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03 janeiro 2023

As Anãs do Carvoeiro

Peniche 10/12/2022 e 11/12/2022

Se há aves quase impossíveis de colocar numa lista por estas bandas, uma delas é, sem dúvida, a torda-anã (Alle alle). É frequentadora de latitudes muito mais a norte e tem, como seria de esperar, muito poucos registos em Portugal. Ou seja, não é um mito, mas quase. 

Em Dezembro de 2022 os dias de vento forte e mar alterado continuavam desde há semanas atrás. Na tribo só se falava em observação de aves marinhas. As visitas aos hotspots habituais estavam no auge, bem como a vigilância nos portos e estuários. Já tinham sido avistadas muitas aves interessantes. Algumas gaivotas-de-sabine, muitos falaropos e a invasão de gaivotas-tridáctilas são alguns dos destaques. Isto é tudo muito bonito mas, a chamada mega ou bomba ainda não tinha feito a sua aparição. Seria uma questão de tempo? As dúvidas do costume andavam na boca de toda a gente, como a tal pasta do anúncio.

Torda-anã (Alle alle)

Dia 9 de Dezembro, uma sexta-feira de trabalho a seguir ao feriado de quinta, o Pedro Ramalho atira para o ciberespaço uma bomba atómica. Tinha visto uma torda-anã a uma distância aceitável no Cabo Carvoeiro, a voar para Sul. A única evidência que apareceu foi uma foto de um maluco no supermercado a comprar doritos tex-mex. Não sei se conta, mas eu acreditei. A legenda incluia uma frase parecida com "Foram catorze anos à espera deste momento". 

Quem espera sempre alcança. Não tenho dúvidas que, em esforço e tempo dispendido a olhar para o mar desde 2008, o Pedro é dos que mais esperou de entre os observadores Portugueses. Para se ver aves especiais há que acreditar mesmo que é possível, e investir tempo, mesmo muito tempo. A vida é injusta e nem sempre é a quem merece que as coisas acontecem mas, neste caso, até foi.

Agora, havia que decidir o que fazer no dia seguinte, sábado. Obviamente que nunca, nem nos meus sonhos mais recônditos, pensei que seria possível ver uma Alle alle. O que passou passou. Bombas atómicas só há uma em cada século. O vencedor do euromilhões desse ano estava encontrado. Mesmo assim, havia que decidir onde ir. Ou seja, como estamos a falar de marinhas, tinha de decidir entre o Cabo Raso e o Cabo Carvoeiro. Acabei por me decidir pelo Carvoeiro, em parte influenciado pelo Pedro Nicolau, que não tinha vontade de ir ao Raso. Apetecia-me pôr a conversa em dia com o emigrante que andou lá fora a lutar pela vida. Assim se fez e, no início da manhã, lá estávamos os dois no Carvoeiro. A passagem estava razoável, nada de excecional. Já tive dias com muito mais bichos a passar no Cabo. A meio da manhã chegou o dono da zona para controlar a situação e lá ficámos os três junto à Cruz dos Remédios. A observação foi alternando com a amena cavaqueira até ao momento em que eu e o Pedro Ramalho pusemos a vista em cima de um bicho esquisito que seguia isolado, não muito distante da costa. "O que é aquilo?" Foi a minha pergunta imediata. Era um alcídeo, mas pequeno, com vôo mais lento do que as tordas, airos e papagaios-do-mar que andávamos a ver nessa manhã. Ouço o Pedro Ramalho a soltar exclamações do tipo "Eh pá! Pronto! Eh pá! Como é possível?". A observação foi prolongada e, a pouco e pouco apercebi-me do que estava a ver. Era mais uma bomba atómica, mais uma torda-anã. Lá seguia ela, sozinha, naquele anfiteatro imenso que é o Carvoeiro. Ainda ouvi o Pedro a dizer que gostava de comparar o tamanho e só demorou uns segundos até que o desejo fosse satisfeito. Passa uma pardela-balear ao lado, que permite ver que aquela torda era mesmo minúscula. A mim pareceu-me nem metade da pardela. A estreia estava mais que consumada mas, continuei a seguir a ave que, numa destas, provavelmente, nunca mais iria por a vista em cima. 

