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19 fevereiro 2025

O dia mais longo

Ao largo da Ilha Marion, África do Sul
27 de Janeiro de 2025

Há uma ilha no meio do nada, a meio caminho entre o Cabo das Tormentas e a Antártida. Na ilha Marion e na sua vizinha, a ilha Prince Edward, nidificam cerca de dois milhões de aves marinhas, de 29 espécies. 
A importância destas ilhas é vital. Só uma das espécies, o albatroz-gigante (Diomedea exulans) tem lá a nidificar 40% da sua população total. 

Albatroz-preto (Sooty albatross)

A vida nos "Roaring Forties" não é fácil mas, o homem, como sempre, encarregou-se de a complicar ainda mais.  No início do século 19 as frotas baleeiras que frequentavam a zona levaram para lá os ratos domésticos, que se adaptaram excepcionalmente bem e passaram a alimentar-se das crias das aves, sem defesa para fazer face a essa ameaça.

Foi com este panorama que a BirdLife da África do Sul concebeu o ambicioso projeto Mouse-free Marion, para libertar de vez a ilha dos ratos. A ideia é excelente mas é preciso dinheiro. Muito dinheiro.
Uma das iniciativas em que pensaram para aumentar a notoriedade do projeto, além de angariar fundos, foi o Flock to Marion. Um cruzeiro às referidas ilhas, num barco de luxo, com largas centenas de observadores. 

Pardelão-subantártico (Northern Giant Petrel)

Tinha seguido de longe a iniciativa em 2022, aquando do primeiro cruzeiro mas, na altura, estávamos ainda em plena época de pandemia ou finais de pandemia. Nunca coloquei a hipótese de participar. 
Como o mundo dá muitas voltas, três anos depois acabei por me inscrever no Flock to Marion 2025. Não foi um caminho muito direto mas, fosse lá como fosse, inscrevi-me.
A inscrição foi feita com quase um ano de antecedência mas o tempo passou, como sempre o tempo faz, e foi com entusiasmo que  aterrei em Durban no dia anterior ao embarque no MSC Música. 

                O gigante MSC Música, atrás do terminal de cruzeiros Nelson Mandela, em Durban

Finalmente, após quase um ano de espera depois da inscrição, chegou o grande dia, Sexta-feira, 24 de janeiro de 2025. Na pequena multidão de 1900 pessoas que foi embarcando a conta-gotas estava eu e mais sete portugueses. Os procedimentos foram muito mais simples do que imaginei e rapidamente me instalei no convés 7 de estibordo a ver as aves que andavam pelo porto.

O barco saiu ao fim da tarde e sabíamos que só íamos chegar a Marion na segunda, dia 27. Tinham-nos dito que os dias em trânsito seriam para descansar e que o esforço de observação deveria ser concentrado nos dias nas ilhas - 27 e 28. Ouvi esse conselho mas, fiz orelhas moucas, que isto não é todos os dias que se está nos mares do Sul. Olhando para trás, obviamente que quem nos aconselhou tinha razão. 

Albatroz-gigante (Wandering Albatross)

Todos os dias do cruzeiro foram especiais mas, houve um que foi mais especial que os outros e, é nesse que vamos concentrar o relato. Navegamos assim até ao nosso dia D, 27 de Janeiro, o "Dia mais Longo" da viagem. 

A emoção tinha sido em crescendo desde o primeiro dia. Domingo, 26, já tinha sido excelente e os albatrozes-gigantes tinham aparecido aqui e ali. Os albatrozes mais pequenos e os faigões (prions) também. No fim do dia, vi o meu primeiro pardelão (macronectes) e fiquei emocionado. Tinha sido um dia em cheio e tinha atingido quase todos os objetivos que delineei para a viagem.
Seria possível ter um dia ainda melhor? Muita gente que tinha vindo no cruzeiro de 2022 havia avisado "espera até chegares à ilha e vais ver".
Sempre achei que estavam a exagerar.

Freira-de-penas-lisas (Soft-plumaged petrel) 
Na sua mais rara forma escura

Como mais vale prevenir, não fosse o pessoal ter razão, no dia 27, eu e o meu companheiro de quarto, Rui Pereira, combinámos a alvorada para as 3h20 (!!!). Às 3h45 já estava no convés. Estava lusco-fusco, mas mais para o fusco. Obviamente que não fui o primeiro mas, ainda havia pouca gente à vista. Como só se viam silhuetas, e mal, o silêncio imperava entre os guias e restantes madrugadores, leia-se malucos, que por lá andavam. Nisto, começo a aperceber-me que um guia americano de um grupo que conhecia já estava a dar indicações. "Possível isto, possível aquilo, possível aqueloutro". Fartei-me de rir. Realmente, com aquela luz tudo era possível. 
Cheguei à conclusão de que me tinha levantado cedo de mais e de que só valia a pena levantar os binóculos ou a câmara dali a pelo menos mais meia hora.

Albatroz-tisnado (Light-mantled Albatross)

Quando a luz já permitia ver qualquer coisa, o espetáculo começou a revelar-se. Os bichos eram aos milhares. O campo de visão estava sempre preenchido. Em vez de ficar a processar as emoções e a pensar na vida, resolvi começar a trabalhar e a registar o que via. Foi disparar e não pensar mais nisso. Afinal, tinha trazido 20 cartões para quê? 

Albatroz ao pequeno-almoço

Antes do pequeno-almoço, a estrela foi o primeiro Albatroz-tisnado da viagem (Light-mantled albatross). Talvez o mais bonito das sete espécies de albatroz observadas na expedição. A subtileza na variação de tons castanho e prata é do outro mundo. A surpresa foram os vários petrel-mergulhador-comum (Comon diving petrel). Nunca pensei vê-los tão bem e, ainda por cima, ser capaz de fazer registos a partir de um porta-aviões. Uma espécie de mini torda, com asas minúsculas e que voa de uma forma desajeitada, ao ponto de ter de atravessar as ondas a mergulhar. O nome "mergulhador" fica-lhes bem, sem dúvida. 
O show teve skuas, pardelões, painhos, albatrozes de várias espécies, tudo com fartura. Foi preciso uma grande força mental para virar as costas àquilo e ir tomar o pequeno-almoco, pouco depois das seis da manhã. 
O que vale é que até da mesa no 12º andar se via a bicharada. Não comi sozinho, porque me encontrei lá com um dos companheiros da viagem, o Hugo Blanco, que também tinha ganho o hábito de tomar o pequeno-almoço à mesma hora. Isto há gostos para tudo. 

Petrel-mergulhador-comum
(Comon diving petrel)

Depois dessa primeira paragem para reabastecimento, resolvemos ir os dois para a popaO espetáculo continuava. eram pardelões com fartura, além de albatrozes-gigantes (Wandering albatross) e albatrozes mais pequenos. "Olha o pardelão fresquinho!", foi a frase que o Hugo popularizou por esses dias. Por vezes havia reuniões de condomínio com cinco, seis, dez bichos pousados na água. Muitos subiam até à altura do nosso convés, no décimo segundo andar e até acima das nossas cabeças. Para compor o panorama ainda passavam faigões (prions), freiras de vários tipos. Foi sempre a disparar e quando não disparava para descansar o braço, ficava a admirar o show. Foi dos melhores momentos da expedição, poder ver tanto pardelão tão perto. É daquelas aves que parece vinda de outra época. Um dinossauro voador com ar de ser mau como as cobras. Era o meu principal objetivo da viagem, que já tinha visto no dia anterior por uns segundos. A emoção era muita mas, não a deixei tomar conta do acontecimento. Aproveitei a oportunidade e desfrutei, para além de encher os cartões com mais uns milhares de registos. 

Faigão-do-índico (Salvin's prion)

Quando achámos que já tínhamos pardelões suficientes, resolvemos mudar de pouso. Continuámos pela ré, mas descemos dois ou três andares. 
Não tinha passado muito tempo quando começámos a ouvir um grande sururu vindo um pouco de todo o lado. Andava um Pintado à volta do barco (Daption capense). A loucura estava instalada. Não é que fosse um bicho raro mas era completamente inesperado para a o local e altura do ano. Aparentemente, estaria do lado oposto do barco. Nós estávamos à esquerda e, ao que parecia, estava a ser visto à direita. Estas manobras de mudança de bordo raramente correm bem e, por isso, resolvemos procurar mesmo dali. Não tinham passado nem dois minutos quando deteto o bicho na esteira do barco. "Está ali!". Lá vinha ele a fazer manobras acrobáticas por cima da água azul-turquesa. O Hugo ainda teve de perguntar várias vezes o habitual nestas situações, "Onde? Onde é que está?", e eu de  dar a resposta que já estava célebre na viagem "Eh pá, põe-te atrás de mim!". Finalmente, lá o detectou também. O Pintado, além de bonito, foi simpático e deixou-se ficar algum tempo. As fotos não foram fáceis mas ficaram boas. Isto de passar de pardelões e albatrozes para pintados é complicado. É como passar de uma corrida de camiões para uma de fórmula 1. 

