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20 janeiro 2023

A Mariquita da Vitória

Terceira 17 a 19 de Dezembro de 2022

Dezembro de 2022. Em termos de viagens, para mim o ano estava arrumado. A loja estava fechada. Mas como de boas intenções está o mundo cheio, dia 4 estava eu muito descansado no sofá quando fui desencaminhado mais uma vez pelo Rúben Coelho. Não vens? Temos cá o Galeirão e a Mariquita. Farto de saber isso estava eu mas, estava a tentar não cair em tentação. 
 
Mariquita-de-mascarilha (Geothlypis trichas)
Mariquita-de-mascarilha (Geothlypis trichas)
de costas...





 
Fui consultar os voos e, espantosamente, no fim de semana de 17 de Dezembro nem estavam excessivamente caros. Vá-se lá saber porquê. O resto da logística foi relativamente simples de tratar. Parecia que os astros se alinhavam e não foi preciso muito mais para me auto-convencer. Afinal, eu era um homem ou um rato? Fiquei rapidamente sem desculpas. Estava decidido. Foi assim,  com menos de duas semanas de antecedência e empurrado por quase toda a gente que marquei a viagem. Se é que se pode chamar viagem a uma estadia de um dia completo e dois meios dias. Iria a 17 e viria a 19. Era pouco tempo mas, tomaram muitos! Quando comuniquei a decisão ao meu outro cúmplice da Terceira, o Carlos Pereira, a resposta foi pronta, "Já estava a estranhar!". Afinal, parece que o único que não sabia que ia à Terceira em Dezembro era eu. 

Apesar de, teoricamente, os objetivos serem dois, na minha cabeça só via um deles como possível, o galeirão-americano - Fulica-americana. Tradicionalmente, esse costuma ficar semanas nos locais onde é descoberto. Já no caso da mariquita-de-mascarilha - Geothlypis trichas - pensei sempre que não iria acontecer. Bicho furtivo e que já tinha sido descoberto há mais de duas semanas (dia 18 de Novembro pelo próprio Rúben). A sorte, mesmo a grande, tem limites. Nesta atividade não há impossíveis mas, não era, em princípio, possível que essa jóia lá ficasse mais de um mês à minha espera. 

Os poucos dias que faltavam foram passando muito lentamente. Fui seguindo as notícias que caiam a conta-gotas daquele pontinho verde perdido no meio do oceano. O galeirão por lá continuou e, espantosamente, a mariquita também. A esperança, foi crescendo, lentamente, algures lá nos confins mais profundos da consciência e do subconsciente. Apesar tentar não pensar nisso, volta e meia essa mariquita aparecia nos meus sonhos. 

Faltava menos de uma semana quando tudo se começou a complicar. Começou a perceber-se que as previsões meteorológicas não estavam grande coisa para o fim de semana. Leia-se, havia aviso amarelo de vento para os Açores. Comecei logo, na minha cabeça, a fazer o filme de que não iam haver voos para mim. Da mariquita não havia notícias desde dia 8 e até aí tudo normal, era mais que esperado. A gota de água foi quando, precisamente no dia anterior à partida, o Carlos Pereira me dá a excelente notícia que tinha tentado ir nesse dia ver o galeirão sem sucesso. Sem vôo, sem mariquita e sem galeirão, era precisamente assim que estava, a horas de sair de casa. A desilusão instalou-se durante umas horas. Troquei umas mensagens, a queixar-me da vida, com os companheiros já referidos. Não que isso ajudasse em alguma coisa mas, há que ter um escape em qualquer lado.

A verdade é que, de repente, assim como chegou, a tempestade mental que tinha dentro de mim desapareceu e senti uma tranquilidade difícil de explicar. Aceitei o destino, o que tivesse de ser, seria. A última mensagem que enviei nessa noite foi algo do tipo "Só sei que amanhã vou para o aeroporto, depois logo se vê." E o sono foi tranquilo, contrariamente ao que é costume nas vésperas de viagem.

Finalmente o sábado esperado chegou. Fui para o aeroporto e para a porta atribuída. Não havia avisos de atraso nos monitores. Não vi passageiros stressados ou a mencionar algo sobre cancelamentos do voo. Chegou a hora do embarque, fizeram a chamada, fomos para os autocarros e embarcámos no avião. Parecia impossível. Exatamente à hora marcada, fizeram o pushback e cinco minutos depois estávamos a caminho. O avião era um luxo, um A330 com televisões multimédia e tudo. Até vi um filme durante a viagem. O comandante avisou que íamos ter turbulência na aproximação e aterragem. Bate certo, pensei. O primeiro passo estava feito. Próximo passo, conseguir aterrar.

O avião abanou um bocado e a aterragem foi na diagonal, uma roda de cada vez. Difícil, mas foi logo à primeira. Lá falhava mais uma das minhas precisas previsões. Menos de meia hora depois já estava no carro, com os meus amigos. Agora, era uma questão de os bichos colaborarem.