No meio de tanta excitação, nem tinha valorizado os gritos de desespero do outro Pedro, o Nicolau. A dada altura, já pareciam quase um choro compulsivo. "Mas onde é que está a ave? Não estou a ver a ave! Mas está onde? Não vejo!". A ladainha não parava mas, quem nunca teve desesperos destes que atire a primeira pedra. Lá tomei consciência do drama que se estava a desenrolar e comecei a dizer, repetidamente, "Ainda a tenho! Ainda a tenho! Se quiseres vem ao meu telescópio. Ainda a tenho!". O Nicolau lá percebeu que era a única hipótese que tinha. "Está bem, sai para a esquerda". Eu sair, saí. O problema foi que, quando ele se aproximou, deu um pontapé no tripé e tirou o telescópio do sítio. Eh pá, ajuda qualquer coisinha, pensei. Fosse por sorte ou por perícia, a verdade é que passaram só uns segundos até ele, finalmente, dizer que estava a ver a ave. 

Torda-anã (Alle alle)

A alegria imperou nos Remédios nos minutos seguintes. Os abraços e cumprimentos sucederam-se. Tinha sido uma sorte monumental, tão grande que até pôde ser compartilhada com mais dois companheiros, o Pedro Marques e António Gonçalves, que andavam perdidos lá na zona. Vieram para junto de nós e, passado nem dez minutos passou outra anã, a deles. Parecia impossível mas, já tínhamos entrado na twilight zone há largos minutos e, toda a gente sabe que nessa zona do crepúsculo tudo é possível. Não há fome que não dê em fartura. Já íamos na terceira torda destas em dois dias.

O dia de observação acabou com um almoço razoável na companhia dos dois Pedros e com mais um regresso triunfal a Lisboa. Estava eufórico e senti-me o melhor condutor do mundo mas, juro que só bebi uma cerveja ao almoço.

No final do dia, o Vasco Valadares tentou convencer-me a ir a Peniche outra vez no domingo. Não me apetecia muito. Torda-anã já tinha tido a minha e, a água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte. Ele sabia bem disso mas, ficou combinado que íamos dormir sobre o assunto e que quando acordássemos, logo se via...

E logo se viu. Acordei sem pressas e decidi que ia novamente a Peniche. Não sei explicar porquê. Há razões que a razão desconhece. Não sabia o que estaria o Vasco à espera de ver mas, havia uma aberta na chuva desde meio da manhã até ao final da tarde, com ventos razoáveis. Alguma coisa haveria de aparecer, pensei.

O ritmo foi descontraido, à patrão. Fomos à Papoa, ao café do Quebrado e, passava das onze horas quando, finalmente, chegámos à Cruz dos Remédios, onde já se encontrava outro sofredor destas andanças do seawatching, o Pierre Lemos Esteves.

Mais uma vez, a passagem estava razoável. Nada do outro mundo, mas viam-se alguns alcídeos, sobretudo tordas. Um ou outro papagaio-do-mar passava mais longe, mas suficientemente perto para permitir a identificação. Gaivotas e alcatrazes qb. Não chovia nem estava muito vento e, por isso, o sofrimento não era muito.

Já passava do meio dia quando passou uma mobelha-pequena a uma distância razoável. Até deu para uma ou outra foto. Essa mobelha ainda tem estatudo de raridade e seria um excelente corolário da sessão da manhã. Como as coisas estavam a acalmar, era um excelente pretexto para podermos ir almoçar, ou não era?

A verdade é que os meus companheiros não se mexiam. Meio-dia e um quarto, meio-dia e meia. Já era uma da tarde e nem sinal de almoço. As costas doiam e a fome era negra. Acabei por me conformar com a sorte que me estava destinada e deixei o telescópio por uns momentos para me sentar no banco lá do sítio. Ora, foi aqui que o problema começou. É mais que sabido que, comigo, as coisas aparecem quando me sento ou quando estou a comer. 

Já era uma e um quarto. A passagem estava a abrandar. Olhava para os colegas e o movimento era tipo nenhum. "Eu estou bem aqui!", dizia o Pierre. E eu a pensar que vinha a Peniche almoçar. Sorte maldita!, pensei. Ora, por ironia do destino, foi precisamente nessa altura que vi qualquer coisa muito estranha a materializar-se nos binóculos. Tal como no dia anterior, o que vi foi um alcídeo com um voo mais lento do que era costume, minúsculo e com as asas a bater muito rápido. Lá senti mais uma faísca na cabeça. Qual faísca, era um relâmpago, isso sim. Mais uma torda-anã, e a passar bastante perto, muito mais perto do que no dia anterior. “O que é aquilo?” – levantei-me num ápice e perguntei com voz estridente. “Parece-me uma torda-anã”. Mal acabo de dizer isto ouço a voz do Vasco, “Onde?” “Eh pá, está ali!”, “Onde?”, “Fica atrás de mim para veres para onde estou a olhar”. Era outra vez o filme do dia anterior, mas com outros protagonistas.