Pintado na popa (Pintado Petrel)

A euforia estava instalada um pouco por todo o barco. Era a alegria do povo. O Hugo estava quase fora de si. Ainda  sinto as palmadas de contentamento que me deu nas costas. 
Achei que o dia estava ganho mas, o problema é que ainda nem sequer eram oito horas. 

Fomos outra vez para o deck 7 e continuou o fartar vilanagem. A bicharada às centenas, não parava de aparecer. Nunca os olhos tiveram um minuto de descanso. 

Ilha Marion

Já tínhamos passado a ilha Prince Edward e, por volta das nove horas, avistava-se ao longe a ilha Marion. Fiquei impressionado com a dimensão, mas sobretudo com a altura, que me disseram ser superior a 1200 metros. Lá no alto, ainda se conseguia avistar neve. Na minha cabeça tinha um ilhéu pequeno de rocha mas o que vi foi uma ilha a sério. Pena não termos sido autorizados a aproximar-nos a menos de doze milhas. 

Albatroz-de-bico-pintado-do-índico
(Indian Yellow-nosed Albatross)

Foi por volta das 10h30 que comecámos a ouvir pessoal a gritar "pinguim!". Tinha esperança de ver um mas, agora, a esperança transformava-se rapidamente em possibilidade. "Pinguim às 2h", gritava alguém e, logo os olhos se viravam para a área em questão à procura dos bichos. 
Ainda foram precisas algumas iterações para afinar a vista e perceber como se via um pinguim e mais umas quantas para os conseguir fotografar. Claramente, o bicho mais difícil de ver e, consequentemente, de fotografar durante toda a expedição. O raio dos bichos estavam sempre em movimento e a mergulhar sem parar. Era preciso descobrir o sítio aproximado onde estavam e, depois, ter a sorte de os apanhar a sair da água. A maioria das vezes só se viam salpicos ou a água a borbulhar mas, com paciência, lá consegui ver quatro espécies ao longo do dia. A saga dos pinguins continuou o dia todo. Tudo foi possível, até fotografar pinguins em vôo. 

Pinguim-macaroni (Macaroni penguin)
Sim, eles voam.

A manhã foi animada, mas havia que ir almoçar e, de preferência, cedo. Isto para termos acesso a uma das mesas à janela. Já toda a gente tinha percebido que nesta viagem se tinha de estar permanentemente com um olho no burro e outro no cigano. Estávamos à mesa a comer alegremente quando o Hugo diz "Ora vê lá se não é o Albatroz de que precisamos". Olhamos para a zona e vemos dois ou três albatrozes a passar, um deles com o bico laranja. Era sem dúvida um  Albatroz-de-sobrancelha (Black-browed albatross). O próximo minuto foi dramático. Como fotografar um albatroz através do vidro cheio de sal? Com algum esforço lá consegui ficar com a evidência. Não era um grande registo mas era um registo. E assim se fizeram três estreias numa. O albatroz-de-sobrancelha, fotografar através do vidro do barco e ainda  fotografar ao mesmo tempo que se almoça.  Não é para qualquer um.

Albatroz-de-sobrancelha
ao almoço, através do vidro.

Depois do almoço animado, voltámos ao trabalho, que um cruzeiro destes não é para calões. Durante a tarde, além dos pinguins, dos faigões e dos múltiplos-painhos-de-barriga-preta, entre muitos outros, apareceram algumas novas estrelas no firmamento. Uma foi o Painho-de-dorso-cinzento (Grey-backed storm petrel). Para o ver tive de aprender a reconhecer Kelp. Uma alga em formato de polvo a que eles se costumam associar para se alimentarem. Sempre a aprender. O outro foi Petrel-azul (Blue Petrel). É parecido com um faigão mas tem a ponta da cauda branca e não preta. A verdade é que esse tinha o estatuto de estrela maior, ao ponto de causar debandadas sucessivas de umas dezenas de observadores. "Petrel-azul a bombordo", e lá ia a manada de estibordo para bombordo pelo meio do casino. "Afinal voltou para estibordo!", e lá ia o pessoal de volta à casa partida. Fiz isso algumas vezes ao longo da viagem, mais com maus resultados do que bons. Numa das vezes lembro-me de ouvir perfeitamente as vozes dos funcionários do casino. "Bird! Bird!". O importante é que toda a gente estava divertida. O que nós fazemos em nome da ciência...

Petrel-azul (Blue Petrel) 
O maior causador de debandadas da viagem

Foi também depois de almoço que os Portugueses, coletivamente, deram sinal de vida e se mostraram à turba. Chegámos ao Deck 7 e de imediato o Rui Pereira vê e fotografa um faigão-de-bico-curto (fairy prion), pondo a malta das redondezas a mexer, à procura do bicho, que não é nada fácil de encontrar e identificar no meio das outras centenas de faigões. Passado uns minutos, estava o Luís Custódia a queixar-se da vida, de que ainda não tinha conseguido ver um Petrel-azul e logo o Bruno Silva avista um, provocando mais uma debandada a bordo. Mais uns minutos e o mesmo Bruno avista uma freira-de-cabeça-branca (White-headed petrel) que muita gente, incluindo ele próprio ainda não tinha visto. Mais uma pequena multidão a mexer. Tudo isto no espaço de menos de meia-hora. Foi aí que reparei que estávamos rodeados de gente e disse que era a nossa vez, dos Portugueses andarem a "espalhar magia" e a risota instalou-se. Dito isto, resolvemos ir "espalhar magia" para outro lado. 

A Freira-de-cabeça-branca do Bruno
(White-headed petrel)

Uma nota mais delicada foi a ida ao hospital por volta das quatro da tarde. O Luís  tinha passado mal a noite e não se sentia bem. Seria da emoção? Conhecendo-o desde 2010 achei que não estava a brincar. Ao longo do dia fui-lhe dizendo que, se ele quisesse ia com ele ao médico, uma vez que o Inglês não é o seu forte. 
Assim, às 16h lá fomos ao hospital do navio - mais uma estreia. A médica era bem gira, por sinal. Além de outra medicação, recomendou também fazer um aerossol. Fomos para a sala de tratamento e lá estivemos um bom bocado. Felizmente, a sala tinha uma vigia e conseguimos estar sempre de olho nos albatrozes. Até cheguei a pegar nos binóculos. Teria sido uma estreia mundial? Observar aves na sala de tratamentos do hospital do navio. Julgo ter visto um sorriso - seria de gozo? -  na cara dos enfermeiros e da própria médica... O importante é que, no final da desventura, o Luís se sentia melhor. A carteira também ficou mais leve, que as consultas nos cruzeiros não são baratas.

Visita ao hospital, sempre com os albatrozes na mira.

Voltámos ao deck 7, e por lá estivemos a aproveitar até ao último segundo, até ao lusco-fusco se tornar fusco. A última imagem que recordo é a do enxame de aves atrás do navio. Milhares de bichos de todas as espécies faziam pela vida, com a luz do fim de tarde. Uma visão do outro mundo mas, no fundo, fazia sentido porque era no fim do mundo que nós estávamos. 

Panorama do deck 7 de estibordo

Durante o dia, vários guias perguntaram-me o que pensava da experiência. A minha resposta veio diretamente do fundo do coração:
-Podias contar-me mil vezes como era. Só vivendo é que se compreende.
Regressei ao quarto de coração cheio. Perguntei ao Rui, enquanto dono de um daqueles relógios de pulso que tudo controlam, quanto tínhamos andado nesse dia e fiquei atónito com a resposta. Dez (!) quilómetros. Num barco de trezentos metros parece difícil de acreditar, mas lá que o relógio dizia isso, dizia.