O tempo não estava famoso. Fomos primeiro ao Paúl da Praia da Vitória à procura da mariquita mas ela não quis nada connosco. Bem que nós a procurámos mas, nada feito. Finalmente, uma previsão que batia certo. Ah e tal será da chuva, será do vento? As conversas do costume. I'll be back, foi o que me ocorreu. Dali já não esperava nada mas, nesta atividade é proibido desistir.

Próxima paragem, Lagoa do Junco, à procura do galeirão-americano. Naquela zona mais alta o tempo estava ainda pior. Além do vento e da chuva também tínhamos o nevoeiro a ajudar. Para chegar ao sítio tivemos de caminhar uns bons duzentos metros na lama. Chegámos à charca por volta das três da tarde e começámos à procura. Com as mãos a tremer, fosse do frio ou da excitação, dei uma ou duas voltas com os binóculos e não vi nada de especial. Será que o bicho já se tinha ido de vez? Ouço então a palavra da salvação, neste caso a do Rúben, à minha esquerda, "Está lá! Está lá!". "Onde?", perguntei, com o coração aos pulos. "Ali, junto ao muro!". Lá o vi, a uns duzentos metros. Estava quase encostado ao muro de pedras para se proteger do vento. Mal percebeu que estava a ser observado, foi para o meio da charca, para trás das ervas, que estão por todo o lado. Passados apenas uns segundos quase que nem a cabeça se via. A camuflagem era quase perfeita. Este bicho era um estratega. Percebi imediatamente porque teria sobrevivido desde o início de Novembro sem servir de troféu a um dos muitos caçadores que visitam a zona. Tirei umas fotos fraquíssimas de registo dei o assunto como encerrado. O tempo e o bicho não permitiram mais. Senti o alívio instalar-se lentamente, um calor interior difícil de explicar. A viagem não tinha sido em vão. Vi que o Rúben também estava contente, e não era para menos. A hospitalidade da Terceira não podia ser posta em causa. 

Galeirão-americano (Fulica americana)

 O galeirão já estava. Nesse dia já não tínhamos muito mais tempo até a luz desaparecer e resolvemos dar mais umas voltas pelos arredores. Não apareceu nenhuma surpresa mas, pelo menos, viu-se tudo o que já se sabia que andava por lá. Já se sabe que além da natureza, que é muito bonita, há sempre alguma passarada americana para compor qualquer visita.

No final do dia, o Rúben foi à sua vida, e eu fui à minha. O apartamento onde fiquei na capital do Birdwatching na Terceira - leia-se Praia da Vitória - estava muito bem situado. Perdido no meio do casario e a meio caminho entre o Paúl e a marginal. Senti-me em casa. Por um momento imaginei que vivia ali. Era apenas mais um dos residentes e não um estranho, um continental maluco dos pássaros. 

Hora de jantar. Desci para a marginal só para me aperceber do que parecia ser uma tempestade de areia. O vento era tal que, mesmo os grãos pesados daquela praia formavam uma nuvem e picavam a cara e as mãos de quem se aventurava na rua, como eu. Entrei rapidamente para jantar num dos restaurantes. A meio da refeição comecei ver o reflexo de uns pirilampos azuis na rua. O que se estaria a passar? Nem cinco minutos depois, aparece um operacional da proteção civil a pedir para quem tivesse carros na zona os ir retirar. Eh lá! Isto não parece estar fácil, pensei. Quando saí do restaurante havia postes com iluminações de Natal torcidos e deitados ao chão, a rua estava cortada e o jipe da proteção civil estava na zona. A tempestade de areia continuava. Ou seja, não era o fim do mundo, versão Praia da Vitória, mas imitava bem. Fugi a sete pés para o quartel general, que aquilo não estava famoso. Afinal o tal aviso amarelo sempre significava qualquer coisa.

Proteção civil em ação
 
Domingo, o Rúben apareceu cedo para começar a labuta. Fomos logo de manhã e ao fim da tarde ao Paúl da Mariquita, mas a Mariquita não quis aparecer. Ouvi-o dizer, quase para dentro, "Já tive mais fé...". Para mim o facto estava consumado e, a Mariquita, perdida. "É o que é", pensei. Aproveitou-se o dia para dar a volta à ilha. Uma visita a Meca - Paúl da Pedreira - não podia faltar. O balanço do domingo foi um bom conjunto de patos, limícolas e gaivotas americanas, além de um dos meus bichos preferidos, também do mesmo continente, o mergulhão-caçador. 

