Terceira, Setembro de 2024
Depois de um ano especialmente desafiante e cansativo, o ansiado mês de Setembro chegou. Já só conseguia pensar nas férias.
Na ilha dos Açores que tem a minha baía preferida, a Terceira, o mês de Agosto tinha sido animado. Muita bicharada a aparecer e a desaparecer. Fui sempre tentado a ir mas, desistia logo quando via os preços dos voos. Agosto é, decididamente, o pior mês para andar de avião, seja onde for.
Chegámos a Setembro e a tentação continuava por lá. Neste caso, na forma de uma garça-morena muito branquinha.
Não costumo ter fins de semana disponíveis nesse mês e este ano não era exceção mas, como os imprevistos são o pão nosso de cada dia, a situação mudou rapidamente na terça-feira, dia 10. Tive de cancelar devido ao mau tempo e com grande desgosto, uma viagem que tinha no fim de semana seguinte. São coisas que acontecem. Viagens programadas com seis meses de antecedência a esfumarem-se de um dia para o outro. O desânimo instalou-se, quer pela falta de viagem, quer pelo dinheiro perdido.
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Maçarico-solitário (tringa solitaria) |
Havia que ultrapassar mentalmente o sucedido, o que não era nada fácil. Com dias de férias já marcados, resolvi estudar alternativas. A verdade é que, pelos vistos, na minha cabeça muitos dos caminhos vão dar à Terceira. Logo no dia seguinte, quarta-feira, dia 11, marquei voo para sexta-feira 13. Isto é que era planeamento e antecedência a sério. Não ia para o destino inicialmente planeado mas, a viagem já ninguém me tirava.
Quinta-feira, dia 12, fui trabalhar já a pensar na sandes de alcatra que havia de comer depois de aterrar nas Lages, no dia seguinte.
Pouco passava das 17 horas quando o céu me voltou a cair em cima da cabeça. "O seu voo para a Terceira, dia 13, foi cancelado". E esta hein?!
Rapidamente apurei que o evento era devido à greve do pessoal de terra da SATA, o que na prática significava que não iriam existir voos para qualquer aeroporto dos Açores enquanto o conflito durasse.
Era uma catástrofe para a Região, que não pode viver sem ligações aéreas. Parecia impossível, mas era verdade.
Numa escala menor, e menor como um grão de areia está para uma praia, tínhamos o meu drama pessoal. Estava escrito que não havia de viajar nesse fim de semana.
O que não tem remédio, remediado está. Desfiz a mala e fui-me deitar com um desconsolo, leia-se melão, do tamanho de uma melancia das grandes. Decidi também, nessa altura, que não iria abdicar dos meus dias de férias. Podia não sair daqui mas, o fim de semana grande ninguém me havia de tirar.
E foi assim que chegámos à famigerada sexta-feira 13. Não ia para o destino inicial e, também não ia para a Terceira. Assim sendo, resolvi ir para a Ponta da Erva curar as mágoas.
Mais uma vez, tudo mudou num ápice. Neste conflito laboral, por uma vez, o bom senso acabou por imperar e, ainda antes de sair de casa já tinha um amigo a ligar-me para dizer que a greve tinha sido cancelada. Fui ver se, por milagre, havia voos nesse dia. Nada. Sexta feira 13 estava tudo parado nos Açores, com os voos todos cancelados de véspera.
Como nota de comédia recebi também um email hilariante, dos melhores dos últimos anos, com a proposta da TAP para o voo alternativo. Saída de Lisboa a 17, terça-feira e regresso a 16, segunda-feira. Ainda estive tentado a aceitar a proposta, só para ver o que aconteceria. É daqueles que merece ser emoldurado. Nunca mais o irei apagar.
Já na Ponta da Erva, recebi outra mensagem, desta vez do Ruben Coelho, com o mesmo conteúdo "A greve foi cancelada".
O melão ainda era grande mas, já permitia que o pensamento racional aparecesse de vez em quando. Por volta das 11h, resolvi voltar a verificar se havia voos, neste caso para sábado. Não percebi bem porquê, talvez tivesse tido a ver com a confusão e cancelamentos da véspera mas, agora já havia lugares num voo de sábado e nem estavam excessivamente caros. Foi logo ali, na Lezíria, no meio de nenhures, só com o telefone, que marquei o voo e fiz o check-in para o dia seguinte. Seria impossível há vinte anos mas, em 2024, é possível.
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Maçarico-solitário e o amigo Maçarico-bastardo em confraternização |
Rapidamente mandei mensagem aos meus amigos do Atlântico, o Ruben e o Carlos Pereira. Afinal sempre iria haver viagem.
Chegou-se ao fim do dia e a sexta-feita não fez mais nenhuma diatribe. O episódio da Twilight Zone tinha acabado. Já chegava de contrariedades.
Agora era só ir e ter sorte. Sabia-se que a tal garça-morena estava difícil mas, para mim, só o facto de poder ir à Terceira e ver os meus amigos, já era uma vitória.
Mal aterrei, liguei o telemóvel. Mensagem do Carlos Pereira: "Maçarico-solitário na Pedreira".