Albatroz-gigante (Wandering albatross)

Apesar do cansaço, o dia acabou como todos os outros. Fomos jantar a um dos restaurantes do navio, o Belle Époque. Fui vestido mais ou menos a rigor, que isto há que respeitar as tradições. Devia ser dos poucos naquela expedição a fazê-lo, e já me tinham dito, logo no primeiro dia, que era dos mais bem vestidos ao jantar. Não percebi se era um elogio ou uma crítica mas também não me importei. O meu contentamento, e o do grupo, via-se e sentia-se.
E o melhor de tudo é que aquilo ainda ia a meio. Amanhã havia mais.

Jantar de Gala no Belle Époque


20 dezembro 2024

O primeiro Açor dos Açores

Fragmentos do Corvo
O Primeiro Açor dos Açores
 
Corvo, Outubro de 2024
Um princípio é sempre difícil. Como começar a escrever sobre um microcosmos que tem tanto para contar há tantos anos e onde cada um de nós acaba por ser uma gota de água que corre para um oceano omnipresente e que tudo rodeia? 
Os "Fragmentos do Corvo", são episódios que vivi na ilha. Flashes de uma realidade muito maior, que todos os anos acontece por lá entre Setembro e Outubro.

O Corvo é a ilha mais pequena dos Açores mas, para ver aves é, claramente, a mais procurada. Todos os anos, algumas dezenas de arroladores de toda a Europa vão para lá no Outono, com a perspectiva de aumentar as suas já extensas listas, com aves Americanas. Os portugueses foram aparecendo a pouco e pouco e, hoje em dia já temos cerca de uma dezena que lá vai anualmente, com o mesmo objetivo.

Açor-americano (Astur atricapillus)

Em 2024 ia na minha terceira estadia. Já me começava a habituar à forma como tudo se passa naquele pequeno mundo e a sobreviver ao esforço físico que, para mim, é como se fosse uma recruta. Cada ave é difícil de ver, puxa pelo físico e, uma pessoa já não vai para nova. Nesse Outubro fiquei por lá dez dias.

No dia 17, sétimo dia e quinta-feira, resolvemos descer à caldeira para tentar ver as fugidias escrevedeiras-da-lapónia. Esse epíteto, pelos vistos, só é válido para mim porque toda a gente menos eu as consegue ver lá em baixo. Neste caso, a tradição manteve-se e, escrevedeiras, nem vê-las. Um bútio-calçado americano, que nos passou por cima, ainda tentou compor o panorama, sem sucesso. 
A caldeira é realmente de tirar o fôlego, sobretudo na subida mas, eu não tinha lá ido para ver a natureza. Assumimos a derrota e voltámos para cima. Sem escrevedeiras, obviamente que a subida custa muito mais. 
Chegados ao parque de estacionamento e recuperado o fôlego, havia que subir mais uns cem metros, para chamar o táxi. O vento estava que não se podia e quase que me tombou no alcatrão. Com algum esforço, consegui chegar lá acima e mandar a mensagem. Por milagre, o telemóvel não foi levado pelo vento. Passada meia hora, nada de táxi. Foi a vez de a Sandra ir lá acima, ver se havia resposta. Nada. 
Abrigados junto ao placard à beira da estrada, começámos a pensar na vida. Ainda são uns quilómetros até à estrada principal e mais uns quantos até à vila. Vamos andando ou esperamos? Parecia que estávamos no "Quem quer ser milionário".

A dado momento, por cima do vento, pareceu-me ouvir um som de motor, muito ao longe. Não disse nada porque é nestas alturas que a cabeça nos prega partidas. Mas não, não era só imaginação. O som aproximava-se e era claramente um carro. Seria o táxi?

Bútio-calçado (forma escura)
O ponto alto da descida à Caldeira

Quando o carro finalmente aparece, vemos um grande jipe preto a passar. Para meu espanto, o condutor começou de imediato a dizer-me adeus.
Era o Pedro Silva, que tinha conhecido brevemente no Pico em 2021. Parecia uma miragem. Carros na ilha há poucos e ali, num momento delicado, aparece um e logo com alguém que eu conhecia ao volante. Como era possível? 
-Olá Fred. Sou o Pedro. Lembras-te de mim?
Conversa puxa conversa, tinha chegado nesse dia com uma jornalista, para fazer uma reportagem sobre o Corvo e o pessoal da passarada que para lá vai em Outubro.
-Fazes já uma entrevista, ok?
Como dizer que não a uma proposta destas, com boleia incluída?
Fomos para baixo juntos. A jornalista apresentou-se:
-Sou a Patrícia, do Fugas, do jornal Público.
Respondi a tudo o que me perguntou. Como comecei, porque estava ali no Corvo e a mais umas quantas.
Foi assim começou uma parceria que acabaria por se revelar extremamente frutuosa para todos, nos três dias seguintes.

Tartaranhão-cinzento Americano (Circus hudsonius) no reservatório

O resto do dia passou-se a mostrar ao Pedro as aves que por lá andavam, e que ele ainda não tinha. A grande surpresa foi quando descobrimos um tartaranhão-cinzento-americano perto do reservatório. Fosse como fosse, nesse dia não vi nenhuma ave nova para a coleção.
É a tal coisa, isto aparece quando aparece e, na maioria das vezes, não depende do esforço.

No dia seguinte, sexta feira, acordei com a moral em baixo. Realmente, já tinha visto umas coisas nesse ano mas, provavelmente o facto de não ver as escrevedeiras no dia anterior tinha feito mossa. Havia notícias do Lighthouse Valley (Vale do Farol), de que tinham, no dia anterior, visto uma mariquita-de-perna-clara, bem gira. O Ruben já me tinha perguntado se eu não ia à mariquita mas, para quem não tem joelhos, ir ao Lighthouse Valley é quase como ir à Lua.

Estava resolvido. Deixei-me ficar lá por baixo, perto da vila, a bater os campos. A meio da manhã, surge a notícia de que estava uma Riscadinha quase ao lado do parque de campismo. Ui, essa é da Porto Editora. Fui para lá o mais depressa que consegui mas, quando cheguei o bicho já não estava à vista. Típico.
Deparei-me com a cena habitual de uma meia dúzia de pessoas a olhar para uma meia dúzia de salgueiros. A conversa com o descobridor, o austríaco Lucas, foi também a do costume, mas em  Inglês, "Ah e tal, estava aqui e depois foi para ali e agora não a vemos". Esperou-se uma boa meia hora e, da Riscadinha, nem sinal. O pessoal começou, lentamente, a dispersar e eu decidi também dar uma volta pelas redondezas.
Passados poucos minutos, quando estava quase de volta à casa partida, na estrada ao lado do local inicial, pareceu-me ouvir algumas vozes e agitação por detrás dos salgueiros. Numa fração de segundo vejo o Lucas ao meu lado, a dizer "black and white warbler" e a Riscadinha a passar a um metro de nós, para o outro lado da estrada. Foram só um ou dois segundos mas, valeram por muitas horas. Confesso que fiquei comovido. Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe. A sorte estava a mudar...

Riscadinha ou Black-and-white Warbler (Mniotilta varia)

O carrossel do Corvo começou a andar à roda.
Durante a hora de almoço apareceu a notícia de que tinha sido avistada uma outra mariquita - northern parula - perto do local da Riscadinha.
Depois do café, havia que tomar decisões.
As hipóteses eram duas. Ou ir à procura da parula cá de baixo, ou ir lá para cima, para o Lighthouse Valley, tentar a perna-clara. Percebi que os meus companheiros, ou seja, a minha Sandra, o Pedro e a Patrícia, já referidos, e o Nuno Gonçalves, estavam todos inclinados para ir ao Farol. Todos tinham coisas a ver por lá. Além da perna-clara, havia também mais uma outra mariquita - mariquita-de-rabo-vermelho - que eles ainda não tinham na lista. A decisão acabou por ser simples:
Até tenho boleia e o Nuno diz que me ensina um caminho mais fácil. 
Assim sendo, vamos à mais difícil, pensei.