Torda-anã (Alle alle)

Pode ter havido mais perguntas mas, confesso que não ouvi mais nada. Devo ter entrado em transe. Como o bicho estava a passar perto, resolvi tentar a sorte e tentar tirar umas fotos. Pensei que estava a perder o meu tempo ao largar os binóculos e pegar na câmara mas, resolvi tentar. Isto de mudar do telescópio para os binóculos, dos binóculos para a câmara e vice-versa é sempre complicado e, normalmente, implica a perda do bicho. Sabia disso tudo mas, resolvi tentar. Para meu espanto, quando olho pelo visor, o bicho estava lá. Como estava lá, carreguei no botão. Até carreguei duas vezes. De repente, deixei de a ver. Apareceu num ápice e desapareceu de repente. Lá baixei a câmara, ainda sem querer acreditar no que tinha acabado de acontecer. Só aí é que percebi que os meus dois companheiros não tinham tido a mesma sorte que eu, e não tinham conseguido perceber onde andava aquela miniatura perdida no meio do oceano. Via-se claramente a desilusão nos olhos deles. Ah e tal, que não tinham conseguido ver a estrela do momento e que pelos vistos tinha passado mais perto do que tinham pensado. É assim a vida. Muitas desculpas mas, torda, nada.

Voltei a pegar na máquina para ver se aparecia alguma coisa nos disparos. Os dedos tremiam. Para minha grande surpresa tinha sete fotos e até estavam focadas. É verdade que focadas qualquer um tira mas, mesmo assim, fiquei contente. Parecia impossível mas estavam ali à minha frente. E esta, hein?!

Mandei logo notícia do sucedido para o dono da zona, o Pedro Ramalho, que isto com proprietários não se brinca. ”Alle alle com foto." A resposta não se fez esperar "Bom, parece que vou ter de ir aí". Aproveitei para ir fazendo download das imagens para o telemóvel. A ideia era ir preparando o futuro que, isto conversa é tudo muito bonito mas, com evidência é sempre melhor. É outro campeonato. 

O inspetor da zona lá chegou, finalmente,  e claro, quis logo ver uma foto. Lá lhe mostrei o que tinha. Com um ar de gozo disse-me "Ah, isso é uma torda!". "Sim, é uma torda, mas é anã", repliquei. E lá nos rimos todos um bocado. Foi a contragosto que me obrigaram a colocar uma foto num dos muitos grupos WhatsApp da especialidade. Tudo em nome da rápida divulgação, claro. A incredulidade que poderia ainda existir sobre as observações dos dias anteriores foi rapidamente esquecida quando, finalmente, apareceu a evidência que parecia impossível obter. Fiquei a saber que era a primeira vez que alguém teria conseguido fotografar esta espécie no mar a partir de terra e de boa saúde.

O Bullying no Carvoeiro
(foto Pedro Ramalho)

Duas da tarde. O efeito da adrenalina estava a passar rapidamente e a fome instalava-se pouco a pouco. Em vez do habitual "Vamos almoçar?!", imperava o silêncio. O Pedro já tinha almoçado e os meus companheiros de sofrimento pareciam com vontade de se martirizarem com o cilício por não terem visto a estrela do dia. No caso, o castigo era mais suave, na forma de jejum prolongado. Eu é que não tinha nada a ver com isso e comecei a mandar algumas indiretas do tipo "pensei que vinha almoçar e afinal ainda estou aqui" e outras que tais. 

Passado o que pareceu uma eternidade, o Vasco lá teve uma ideia de génio. "Será que o Uber Eats entrega no Carvoeiro?" . E não é que entregava mesmo? E foi assim que se inaugurou uma nova era na observação de aves nacional. Passado meia hora lá apareceu um estafeta. "Algum de vocês é o Vasco?" . Devia ser da fome, do local, ou da situação em si mas, foi das melhores refeições de junk food que comi na minha vida. Não fossem os momentos de bullying por parte dos meus colegas e tinha sido um almoço quase perfeito.

Só faltava o café. O Pedro sugeriu o do outro lado da estrada. Escusado será dizer que só eu e ele é que lá fomos. O Pierre e o Vasco lá continuaram de castigo. Quando voltámos percebemos que, afinal, eram eles que tinham tido razão. Nesse intervalo passou mais uma torda-anã, que ambos conseguiram ver. Não há evidência mas eu acredito neles. É como diz a anedota, para sair o totoloto nós também temos de fazer alguma coisa. Por exemplo, jogar. 

E juro que foi mais ou menos assim que as coisas se passaram. Foram cinco Alle Alle em três dias no Carvoeiro. Claro que há sempre outras histórias no meio da história, mas isso fica para as conversas de café.

#canaldoxofred


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