E foi assim que chegámos a segunda-feira, dia da despedida. O avião era só ao meio-dia e, por isso, já tinha decidido que logo de manhã cedo iria ao Paúl da Praia cumprir a minha obrigação e tentar outra vez a famigerada mariquita. A já falada crença do touro. Acordei cedo e fui tomar um bom pequeno almoço a uma panificação lá do sítio. Sim, porque isto das padarias portuguesas não foi inventado agora. Já tinha feito isso no dia anterior e, apesar de ser longe, dava-me um certo gozo atravessar a cidade ainda adormecida, com as ruas vazias. Isto, claro, com exceção da tal panificação já referida e da taberna da zona, onde os frequentadores habituais me lançaram olhares mistos de curiosidade e reconhecimento. Era a segunda vez em dois dias que me viam passar por ali à mesma hora. Já era praticamente da casa. Bebia era café em vez de bagaço. No regresso ao apartamento senti uma tranquilidade imensa. As ruas estavam desertas e mostravam os desenhos da calçada, iluminados pelas luzes dos candeeiros. Arte urbana no seu melhor. O sol ainda vinha longe, mas já se fazia anunciar. Um pouco como quando estás na paragem de metro e ele começa a querer aparecer, com o som longínquo que se propaga pelo túnel. Não o vês mas, sabes o que aí vem. Pelo meio do casario via-se, por vezes, o mar iluminado pelo início da alvorada. Sentia-me um privilegiado por poder ver este espetáculo simples e complexo ao mesmo tempo. 

Praia da Vitória
uma rua só para mim...


 

Depois de um passeio matinal que me encheu a alma, saí de casa num estado completamente Zen. Raras vezes me sinto assim, o que fez com que me sentisse espantado por me sentir assim. O Paúl era logo ali ao lado e nem cinco minutos demorei a chegar. Passava pouco das oito horas, o sol estava a nascer. Tinha cerca de duas horas para esta última tentativa e tencionava usá-las o melhor possível. A esperança era nenhuma mas, trabalho é trabalho. Para chegar ao local exato onde a mariquita tinha aparecido mais vezes, era preciso andar no jardim cerca de cem metros, saltar um muro e andar mais uns cinquenta num prado, ou pântano adjacente. A nomenclatura varia conforme a quantidade de água que lá está. Bom, adiante, passei o jardim dos aromas e cheguei ao muro. A luz dourada dos primeiros raios de sol iluminava a cena. Lembrei-me de apontar, logo dali, os binóculos para os arbustos onde o bicho costumava aparecer. Mal acreditei no que vi. Lá estava a estrela nos arbustos e no chão a alimentar-se. Mais um unicórnio que se materializava à minha frente. Olhei múltiplas vezes para os binóculos para ver se não estava a sonhar. Continuava a vê-la, era mesmo verdade. Ainda por cima é um bicho bonito, com a garganta amarela e a mascarilha preta. 

O pânico instalou-se quando me lembrei que tinha de documentar o acontecimento ou ninguém iria acreditar em mim. Tanta procura nos dias anteriores sem sucesso e de repente aparecia alguém a dizer que a tinha visto sem evidência nenhuma? Está-se mesmo a ver... Como costumo dizer, na minha lista acredita quem quiser mas, mesmo assim, com evidência não há conversa. Levantei a máquina e apontei para a zona geral, sem saber muito bem se tinha apanhado alguma coisa - soube mais tarde que não - e saltei rapidamente o muro para me aproximar do local. Com o coração aos pulos, tentei não acelerar muito, para não espantar a bicharada. Bicho muito discreto, ora aparecia ora desaparecia entre os arbustos e o chão. Finalmente, lá consegui uns registos fracos junto ao solo e com quase nenhuma luz. Já era alguma coisa. Finalmente, pousou por uns segundos no arame farpado e permitiu qualquer coisa melhorzita. Maldita máquina, que só a focou quando já estava de costas. Era o que havia mas, tomaram muitos! Rapidamente, saiu do arame e desapareceu, para ir à sua vida. E eu, eu fiquei a pensar também na vida, e em como as coisas acontecem. Quando vinha do pequeno almoço, nem nos sonhos mais recônditos imaginava o que se iria passar dali a uma hora.

Mariquita-de-mascarilha (Geothlypis trichas)
um dos primeiros registos dessa manhã

Desde a primeira foto que tirei a partir do muro, até à última, no fio, mediaram doze minutos. Uma montanha russa de emoções, da tranquilidade absoluta, à incredulidade, ao pânico, ao alívio e finalmente, à satisfação infinita, tudo em doze minutos. É assim que funciona, este ofício. Quando mandei uma foto para o Rúben e para o Carlos penso que também ficaram espantados. Provavelmente já não esperariam voltar a receber notícias deste bicho. 

Passado mais de meia hora apareceu o Carlos. Ainda andámos mais um bom bocado à procura da mascarilha, mas ela não voltou a aparecer. Era hora de voltar para casa. Fui buscar a trouxa e o uber Carlos Pereira levou-me ao aeroporto. Estava nas nuvens, e foi nas nuvens que voltei para casa. O impensável tinha acontecido e todas as minhas previsões de sexta-feira à noite tinha saído furadas, felizmente. 

Resta-me agradecer ao meu amigo Rúben, incansável, que me desencaminhou, e ao meu amigo Carlos, sempre presente, mesmo estando severamente condicionado nesses dias. Mais uma vez, senti-me em casa na Terceira. Agradeço também ao Rúben a contribuição que finalmente permitiu dar um título a esta crónica. Não estava fácil.

#canaldoxofred

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