E foi assim que me apanhei no Lighthouse Valley, o terror dos joelhos débeis. O caminho foi, realmente, mais fácil do que o que conhecia e, num quarto de hora, já estava a olhar para os zimbros onde, teoricamente, andavam os bichos. A primeira mariquita apareceu quase de seguida mas, infelizmente, não era a que precisava. O Nuno já tinha avisado que a outra, a de perna clara, era mais elusiva e só aparecia de quando em quando. Passados uns vinte minutos ainda não havia fumo branco. Fomos mudando de posição e nada. Em contrapartida, a outra fartou-se de nos passar à frente. É sempre assim, quando não precisas, é sempre mais fácil. Dois anos antes, uma destas tinha-me dado água pela barba, precisamente naquele local.
Adiante, que isso são águas passadas. De repente, numa fração de segundo, consegui ver uma outra ave, mais amarela e com duas barras na asa. Logo de seguida, escondeu-se e nem para uma foto desfocada posou. Mais uns minutos e ela acabou por fazer a sua aparição triunfal, com direito a fotos de caderneta. Os zimbros e o céu azul também ajudaram a compor o quadro. Quando a vi na máquina, quase que nem acreditei.

Mariquita-de-perna-clara (Setophaga striata)

Estava-me a preparar para respirar fundo e gozar o feito mas, isto no Corvo há dias em que nem para isso dá. Ouço a voz do Pedro atrás de mim "Rapina! Rapina! Rapina!".  Por ali não há rapinas residentes. Qualquer uma que apareça é sempre importante e merece toda a atenção. Pusemos os olhos no céu e vimos, claramente vista, uma ave de médio porte, no meio do pânico dos estorninhos que voavam em enxame por todo o lado. O bicho fez-me lembrar um açor dos nossos, mas não batia completamente certo para o que costumo ver por cá. Por um lado parecia familiar, por outro nem por isso. Seria, talvez, a cor? É  daquelas coisas difíceis de explicar. O bicho não se fez rogado e, antes de seguir para norte, ainda deu umas duas ou três voltas por cima do vale. Quem tinha câmaras na mão disparou com tudo o que tinha. As máquinas ferveram.
Numa atmosfera carregada de adrenalina, começámos a fazer contas à vida e a tentar perceber o que tínhamos visto. Consultei as aplicações que tinha no telemóvel mas, não encontrei nada que correspondesse na totalidade. Estávamos a discutir o que fazer a seguir quando ouvimos o rádio crepitar. Não se percebia nada. Pedimos para repetir e o resultado foi o mesmo. Pelos vistos, quem quer que fosse, conseguia ouvir-nos. Já o contrário era complicado. Viemos mais tarde a saber que era o sueco Olof a avisar que estava a ver o "nosso" bicho. 

Era preciso agir rápido. Estávamos sem acesso à rede móvel e o rádio também não estava grande coisa. A notícia tinha de ser divulgada. O Nuno, guia de montanha no Pico e, claramente, o melhor trepador do grupo resolveu oferecer-se para ir a correr até apanhar rede lá em cima. Nas suas palavras, o que interessava era divulgar, a identificação logo se veria. Demos um abraço coletivo para comemorar e ele lá seguiu, a toda a velocidade, juntamente com umas fotos back of the camera. Mesmo sem qualidade, já iam ajudar a desvendar o mistério.

Quando, passado mais de meia hora, o encontrámos cá em cima, começámos a perceber que o caldo estava entornado. Suspeitava-se que a ave seria algo inaudito, um açor-americano (Astur atricapillus). Seria uma primeira ocorrência para os Açores e também para o Paleártico Ocidental. Por outro lado, soubemos que a mensagem do Olof tinha chegado a bom porto e que o pessoal estava desesperadamente a tentar arranjar um meio de transporte lá para cima. O táxi do costume não estava disponível e o pânico estava instalado. 

Aqui cabe fazer um parêntesis. Dois dias antes, O Vincent, que é um dos frequentadores mais assíduos do Corvo, já na sua décima nona estadia, tinha tirado uma foto a dois mosquitos, muito longe num fundo de céu branco. Ninguém arriscou grandes palpites, que com mosquitos isso é complicado. Lembro-me de ele me ter mostrado a foto e de lhe ter dito que uma das aves tinha perfil de accipiter (açor/gavião). Accipiter, Vincent, accipiter, disse-lhe. Nem eu sabia bem a implicação do que estava a dizer. O problema é que um Açor, qualquer que fosse a espécie, nunca tinha sido visto nos Açores.
Lembro-me de, depois disso, termos falado sobre o que andava pela ilha e ele me ter referido "falta saber o que é aquela rapina da foto, que ainda não apareceu". Dito isto, foi logo aparecer por cima de nós, num dos vales mais remotos da ilha. Às vezes não é preciso  argumentista. A história escreve-se sozinha. 

Açor-americano (Astur atricapillus) e o pânico dos estorninhos

Acabado o parêntesis, voltemos à vaca fria. 
O caos esteve instalado por largas dezenas de minutos mas, com mais ou menos dificuldade, o pessoal conseguiu aparecer cá em cima. Por outro lado, o bicho colaborou qualquer coisinha e, quem estava na estrada de alcatrão conseguiu avistá-lo. Apareceu nas falésias lá em baixo uma ou duas vezes, rodeado de estorninhos a lutar pela vida. Um pouco longe mas, foi o que se conseguiu arranjar. O nível de stress coletivo desceu a pouco e pouco. 

Nesse fim de tarde descemos em triunfo para a Vila, com a certeza de que tínhamos visto algo muito especial. O carro estava transformado num daqueles coches dourados do museu. Até tivemos pessoal a acenar à nossa passagem, ou não estivéssemos nós a usar o carro do Presidente da Câmara. 

Depois de jantar, e apesar da certeza de que tínhamos visto uma ave da família dos açores era preciso chegar a uma conclusão definitiva sobre a espécie. Foi outro dos frequentadores mas assíduos do Corvo, o Pierre, que se encarregou da investigação, e de pedir ajuda aos especialistas. Já passava das dez da noite quando lhe consegui enviar as fotos com a parte inferior da cauda bem visível, que permitiram encerrar o assunto. Algumas dezenas de minutos depois veio a resposta, que lhe chegou diretamente do Olimpo. "Congrats, it's a Yankee!". 
Ou seja, tal como se suspeitava, tratava-se de um Açor-americano. O primeiro Açor dos Açores e do Paleártico Ocidental.

É assim no Corvo. Numa sexta-feira que começou sem grandes promessas, cinco portugueses acabaram por partilhar um momento para a vida. Foi um dia como nenhum outro, num rochedo perdido no meio do Atlântico. 





11 dezembro 2024

A garça que nunca vi

Terceira Novembro/Dezembro 2024

O Outono estava no fim e o fim do ano aproximava-se a toda a velocidade. Apesar de já não ter dias de férias disponíveis, tinha vontade de ir dar uma volta. A sensação, por vezes inexplicável, chamada bicho carpinteiro. O raciocínio que tive em setembro - ver Sexta-feira 13 - pelos vistos repetiu-se e foi, mais uma vez, dar à Terceira. 

Borrelho-de-dupla-coleira (Charadrius vociferus)
Killdeer!

Sabendo que andava lá um pato que me faltava e que a maldita garça-morena tinha sido vista outra vez marquei, com pouco mais de uma semana de antecedência, mais uma ida à Ilha dos Impérios. Seria a oitava em quatro anos. Não há fome que não dê em fartura.

Não ia ter muito tempo. Apenas um dia completo no sábado e duas horas no domingo mas, era o que se podia arranjar. Quem trabalha e tem poucas férias tem de se sujeitar a esta ditadura.

E foi assim que, na sexta dia 29 de Novembro, fiz uma viagem sem incidentes e me instalei no hotel na Praia da Vitória quando já passava da meia noite. 
Uma boa notícia que tive, entretanto, foi que iriam lá estar mais dois birders alemães que eu conhecia. Isto quanto mais olhos, maior se torna a probabilidade de ver qualquer coisa.
Em contrapartida, a maior ajuda, ou seja, os meus companheiros lá do sítio, não ia estar disponível desta vez. O Carlos estava fora e o Ruben só remotamente, no ciberespaço. A vida é assim. Podia ser mais grave se não conhecesse nada do local. 

Borrelho-de-dupla-coleira (Charadrius vociferus)

Comecei o sábado com um bom pequeno almoço e uma visita ao Paul da Praia, onde o pato que queria ver não se fez rogado e apareceu logo à minha frente. O sol ainda estava a nascer e a luz era fraca. Tirei umas fotos de registo e segui viagem lá para cima, para procurar a famosa garça, mais uma vez. O objetivo com maior probabilidade da viagem estava alcançado nos primeiros dez minutos. Agora era continuar na depressão da procura de uma garça-branca fantasma, que não se queria materializar. E assim começou mais uma volta no carrossel.