A partir desse segundo, foi uma correria até ao Paul. Ora bolas, a escada que nunca mais aparece, e a porta que nunca mais abre, e o pessoal que nunca mais sai e esta gente que não anda. Até uma equipa de futebol inteira, que estava a andar vagarosamente pela placa, tive de ultrapassar.
Passados uns longos 10 minutos, lá consegui encontrar-me com o Ruben à porta do terminal. Seguimos à velocidade da luz para o destino, inclusivamente abdicando da famosa sandes de alcatra.
Chegados ao Paul da Pedreira, nem sinal do maçarico. Ainda esperámos um bocado mas, com o calor que não se podia, má maré e má luz, resolvemos ir tratar do estômago e comer qualquer coisa.
O próximo passo era ir à famosa garça. Passámos no Paul da Praia, que pouca coisa tinha por lá e seguimos. Lá em cima, na muito falada Lagoa do Junco, quase seca, garça não havia nenhuma. Demos umas voltas pelas canadas apertadas da zona e o resultado foi o mesmo. Nada de garça. Há-de aparecer, pensei. Isto é preciso é acreditar.
Estávamos nós a pensar na vida, dentro do carro, quando vejo uma limícola a passar por cima da janela do Ruben. "Olha aquilo! É uma limícola!". Não consegui ver nenhum detalhe, contra o céu cinzento carregado, a não ser a pequena silhueta. Ele ainda conseguiu apanhá-la, a custo e já depois de perguntar várias vezes o famoso "Onde?". Achou, não só que era uma limícola, mas também que o uropígio não era branco, ou seja, poderia ser o tal maçarico mais querido. Certezas é que não havia nenhumas.
Como conhecedor de todos os tanques da zona e com a falta de água na ilha, o Ruben achou que o bicho poderia ter ido para um local a umas poucas centenas de metros. Fomos para lá rapidamente e em força. Fizemos a aproximação ao ponto de observação com todo o cuidado, de forma a não espantar nada que por lá andasse.
Pusemos a cabeça de fora. O tanque e a poça de lama ao lado estavam a uns 50 metros. Em poucos segundos vimos o maçarico-solitário, bem como o outro frequentador da zona, um maçarico-bastardo.
Parecia impossível. Tínhamos encontrado no meio da ilha o bicho que tinha chegado há umas horas ao Paul. E ele ali estava, à frente dos nossos olhos, alheio ao burburinho e drama que tinha provocado. Que trabalho de equipa, desde a descoberta, à redescoberta. Às vezes corre bem...
Não nos aproximámos muito, para não espantar a caça. Foi um momento único, ver uma estrela daquelas naquele local. A interação entre os dois bichos, fosse luta ou brincadeira, foi um espetáculo. Luta, salta para o tanque, vai para a poça, e recomeçavam a luta no tanque.
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Maçarico-solitário vs Maçarico-bastardo |
A sorte não me tinha abandonado. Não havia garça, por enquanto, mas havia um Solitário. O fim de semana estava feito.
Demos mais umas voltas, com passagem pelo império de São Sebastião para comemorar com umas minis e recolhemos ao quartel-general, que o dia tinha sido longo.
Domingo, era, na prática, o ultimo dia do raid, uma vez que o voo de segunda era a horas pouco recomendáveis, ainda antes do nascer do sol.
O trabalho começou na procura da da famosa garça-morena, que não quis aparecer. A equipa ficou reduzida a um indivíduo quando o Ruben teve de se ausentar uma hora por razões familiares. Família, a quanto obrigas...
Comtinuei o périplo pelos muros e poças de lama, sempre com a esperança de conseguir um vislumbre da morena que, na realidade, era branca.
A dada altura, estava eu perto da lagoa do Junco, encostado ao muro e a olhar para o horizonte, quando vejo pelo canto do olho, a vir da direita, uma coisa branca em voo, que se transformou rapidamente numa garça branca. Ainda a consegui ver nos binóculos por uns segundos, poucos e insuficientes para chegar a alguma conclusão. Vi-a desaparecer relativamente perto, atrás de um pequeno monte.
Seria ela? A verdade é que não andava por lá mais nenhuma garça branca nos ultimos tempos. Só podia ser ela, pensei.
Com o coração aos saltos, rapidamente saltei dois muros e a vislumbrei num tanque a uns bons cem metros. Tirei algumas fotos de registo e, já a tremer, olhei para o ecrã. As pernas eram claras e o bico bicolor. Tudo sinais de morena. A adrenalina disparou. Tinha conseguido. Mandei notícia e a minha localização. Resolvi esperar por companhia, que isto sozinho tem menos piada e, além disso, nesta atividade, quanto mais olhos, melhor.
Nem vinte minutos se passaram até ter outra vez um Coelho ao meu lado. Desta vez teve alguma dificuldade em encontrar-me, que eu estava fora de vista, para lá da estrada. É o que dá andar armado em Rambo.
Combinámos a estratégia, "Ah e tal, vamos por ali para ela não nos topar", e avançámos até onde achámos seguro. Tirámos mais umas fotos e tirámos as teimas.
