariquita - northern parula - perto do local da Riscadinha.
Depois do café, havia que tomar decisões.
As hipóteses eram duas. Ou ir à procura da parula cá de baixo, ou ir lá para cima, para o Lighthouse Valley, tentar a perna-clara. Percebi que os meus companheiros, ou seja, a minha Sandra, o Pedro e a Patrícia, já referidos, e o Nuno Gonçalves, estavam todos inclinados para ir ao Farol. Todos tinham coisas a ver por lá. Além da perna-clara, havia também mais uma outra mariquita - mariquita-de-rabo-vermelho - que eles ainda não tinham na lista. A decisão acabou por ser simples:
Até tenho boleia e o Nuno diz que me ensina um caminho mais fácil.
Assim sendo, vamos à mais difícil, pensei.
E foi assim que me apanhei no Lighthouse Valley, o terror dos joelhos débeis. O caminho foi, realmente, mais fácil do que o que conhecia e, num quarto de hora, já estava a olhar para os zimbros onde, teoricamente, andavam os bichos. A primeira mariquita apareceu quase de seguida mas, infelizmente, não era a que precisava. O Nuno já tinha avisado que a outra, a de perna clara, era mais elusiva e só aparecia de quando em quando. Passados uns vinte minutos ainda não havia fumo branco. Fomos mudando de posição e nada. Em contrapartida, a outra fartou-se de nos passar à frente. É sempre assim, quando não precisas, é sempre mais fácil. Dois anos antes, uma destas tinha-me dado água pela barba, precisamente naquele local.
Adiante, que isso são águas passadas. De repente, numa fração de segundo, consegui ver uma outra ave, mais amarela e com duas barras na asa. Logo de seguida, escondeu-se e nem para uma foto desfocada posou. Mais uns minutos e ela acabou por fazer a sua aparição triunfal, com direito a fotos de caderneta. Os zimbros e o céu azul também ajudaram a compor o quadro. Quando a vi na máquina, quase que nem acreditei.
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Mariquita-de-perna-clara (Setophaga striata) |
Estava-me a preparar para respirar fundo e gozar o feito mas, isto no Corvo há dias em que nem para isso dá. Ouço a voz do Pedro atrás de mim "Rapina! Rapina! Rapina!". Por ali não há rapinas residentes. Qualquer uma que apareça é sempre importante e merece toda a atenção. Pusemos os olhos no céu e vimos, claramente vista, uma ave de médio porte, no meio do pânico dos estorninhos que voavam em enxame por todo o lado. O bicho fez-me lembrar um açor dos nossos, mas não batia completamente certo para o que costumo ver por cá. Por um lado parecia familiar, por outro nem por isso. Seria, talvez, a cor? É daquelas coisas difíceis de explicar. O bicho não se fez rogado e, antes de seguir para norte, ainda deu umas duas ou três voltas por cima do vale. Quem tinha câmaras na mão disparou com tudo o que tinha. As máquinas ferveram.
Numa atmosfera carregada de adrenalina, começámos a fazer contas à vida e a tentar perceber o que tínhamos visto. Consultei as aplicações que tinha no telemóvel mas, não encontrei nada que correspondesse na totalidade. Estávamos a discutir o que fazer a seguir quando ouvimos o rádio crepitar. Não se percebia nada. Pedimos para repetir e o resultado foi o mesmo. Pelos vistos, quem quer que fosse, conseguia ouvir-nos. Já o contrário era complicado. Viemos mais tarde a saber que era o sueco Olof a avisar que estava a ver o "nosso" bicho.
Era preciso agir rápido. Estávamos sem acesso à rede móvel e o rádio também não estava grande coisa. A notícia tinha de ser divulgada. O Nuno, guia de montanha no Pico e, claramente, o melhor trepador do grupo resolveu oferecer-se para ir a correr até apanhar rede lá em cima. Nas suas palavras, o que interessava era divulgar, a identificação logo se veria. Demos um abraço coletivo para comemorar e ele lá seguiu, a toda a velocidade, juntamente com umas fotos back of the camera. Mesmo sem qualidade, já iam ajudar a desvendar o mistério.
Quando, passado mais de meia hora, o encontrámos cá em cima, começámos a perceber que o caldo estava entornado. Suspeitava-se que a ave seria algo inaudito, um açor-americano (Astur atricapillus). Seria uma primeira ocorrência para os Açores e também para o Paleártico Ocidental. Por outro lado, soubemos que a mensagem do Olof tinha chegado a bom porto e que o pessoal estava desesperadamente a tentar arranjar um meio de transporte lá para cima. O táxi do costume não estava disponível e o pânico estava instalado.
Aqui cabe fazer um parêntesis. Dois dias antes, O Vincent, que é um dos frequentadores mais assíduos do Corvo, já na sua décima nona estadia, tinha tirado uma foto a dois mosquitos, muito longe num fundo de céu branco. Ninguém arriscou grandes palpites, que com mosquitos isso é complicado. Lembro-me de ele me ter mostrado a foto e de lhe ter dito que uma das aves tinha perfil de accipiter (açor/gavião). Accipiter, Vincent, accipiter, disse-lhe. Nem eu sabia bem a implicação do que estava a dizer. O problema é que um Açor, qualquer que fosse a espécie, nunca tinha sido visto nos Açores.
Lembro-me de, depois disso, termos falado sobre o que andava pela ilha e ele me ter referido "falta saber o que é aquela rapina da foto, que ainda não apareceu". Dito isto, foi logo aparecer por cima de nós, num dos vales mais remotos da ilha. Às vezes não é preciso argumentista. A história escreve-se sozinha.
Acabado o parêntesis, voltemos à vaca fria.
O caos esteve instalado por largas dezenas de minutos mas, com mais ou menos dificuldade, o pessoal conseguiu aparecer cá em cima. Por outro lado, o bicho colaborou qualquer coisinha e, quem estava na estrada de alcatrão conseguiu avistá-lo. Apareceu nas falésias lá em baixo uma ou duas vezes, rodeado de estorninhos a lutar pela vida. Um pouco longe mas, foi o que se conseguiu arranjar. O nível de stress coletivo desceu a pouco e pouco.
Nesse fim de tarde descemos em triunfo para a Vila, com a certeza de que tínhamos visto algo muito especial. O carro estava transformado num daqueles coches dourados do museu. Até tivemos pessoal a acenar à nossa passagem, ou não estivéssemos nós a usar o carro do Presidente da Câmara.
Depois de jantar, e apesar da certeza de que tínhamos visto uma ave da família dos açores era preciso chegar a uma conclusão definitiva sobre a espécie. Foi outro dos frequentadores mas assíduos do Corvo, o Pierre, que se encarregou da investigação, e de pedir ajuda aos especialistas. Já passava das dez da noite quando lhe consegui enviar as fotos com a parte inferior da cauda bem visível, que permitiram encerrar o assunto. Algumas dezenas de minutos depois veio a resposta, que lhe chegou diretamente do Olimpo. "Congrats, it's a Yankee!".
Ou seja, tal como se suspeitava, tratava-se de um Açor-americano. O primeiro Açor dos Açores e do Paleártico Ocidental.
É assim no Corvo. Numa sexta-feira que começou sem grandes promessas, cinco portugueses acabaram por partilhar um momento para a vida. Foi um dia como nenhum outro, num rochedo perdido no meio do Atlântico.
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