Andei pelo Reservatório do Cabrito e charcas adjacentes. Nada. Fui a mais umas charcas, incluindo a poça onde ela tinha sido vista pela última vez. Nada de nada. 
Pior ainda, num desses locais ainda temi pela vida. Para ver a charca entrei num terreno e, só uns bons cinco minutos depois é que reparei nos vinte touros que tinham parado de pastar e que estavam a olhar para mim. Saí em bicos de pés e bati em retirada o mais rápido que consegui.
Fui para a Lagoa do Junco e arredores, onde já tinha passado vezes sem conta na última visita. Nada. 
Soube também que os meus colegas alemães tinham ido ver a Caldeira Guilherme Moniz com telescópio e que também não tinham tido sorte. Isto não estava fácil.

Sem mais ideias, resolvi ir pensar na vida o que, neste caso, significou ir comer a sandes de alcatra que me tinha fugido na última visita. Soube que nem ginjas.
Depois de almoço, como as ideias teimavam em não aparecer e não havia notícias dos meus colegas, resolvi regressar à casa partida, ou seja, ao Paul da Praia. Não havia muitas nuvens no céu, podia ser que o pato permitisse umas fotos melhores. 
A ideia foi boa porque, além do pato, ainda apanhei três garças-brancas-americanas a caçar por lá. Às vezes é difícil ver a  natureza em ação e não intervir mas, nós temos a nossa vida e, os bichos têm a vida deles. Mais uma vez senti-me um privilegiado. O Mickey é que não teve tanta sorte.

O dia não correu nada bem ao Mickey
Garça-branca-grande-americana (Ardea alba egretta)

Por volta das duas e meia da tarde, achei que a brincadeira tinha terminado e que tinha de voltar ao trabalho. Maldita garça, pensei. Resolvi ir outra vez para o Junco para continuar a labuta. Pelo menos, sempre se viam mais uns muros vazios.  Eram quase três da tarde quando cheguei ao destino. 

Da estrada não vi nada e resolvi ir a uma charca fora de vista, dentro de um terreno. Era um dos locais onde tinha observado o maçarico-solitário na última visita. Parei o carro o melhor que pude, para não estorvar muito os camiões de leite e tratores que estão sempre a passar e lá fui. Pelo menos narcejas haviam de estar algumas, pensei. Fui-me aproximando da borda e nem uma narceja. Típico. Mais uns passos e, quase debaixo dos meus pés, levantam três codornizes, e depois mais duas e depois mais uma. Bem que tentei tirar uma foto, mas sem sucesso. Ora bolas, que isto não está a correr nada bem. Subitamente, começo a ouvir uma vocalização que não conhecia. Tiiiiiiiii! Tiiiiiiiii! Mas que raio é isto, pensei. Parecia vir de muito perto. Andei uns metros para cima. Tiiiiiiiii! Vinha de uma pequena poça, junto ao canto do terreno. Levo os binóculos à cara e, vejo materializar-se um dos unicórnios em que mais tinha pensado nos últimos anos. Um borrelho-de dupla-coleira olhava para mim a uma dezena de metros. Tiiiiiiiii! 

Borrelho-de-dupla-coleira (Charadrius vociferus)

Não me lembro de pensar em mais nada. Peguei na máquina e premi o gatilho. Ele ainda ficou pousado uns segundos mas, rapidamente levantou voo, sempre a vocalizar. Tiiiiiiiii! Deu várias voltas pela zona, comigo sempre a disparar como se não houvesse amanhã. Finalmente, lá pousou num terreno do outro lado da estrada. Percebi onde estava e, resolvi não me aproximar, para não espantar a caça. 
Avisei os colegas. Seguiu mensagem para o Ruben e para os Alemães, que vieram a correr. "Frederico, we are coming!", mandaram estes últimos no WhatsApp.
Demorou uma boa meia hora até que lá estivesse toda a gente. Quando nos aproximámos ainda estivemos uns minutos até o conseguirmos avistar, a cerca de cinquenta metros, numa dobra do terreno. Para eles não deu para grande coisa, mas uma estreia é uma estreia e, um dos alemães estava eufórico. Isto para alemão, claro. Ou seja, esboçou um leve sorriso. 
Nesse fim de tarde, quando desci para o hotel, acho que o carro não precisou de gastar combustível. O trajeto foi todo feito a adrenalina. 

A descoberta e estreia desse dia foi devidamente comemorada por todos, num dos meus restaurantes preferidos da Praia da Vitória, o Larica. Três observadores, dois Alemães e um Português, numa sala perdida, no meio do oceano. Mais um momento para recordar. 

No domingo, só dispunha de cerca de duas horas antes de ir para o aeroporto. Estava sem grandes ideias e, já não tinha esperança nenhuma na garça maldita. Por isso, resolvi ir a Meca o que, na Terceira, significa ir ao Paul da Pedreira. Pelo menos, sempre se tiravam umas fotos. 
Ao chegar ao pequeno almoço não estavam lá as panquecas com maple sirup que tão bem me tinham sabido no dia anterior. Ainda protestei mas, as funcionárias não me ligaram nenhuma. Hoje não há, disseram com um sorriso. Ora bolas, um dos momentos altos do dia tinha ido por água abaixo. Isto começa mal, pensei.

Segui para a Pedreira. O céu estava cinzento e, ainda tive de esperar uns minutos que a chuva abrandasse, antes de sair do carro. Meti a máquina na mochila, para maior protecção e fui andando diretamente para o confortável banco de pedra que por lá está, no canto direito.
Com um céu destes e chuva miudinha vão ser umas excelentes fotos, pensei. Mas persisti e continuei a caminhar que isto, nos Açores, o tempo muda em segundos. 

Maçarico-de-asa-branca / Willet (Tringa semipalmata)
Uma das fotos iniciais

Não costumo parar no caminho mas, desta vez, como aquilo me pareceu animado, resolvi dar uma vista de olhos nas primeiras poças que se vêem do lado esquerdo.
Ainda meio a dormir, espreitei pelos binóculos e, a primeira ave que vi foi uma limícola esquisita de tamanho médio e de cor creme acinzentado, tipo cor-de-burro-quando-foge. Olhei uma e outra vez, para ver se não seria uma miragem. O bicho lá continuava, calmamente, a alimentar-se na lama. Já conhecia aquela silhueta, que tinha visto no Brasil, em 2018. Era um Maçarico-de-asa-branca (Willet, em Inglês) Parecia impossível, mas ele ali estava, à minha frente. Fiquei atordoado por um segundo ou dois, a pensar no que tinha acabado de acontecer.

Os nervos começaram a instalar-se quando me lembrei que tinha a máquina na mochila que, por sua vez, estava às costas. E se o bicho voa, maldita chuva que me fez guardar a máquina, só me saem duques. Os poucos segundos que demorei a tirar a câmara da mochila e a prepará-la pareceram horas. Contrariamente ao que seria típico, o bicho até foi simpático e deixou-se ficar. Consegui tirar as primeiras fotos e as segundas e as terceiras. Comecei finalmente a relaxar e a pensar que tinha de avisar a malta. Quando peguei no telemóvel é que percebi que tinha as mãos a tremer e que nem me conseguia lembrar-me do que tinha a fazer. Respirei fundo e lá me vieram à memória as palavras Ruben e WhatsApp. Mandei-lhe uma foto "back of the camera" e perguntei: 
-Willet? Ou ainda estou a dormir?
Isto com confirmação é sempre melhor...

Maçarico-de-asa-branca / Willet (Tringa semipalmata)

Vi que as mensagens nem davam sinal de ter sido recebidas. Mau! E agora?! Mandei mensagem para o Carlos Pereira e também para os Alemães. Sem ver as respostas, resolvi ligar ao Ruben. Era cedo mas, quem tem miúdos pequenos não costuma ter o luxo de poder dormir até tarde. 
-Estou? 
-Viste a minha mensagem?
-Não. Ainda não liguei a internet. Espera aí que vou ver.
Desligar a internet nestes dias é pouco visto e tem os seus riscos mas, de certeza que ele terá uma boa explicação. 

Um ou dois minutos depois lá veio a chamada de retorno.
-É um willet, é! Vou para aí.
Desliguei a chamada e vi as respostas às mensagens. Todas diziam o mesmo. 
Lá vieram os Alemães a correr outra vez. "We are coming!". Segundo percebi, andavam pelo Cabrito a dar mais uma volta ao bilhar grande. Continuavam obcecados pela garça fantasma.