Quando olhei, nem acreditei no que estava a ver. Afinal as pernas não eram claras e o bico não era bicolor. Era só uma garça branca esquisita que, dependendo das condições de luz, se prestava à confusão e ilusões de ótica.
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| A tal garça esquisita que parecia que era mas não era.
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Foi só uma fracção de segundo para cair das nuvens e aterrar no fundo de um poço. Psicologicamente muito duro mas, é como diz alguém, se aceitarmos dói menos. E eu aceitei rapidamente. Seguimos em frente e para afogar as (minhas) mágoas fomos ao já tradicional "Make me Nuts". Nada como a tradição ou, neste caso, uma "americanada", para levantar a moral. Outra coisa que também ajuda é pensar positivo, como com uma frase que dissemos entre nós várias vezes durante o fim de semana. Têm estado a chegar coisas novas, pode ser que chegue mais qualquer coisa.
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A tal garça esquisita que parecia que era mas não era. Que diferença para a foto anterior!
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Aproveitámos o almoço para pensar a melhor estratégia e optámos por dar mais umas voltas, sobretudo por locais menos frequentados. A probabilidade era pouca mas nestas coisas nunca se sabe. Fomos ao Cabrito e à Lagoa do Pico da Bagacina, perdida algures no meio da ilha. Garça é que nem vê-la. É assim. Quem procura nem sempre alcança...
Foi exatamente às 15h08 que tudo mudou. O Carlos Pereira manda a bomba de que tinha acabado de aterrar um limnodromus na Pedreira. Quando lhe perguntei qual, não houve resposta.
Aqui cabe fazer um parêntesis, e dizer que o tal limnodromus é um maçarico americano, uma limícola. Há dois membros da família. Um que em português é chamado de maçarico-de-bico-comprido, e o outro maçarico-de-bico-curto. As diferenças entre os dois são muito subtis e requerem análise pormenorizada. Os nomes comuns valem o que valem. A verdade é que, se fosse o de bico-curto era uma estreia para mim.
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 | Maçarico-de-bico-curto (Linodromus griseus) A foto que se pôde arranjar... |
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Apesar do que tinha acontecido de manhã, a adrenalina não se tinha esgotado, longe disso. A tremideira voltou e, num ápice, concordámos em ir à velocidade da Luz para Meca.
Chegados, nem meia hora depois, fomos logo surpreendidos com a confusão generalizada de um esvoaçar de todas as limícolas do Paúl. Uma garça-real lembrou-se de passar por lá e o resultado foi o que se estava a ver.
Claro que a primeira coisa que ouvimos do Carlos foi a explicação esperada do "estava aqui agora mesmo mas voou". "Típico!", pensei. Mais uma que não ia ser fácil.
Neste entretanto, aproveitámos para perceber junto dele a razão da não resposta sobre a espécie. "Então, ele tinha acabado de chegar. Mandei logo a mensagem, ainda antes de tentar perceber qual era". Fazia sentido.
Agora, era voltar a tentar achar o bicho no meio da confusão e, depois, se o encontrássemos, tentar perceber de que maçarico estávamos a falar.
A luz não estava nada favorável. Os bichos foram pousando e a procura intensificou-se. Não foi preciso sofrer muito. Passado poucos minutos detectou-se o sujeito, a dormir, um pouco para a esquerda e a média distância de onde nos encontrávamos.
Com a luz péssima que estava, tirei a melhor foto que consegui. Esta não era grande coisa mas, percebia-se perfeitamente que as terciárias não eram lisas. Tinham uns entalhes bem visíveis. Disse-o e mostrei a quem ali estava e que já era uma grande multidão para a zona, ou seja, umas cinco pessoas. "Se tem entalhes é o de bico curto", disse o Carlos. Era do que me lembrava também. Não tinha o guia todo na cabeça mas, disso, lembrava-me. Voltei a ver a foto e abri o guia no telemóvel. Não havia dúvidas. Era mesmo o bicho que me faltava.
Fiquei largos minutos a olhar para ele e a tirar más fotos, que era o que se podia arranjar naquelas circunstâncias. Pensei para mim que fotos boas não tinha mas, também não me podia queixar.
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Dois amigos na Terceira |
Já não faltava muito para o pôr do sol daquele domingo, que acabou por ser memorável. Comecei a pensar no que se tinha passado na sexta feira 13, sábado e domingo. De nem conseguir viajar e da falta da morena tinha, do nada, acabado por ir à Terceira e ainda ver duas espécies novas, acabadas de chegar. Isto, claro além do objetivo alcançado de rever os meus amigos.
Olhei para a estrela em forma de maçarico à minha frente e, depois, para quem me rodeava. O sol banhava a Pedreira com uma luz dourada que nos aquecia o corpo e a alma. Nessa altura, nesse exato momento, não me lembrei nem de greves, nem de morenas perdidas...
Deixo aqui um abraço e um agradecimento aos incansáveis Ruben Coelho e Carlos Pereira. A Terceira está sempre na minha cabeça e no meu coração mas, o bichinho das viagens para aí, esse foram vocês que me pegaram.