Mais uma meia hora e já lá estava toda a gente. Deu-me um gozo especial ver o Ruben pela segunda vez, num fim de semana em que teoricamente não nos íamos ver. 
O bicho ainda tardou uns minutos a colaborar porque andou metido atrás das canas mas, lá apareceu e toda a a gente tirou as suas fotos. Um pouco longe e com chuva mas, não vi ninguém a queixar-se. 

Maçarico-de-asa-branca / Willet (Tringa semipalmata)

Ainda não eram dez horas, quando resolvi ir andando. O voo era ao meio dia e eu já tinha tido stress que chegasse nos últimos dois dias. 

Foi um fim de semana sempre em crescendo,  com um final nos píncaros do Evereste. Cheguei à Terceira, entrei na Twilight Zone e, só saí de lá quando o avião levantou. 
Fui para casa sem garça mas, também sem rancor. Graças a ela, tinha conseguido ver cinco novas espécies em Portugal em poucos meses. Não há dúvida que, tal como já escrevi noutras crónicas, para encontrar uma coisa, o melhor é ir à procura de outra coisa. 

Termino com um agradecimento ao Ruben pela ajuda inestimável. As idas à Terceira são, cada vez mais, um regresso a casa.


31 outubro 2024

Sexta-feira, 13

Terceira, Setembro de 2024

Depois de um ano especialmente desafiante e cansativo, o ansiado mês de Setembro chegou. Já só conseguia pensar nas férias.

Na ilha dos Açores que tem a minha baía preferida, a Terceira, o mês de Agosto tinha sido animado. Muita bicharada a aparecer e a desaparecer. Fui sempre tentado a ir mas, desistia logo quando via os preços dos voos. Agosto é, decididamente, o pior mês para andar de avião, seja onde for.
Chegámos a Setembro e a tentação continuava por lá. Neste caso, na forma de uma garça-morena muito branquinha.

Não costumo ter fins de semana disponíveis nesse mês e este ano não era exceção mas, como os imprevistos são o pão nosso de cada dia, a situação mudou rapidamente na terça-feira, dia 10. Tive de cancelar devido ao mau tempo e com grande desgosto, uma viagem que tinha no fim de semana seguinte. São coisas que acontecem. Viagens programadas com seis meses de antecedência a esfumarem-se de um dia para o outro. O desânimo instalou-se, quer pela falta de viagem, quer pelo dinheiro perdido. 

Maçarico-solitário (tringa solitaria)

Havia que ultrapassar mentalmente o sucedido, o que não era nada fácil. Com dias de férias já marcados, resolvi estudar alternativas. A verdade é que, pelos vistos, na minha cabeça muitos dos caminhos vão dar à Terceira. Logo no dia seguinte, quarta-feira, dia 11, marquei voo para sexta-feira 13. Isto é que era planeamento e antecedência a sério. Não ia para o destino inicialmente planeado mas, a viagem já ninguém me tirava.

Quinta-feira, dia 12,  fui trabalhar já a pensar na sandes de alcatra que havia de comer depois de aterrar nas Lages, no dia seguinte. 
Pouco passava das 17 horas quando o céu me voltou a cair em cima da cabeça. "O seu voo para a Terceira, dia 13, foi cancelado". E esta hein?!
Rapidamente apurei que o evento era devido à greve do pessoal de terra da SATA, o que na prática significava que não iriam existir voos para qualquer aeroporto dos Açores enquanto o conflito durasse. 

Era uma catástrofe para a Região, que não pode viver sem ligações aéreas. Parecia impossível, mas era verdade.
Numa escala menor, e menor como um grão de areia está para uma praia, tínhamos o meu drama pessoal. Estava escrito que não havia de viajar nesse fim de semana. 
O que não tem remédio, remediado está. Desfiz a mala e fui-me deitar com um desconsolo, leia-se melão, do tamanho de uma melancia das grandes. Decidi também, nessa altura, que não iria abdicar dos meus dias de férias. Podia não sair daqui mas, o fim de semana grande ninguém me havia de tirar. 

E foi assim que chegámos à famigerada sexta-feira 13. Não ia para o destino inicial e, também não ia para a Terceira. Assim sendo, resolvi ir para a Ponta da Erva curar as mágoas. 
Mais uma vez, tudo mudou num ápice. Neste conflito laboral, por uma vez, o bom senso acabou por imperar e, ainda antes de sair de casa já tinha um amigo a ligar-me para dizer que a greve tinha sido cancelada. Fui ver se, por milagre, havia voos nesse dia. Nada. Sexta feira 13 estava tudo parado nos Açores, com os voos todos cancelados de véspera. 

Como nota de comédia recebi também um email hilariante, dos melhores dos últimos anos, com a proposta da TAP para o voo alternativo. Saída de Lisboa a 17, terça-feira e regresso a 16, segunda-feira. Ainda estive tentado a aceitar a proposta, só para ver o que aconteceria. É daqueles que merece ser emoldurado. Nunca mais o irei apagar.

Já na Ponta da Erva, recebi outra mensagem, desta vez do Ruben Coelho, com o mesmo conteúdo "A greve foi cancelada". 
O melão ainda era grande mas, já permitia que o pensamento racional aparecesse de vez em quando. Por volta das 11h, resolvi voltar a verificar se havia voos, neste caso para sábado. Não percebi bem porquê, talvez tivesse tido a ver com a confusão e cancelamentos da véspera mas, agora já havia lugares num voo de sábado e nem estavam excessivamente caros. Foi logo ali, na Lezíria, no meio de nenhures, só com o telefone, que marquei o voo e fiz o check-in para o dia seguinte. Seria impossível há vinte anos mas, em 2024, é possível.
Maçarico-solitário e o amigo Maçarico-bastardo em confraternização

Rapidamente mandei mensagem aos meus amigos do Atlântico, o Ruben e o Carlos Pereira. Afinal sempre iria haver viagem. 
Chegou-se ao fim do dia e a sexta-feita não fez mais nenhuma diatribe. O episódio da Twilight Zone tinha acabado. Já chegava de contrariedades.
Agora era só ir e ter sorte. Sabia-se que a tal garça-morena estava difícil mas, para mim, só o facto de poder ir à Terceira e ver os meus amigos, já era uma vitória.

Mal aterrei, liguei o telemóvel. Mensagem do Carlos Pereira: "Maçarico-solitário na Pedreira".
A partir desse segundo, foi uma correria até ao Paul. Ora bolas, a escada que nunca mais aparece, e a porta que nunca mais abre, e o pessoal que nunca mais sai e esta gente que não anda. Até uma equipa de futebol inteira, que estava a andar vagarosamente pela placa, tive de ultrapassar. 
Passados uns longos 10 minutos, lá consegui encontrar-me com o Ruben à porta do terminal. Seguimos à velocidade da luz para o destino, inclusivamente abdicando da famosa sandes de alcatra. 

Chegados ao Paul da Pedreira, nem sinal do maçarico. Ainda esperámos um bocado mas, com o calor que não se podia, má maré e má luz, resolvemos ir tratar do estômago e comer qualquer coisa. 
O próximo passo era ir à famosa garça. Passámos no Paul da Praia, que pouca coisa tinha por lá e seguimos. Lá em cima, na muito falada Lagoa do Junco, quase seca, garça não havia nenhuma. Demos umas voltas pelas canadas apertadas da zona e o resultado foi o mesmo. Nada de garça. Há-de aparecer, pensei. Isto é preciso é acreditar.

Estávamos nós a pensar na vida, dentro do carro, quando vejo uma limícola a passar por cima da janela do Ruben. "Olha aquilo! É uma limícola!". Não consegui ver nenhum detalhe, contra o céu cinzento carregado, a não ser a pequena silhueta. Ele ainda conseguiu apanhá-la, a custo e já depois de perguntar várias vezes o famoso "Onde?". Achou, não só que era uma limícola, mas também que o uropígio não era branco, ou seja, poderia ser o tal maçarico mais querido. Certezas é que não havia nenhumas. 

Como conhecedor de todos os tanques da zona e com a falta de água na ilha, o Ruben achou que o bicho poderia ter ido para um local a umas poucas centenas de metros. Fomos para lá rapidamente e em força. Fizemos a aproximação ao ponto de observação com todo o cuidado, de forma a não espantar nada que por lá andasse.
Pusemos a cabeça de fora. O tanque e a poça de lama ao lado estavam a uns 50 metros. Em poucos segundos vimos o maçarico-solitário, bem como o outro frequentador da zona, um maçarico-bastardo. 
Parecia impossível. Tínhamos encontrado no meio da ilha o bicho que tinha chegado há umas horas ao Paul. E ele ali estava, à frente dos nossos olhos, alheio ao burburinho e drama que tinha provocado. Que trabalho de equipa, desde a descoberta, à redescoberta. Às vezes corre bem...

Não nos aproximámos muito, para não espantar a caça. Foi um momento único, ver uma estrela daquelas naquele local. A interação entre os dois bichos, fosse luta ou brincadeira, foi um espetáculo. Luta, salta para o tanque, vai para a poça, e recomeçavam a luta no tanque.

Maçarico-solitário vs Maçarico-bastardo

A sorte não me tinha abandonado. Não havia garça, por enquanto, mas havia um Solitário. O fim de semana estava feito. 
Demos mais umas voltas, com passagem pelo império de São Sebastião para comemorar com umas minis e recolhemos ao quartel-general, que o dia tinha sido longo. 

Domingo, era, na prática, o ultimo dia do raid, uma vez que o voo de segunda era a horas pouco recomendáveis, ainda antes do nascer do sol.
O trabalho começou na procura da da famosa garça-morena, que não quis aparecer. A equipa ficou reduzida a um indivíduo quando o Ruben teve de se ausentar uma hora por razões familiares. Família, a quanto obrigas...

Comtinuei o périplo pelos muros e poças de lama, sempre com a esperança de conseguir um vislumbre da morena que, na realidade, era branca. 
A dada altura, estava eu perto da lagoa do Junco, encostado ao muro e a olhar para o horizonte, quando vejo pelo canto do olho, a vir da direita, uma coisa branca em voo, que se transformou rapidamente numa garça branca. Ainda a consegui ver nos binóculos por uns segundos, poucos e insuficientes para chegar a alguma conclusão. Vi-a desaparecer relativamente perto, atrás de um pequeno monte. 
Seria ela? A verdade é que não andava por lá mais nenhuma garça branca nos ultimos tempos. Só podia ser ela, pensei. 
Com o coração aos saltos, rapidamente saltei dois muros e a vislumbrei num tanque a uns bons cem metros. Tirei algumas fotos de registo e, já a tremer, olhei para o ecrã. As pernas eram claras e o bico bicolor. Tudo sinais de morena. A adrenalina disparou. Tinha conseguido. Mandei notícia e a minha localização. Resolvi esperar por companhia, que isto sozinho tem menos piada e, além disso, nesta atividade, quanto mais olhos, melhor. 
Nem vinte minutos se passaram até ter outra vez um Coelho ao meu lado. Desta vez teve alguma dificuldade em encontrar-me, que eu estava fora de vista, para lá da estrada. É o que dá andar armado em Rambo. 
Combinámos a estratégia, "Ah e tal, vamos por ali para ela não nos topar", e avançámos até onde achámos seguro. Tirámos mais umas fotos e tirámos as teimas. 
Quando olhei, nem acreditei no que estava a ver. Afinal as pernas não eram claras e o bico não era bicolor. Era só uma garça branca esquisita que, dependendo das condições de luz, se prestava à confusão e ilusões de ótica. 

     A tal garça esquisita que parecia que era mas não era.


Foi só uma fracção de segundo para cair das nuvens e aterrar no fundo de um poço. Psicologicamente muito duro mas, é como diz alguém, se aceitarmos dói menos. E eu aceitei rapidamente. Seguimos em frente e para afogar as (minhas) mágoas fomos ao já tradicional "Make me Nuts". Nada como a tradição ou, neste caso, uma "americanada", para levantar a moral. Outra coisa que também ajuda é pensar positivo, como com uma frase que dissemos entre nós várias vezes durante o fim de semana. Têm estado a chegar coisas novas, pode ser que chegue mais qualquer coisa. 

A tal garça esquisita que parecia que era mas não era. 
Que diferença para a foto anterior!

Aproveitámos o almoço para pensar a melhor estratégia e optámos por dar mais umas voltas, sobretudo por locais menos frequentados. A probabilidade era pouca mas nestas coisas nunca se sabe. Fomos ao Cabrito e à Lagoa do Pico da Bagacina, perdida algures no meio da ilha. Garça é que nem vê-la. É assim. Quem procura nem sempre alcança...

Foi exatamente às 15h08 que tudo mudou. O Carlos Pereira manda a bomba de que tinha acabado de aterrar um limnodromus na Pedreira. Quando lhe perguntei qual, não houve resposta.

Aqui cabe fazer um parêntesis, e dizer que o tal limnodromus é um maçarico americano, uma limícola. Há dois membros da família. Um que em português é chamado de maçarico-de-bico-comprido, e o outro maçarico-de-bico-curto. As diferenças entre os dois são muito subtis e requerem análise pormenorizada. Os nomes comuns valem o que valem. A verdade é que, se fosse o de bico-curto era uma estreia para mim. 

Maçarico-de-bico-curto (Linodromus griseus)
A foto que se pôde arranjar...

Apesar do que tinha acontecido de manhã, a adrenalina não se tinha esgotado, longe disso. A tremideira voltou e, num ápice, concordámos em ir à velocidade da Luz para Meca. 
Chegados, nem meia hora depois, fomos logo surpreendidos com a confusão generalizada de um esvoaçar de todas as limícolas do Paúl. Uma garça-real lembrou-se de passar por lá e o resultado foi o que se estava a ver.
Claro que a primeira coisa que ouvimos do Carlos foi a explicação esperada do "estava aqui agora mesmo mas voou". "Típico!", pensei. Mais uma que não ia ser fácil. 
Neste entretanto, aproveitámos para perceber junto dele a razão da não resposta sobre a espécie.  "Então, ele tinha acabado de chegar. Mandei logo a mensagem, ainda antes de tentar perceber qual era". Fazia sentido. 
Agora, era voltar a tentar achar o bicho no meio da confusão e, depois, se o encontrássemos, tentar perceber de que maçarico estávamos a falar.
A luz não estava nada favorável. Os bichos foram pousando e a procura intensificou-se. Não foi preciso sofrer muito. Passado poucos minutos detectou-se o sujeito, a dormir, um pouco para a esquerda e a média distância de onde nos encontrávamos. 
Com a luz péssima que estava, tirei a melhor foto que consegui. Esta não era grande coisa mas, percebia-se perfeitamente que as terciárias não eram lisas. Tinham uns entalhes bem visíveis. Disse-o e mostrei a quem ali estava e que já era uma grande multidão para a zona, ou seja, umas cinco pessoas. "Se tem entalhes é o de bico curto", disse o Carlos. Era do que me lembrava também. Não tinha o guia todo na cabeça mas, disso, lembrava-me. Voltei a ver a foto e abri o guia no telemóvel. Não havia dúvidas. Era mesmo o bicho que me faltava. 
Fiquei largos minutos a olhar para ele e a tirar más fotos, que era o que se podia arranjar naquelas circunstâncias. Pensei para mim que fotos boas não tinha mas, também não me podia queixar. 

Dois amigos na Terceira

Já não faltava muito para o pôr do sol daquele domingo, que acabou por ser memorável. Comecei a pensar no que se tinha passado na sexta feira 13, sábado e domingo. De nem conseguir viajar e da falta da morena tinha, do nada, acabado por ir à Terceira e ainda ver duas espécies novas, acabadas de chegar. Isto, claro além do objetivo alcançado de rever os meus amigos.
 
Olhei para a estrela em forma de maçarico à minha frente e, depois, para quem me rodeava. O sol banhava a Pedreira com uma luz dourada que nos aquecia o corpo e a alma. Nessa altura, nesse exato momento, não me lembrei nem de greves, nem de morenas perdidas...

Deixo aqui um abraço e um agradecimento aos incansáveis Ruben Coelho e Carlos Pereira. A Terceira está sempre na minha cabeça e no meu coração mas, o bichinho das viagens para aí, esse foram vocês que me pegaram.


29 abril 2024

Levante em Abril

Narceja-real nos Salgados - 21/04/2024

No dia 20 de Abril, um sábado, surgiu no WhatsApp do ciberespaço, num dos grupos de entre as dezenas de grupos que por lá proliferam, a notícia pouco menos que mirabolante de que alguém teria visto uma Narceja-real (Gallinago media) no reino dos Algarves, mais concretamente na mal afortunada e tão pouco preservada Lagoa dos Salgados.

Narceja-real

O lançador do caos era o Francisco Maia, assíduo frequentador do local. Apesar de não ser membro do grupo Whatsapp, transmitiu o avistamento a outros, que o divulgaram, bem como à sua convicção. Estava seguro e tinha fotos. Bom, vamos lá ver essa evidência, pensei. Confesso que estive sempre incrédulo e, pelos comentários que fui vendo, não me pareceu estar sozinho. Uma narceja-real é difícil de ver e de identificar, mesmo onde ocorre. E eu que o diga...

Quem não conhece a espécie poderia ser tentado a dizer que "narcejas há muitas, seu palerma!". É verdade, mas esta é quase mítica. Sempre difícil de ver, mesmo nos locais de nidificação. Por cá havia apenas três registos, incluindo aves abatidas por caçadores. O último tinha sido em 2004 (!).
Quando tive a fortuna de ver algumas, na Polónia, já era quase de noite. É nessa altura que os machos vão para as arenas exibir-se para as fêmeas. Um momento que nunca mais se esquece. De dia não consegui ver nenhuma...

Nunca acreditei que pudessem existir fotos conclusivas para um caso destes.
Não podia estar mais enganado! Quando as fotos apareceram, deixaram muito pouco espaço para conversas, fossem elas relevantes ou de chacha. Viam-se claramente as diagnosticantes riscas brancas bem marcadas nas coberturas da asa.
Das reações no grupo retenho o emoji de olhos esbugalhados lá colocado pelo Thijs, o Holandês mais Algarvio de Portugal. Os ventos prolongados de Levante na Primavera tinham trazido mais uma surpresa.

Mandei logo mensagem aos meus companheiros amigos sofredores Pedro Nicolau e Pedro Ramalho a dizer que, face ao que se via nas fotos, não estava a ver como é que aquilo não era uma Narceja-real. Como o Português é uma lingua traiçoeira, quer um, quer o outro perceberam exatamente o contrário...

Narceja-real - veja-se o branco nos lados da cauda

Agora que o evento anteriormente impossível estava confirmado, estávamos na hora das decisões. O gabinete de crise - neste caso eu e o Pedro Nicolau - reuniu rapidamente e, após o esclarecimento do mal-entendido da minha mensagem anterior, a decisão foi de sair às três e meia da manhã para o Algarve. Parece mas, não é um erro. Foi mesmo às três e meia. Isto, para estar nos Salgados pouco antes do nascer do sol. Ainda se falou em ir mais tarde, esperar por notícias mas, essa moção perdeu por larga margem. Também veio ao de cima a preocupação do Pedro com a possibilidade de o filho nascer durante o arrolamento. Pensei que, isso sim, seria uma crónica a sério. Sair às três da manhã para ver uma ave a 250km é uma coisa. Juntar a isso a possibilidade de ter um filho ao mesmo tempo é todo um outro nível de loucura.


Contrariamente ao que é habitual, consegui dormir umas três horas, uma enormidade, face aos nervos e às circunstâncias. Às 3h30 da manhã de dia 21 estávamos a caminho.
Éramos três, porque o António Goncalves optou por aproveitar a boleia. Era uma equipa inédita mas promissora. Veio-me à cabeca a espantosa descoberta que eu e o António fizemos há uns anos no mesmo local, de uma felosa-boreal. Tínhamos tido uma sorte monumental. Será que tinha sobrado alguma?

A viagem fez-se sem incidentes, de noite e com a tradicional paragem na área de serviço do costume. Desta vez passámos mais cedo que o habitual e as prateleiras dos bolos ainda estavam vazias. A senhora que nos atendeu, ainda meio ensonada, ficou a olhar para nós. Quem seriam estas aves raras a pedir café às 4h30 da manhã e a interromper o seu sono?
Chegámos aos Salgados ainda não eram 6h30. O Sol já se fazia anunciar mas, ainda faltavam uns bons vinte minutos para aparecerem os primeiros raios. O frio ainda era mais que muito. Estávamos a estacionar, quando reparámos noutros faróis logo atras de nós. Outro carro? Quem seria? Àquela hora já não poderiam ser os frequentadores noturnos que tão má fama dão ao local. Abre-se a porta e sai o Sérgio Correia. Mais um maluco. Rapidamente chegaram também o Nuno dos Santos e o Rogério Rodrigues. Já éramos uma multidão.

A busca começou de imediato, ainda com aquela claridade quase inexistente que faz com que todos os gatos sejam pardos. Nem cinco minutos tinham passado quando, o António Gonçalves descobre uma narceja perdida no meio dos caniços e em contraluz. Seria a nossa? Parecia riscada de branco nos flancos e o bico parecia curto. Começou a hipnose coletiva e começámos a deitar foguetes. Ah e tal que que se viam perfeitamente as riscas brancas nos flancos, que o bico era curto, e mais outras que tais. Recordo-me de o único a pôr água na fervura ter sido o próprio descobridor, o António. Aquilo ainda durou uma meia hora, até a luz ser suficiente para se ver que, afinal, as riscas eram riscas mas não eram brancas e que o bico era curto mas não era assim tão curto. Tudo terminou subitamente quando ela decidiu ir à sua vida e o Nicolau nos mostrou uma foto em vôo onde se via claramente que a ave não era de sangue azul. Era só uma narceja do povo.

Pousou no prado...

Foi triste mas, ainda era cedo para desilusões. Por outro lado, estava mais que provado que havia mais de uma narceja na zona, o que não era nada bom para a busca. Como estávamos em contraluz, optámos por mudar de posição e ficar do outro lado das poças, com a ruína lá da zona nas nossas costas. Como a água era muita, tivemos de dar uma "granda volta" e contornar as grandes poças. No meio das ervas e já com os pés molhados, lembro-me de ter pensado que devia mas é ter trazido as botas e já agora, outras calças.
Foi nesta altura que não podia ser melhor aplicado o provérbio "há males que vêm por bem". Ouço de repente o pessoal que estava uns vinte metros à frente a gritar "Olha! Olha!" e "É ela!". Uma narceja tinha levantado perto do caminho. Levanto os binóculos e vejo claramente as marcações brancas na asa. O vôo era pesado, mais direto e mais baixo que o que se costuma ver nas narcejas normais. Não havia dúvida que esta era da nobreza, uma Narceja-real.
As fotos que alguns conseguiram tirar mostravam exatamente o mesmo, incluindo a cauda, com os lados brancos. Desta vez, não se tratava de hipnose coletiva. Era mesmo verdade.

Pousou no prado a uns bons cinquenta metros. Durante uns minutos conseguimos ver a estrela no telescópio, com todo o pormenor.
Era a euforia geral nos Salgados. A minha ainda maior se tornou quando a narceja resolveu voltar para a poça onde estávamos e consegui, finalmente, os primeiros registos fotográficos.

Estávamos a digerir o sucesso, quando começam a chegar os primeiros nativos, neste caso o Alexandre Guerreiro e a sua companheira. Olhei para o telemóvel e vi que eram apenas 8h30. Estranho, pensei, o pessoal de cá chega sempre às 9h30. Vieram cedo... Pouco depois chegou também o José Godinho, para compor o contingente.
O pássaro madrugador é que apanha a minhoca e o bicho estava escondido nessa altura mas, não tiveram de esperar muito. Mais uns minutos e lá voltou a levantar para o prado. Toda a gente ficou contente. O êxtase foi completo e as caras de todos diziam isso.


Narceja-real 

A Operação Narceja estava no fim e o pessoal começou a desmobilizar. Sim, porque isto aos domingos não costuma ser fácil sair de casa sem hora para voltar.
O nosso trio ainda deu umas voltas pela zona, não fosse mais uma felosa-boreal desta vida andar por lá mas, já tínhamos gasto a sorte toda desse dia. Por volta das onze estávamos a caminho. Chegámos a Lisboa às duas da tarde e ainda deu para comparecer ao almoço de família. Quando corre bem, corre bem.

Esta crónica é dedicada ao meu amigo Pedro Nicolau. Não é todos os dias que se vai a um arrolamento com alguém que tem a possibilidade de ser pai a qualquer momento. Acabámos por falhar o grande dia por uma semana, e ainda bem.
Um grande abraço e muitas felicidades!


#canaldoxofred