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29 janeiro 2023

Savacu em Faro

19/05/2020 - Faro - Savacu-de-coroa

Depois de uma bem sucedida corrida ao Trombeteiro do Espichel - ver "A Trombeta do Desconfinamento" - apareceu uns dias depois nessa mesma zona um andorinhão-pequeno (apus affinis). Foi a 18 de Maio, segunda-feira, nove dias depois da aparição do Trombetas. É um fenómeno que se explica pela quantidade de olhos que passam a frequentar um local quando o mesmo está "quente" ou "on fire", como alguns preferem dizer em Português corrente.
Segui o tema com interesse, mas sem grande intenção de me deslocar, mais uma vez, ao Cabo. A semana ainda era longa. No entanto, acabei por me deixar convencer, sem grande esforço, a ir ajudar o Vasco Valadares a descobrir o animal. No dia seguinte, terça-feira, tinha um intervalo entre reuniões entre as 10h30 e as 14h30. "Vou lá contigo, mas tenho de estar em casa às 14h15". E assim se fez. Pouco depois das 10h30 estávamos a sair do quartel-general. Objetivo, Affinis. Lá iam ser mais umas horas a olhar para o céu, com o pescoço e os ombros a doer, já para não falar da peregrinação a pé da barreira na estrada até ao Santuário. O corpo a pagar e, ainda por cima, sem ter feito nenhuma promessa.

Savacu-de-coroa (Nyctanassa violacea)

Pouco depois das 11h, tínhamos acabado de atravessar a 25 de Abril quando, numa das várias consultas por minuto que faço ao smartphone, vejo um post do Georg Shreier no grupo "Rare Birds Algarve". Só dizia "Red alert in Faro" com um link para uma lista do eBird. Cliquei imediatamente no link, cheio de curiosidade. Realmente, não era uma lista qualquer. Só tinha uma espécie mas, que espécie. Era um Savacu-de-coroa (Nyctanassa violacea). Um adulto a descansar, calmamente, nas escadas da doca, em frente ao Hotel Eva, às 8h15. O Observador - Nuno Sales Henriques - era desconhecido mas, as fotos tiradas com o telemóvel (!?) não deixavam dúvidas a ninguém. Dizia ele nas notas que tinha tido dúvidas na espécie mas que após consulta com um amigo, tinham chegado a essa incrível conclusão.
Aguenta coração! Não havia dúvidas na espécie e o local também parecia estar mais que confirmado, com as fotos apresentadas. Ou seja, não havia mesmo como escapar a esta. Ainda por cima, para mim, esta garça tinha uma certa mística, uma vez que só na quarta viagem ao Brasil a consegui finalmente vislumbrar. Só um juvenil mas, tomaram muitos!
Tentei manter a calma, enquanto contava ao Vasco o que tinha acontecido. Sentia a adrenalina a espalhar-se rapidamente pelas veias. A resposta veio imediatamente:
-Seguimos em frente?
Perante a minha hesitação, ainda pôs sal na ferida:
-Não precisas de decidir já. Tens até à saída para Sesimbra.
Realmente, tinha imenso tempo para decidir com calma. Para aí uns cinco minutos. As contas de cabeça começaram. Como iria conseguir baldar-me ao teletrabalho? Não deixa de ser cómico pensar nisso. Uma pessoa já está fora do escritório. Neste caso estamos a falar de estar fora de estar fora do escritório. À reunião das 14h30 era difícil fugir. Às outras nem tanto e, com uma chamada, avisei que tinha tido um "imprevisto" e não ia estar presente. A verdade é que esta forma de trabalhar também tem as suas vantagens. O facto de se estar nas reuniões sempre de forma virtual, significa que podemos estar fisicamente onde quisermos. Parti do princípio que teria boa rede móvel na doca de Faro e achei que era uma boa forma de testar a app de reuniões no telemóvel. Estava decidido!
-'Bora para Faro!

Red Alert in Faro!
(screenshot do facebook)

O caminho não teve grande história, a não ser um telefonema rápido do Pedro Ramalho. A Reuters do birding Português tem sempre de ter as últimas informações. Atendi e, depois de atender, houve ou dois segundos de silêncio. Veio a pergunta, que soou mais como uma afirmaçāo: 
-Já estás a caminho...
Perante a minha hesitação prolongada na resposta, teve de insistir:
-Eh pá, ou estás, ou não estás.
Hesitei mais uns segundos.
-Bem...Sim.

Ao fim de quase duas horas e meia estávamos a estacionar ao lado da doca, junto às escadas onde a foto da lista ebird tinha sido tirada. Vista já tínhamos. Só faltava o bicho. Esse, tal como era esperado, não estava à vista. 
Rapidamente avistámos o Lars Gonçalves e a Susana Almeida. Andavam a explorar as redondezas. Além deles, não vimos mais ninguém da tribo. A multidão estaria com certeza a caminho ou, será que é a tribo que é pequena?

Às 14h30 em ponto fui para o carro e entrei na reunião. Ouvia-se tudo perfeitamente e ninguém se apercebeu que não estava num local convencional de trabalho. Obviamente que o pessoal em Faro achou imensa piada ao facto de eu estar sentado dentro do carro com o telemóvel na mão e fones nos ouvidos. Lá tive de repetir várias vezes o pregão "Não vês que estou numa reunião?". 
Pouco depois das três da tarde já estava despachado. Tinha corrido tudo impecavelmente. Benditas novas tecnologias. Às vezes, ponho-me a pensar que ainda há dois ou três dias usávamos telefones de disco. Outros tempos e outros mundos...

Voltando ao mundo real ou, neste caso, à Doca de Faro, as notícias não eram boas. O Savacu na doca não estava e nos jardins adjacentes também não, pelo menos que se visse. 
O pessoal do sofrimento foi chegando a conta-gotas. O Nuno dos Santos, o não-arrolador  Nelson Fonseca e outros foram-se juntando. Já lá tínhamos um grupo jeitoso e a conversa estava animada. Tudo com o devido distanciamento social, claro. 

Sem sinal do bicho, resolvemos ir comer qualquer coisa. Fomos ao restaurante de luxo que tem como logotipo dois arcos dourados a formar um M. "Se aparecer avisem!".  Os restaurantes estavam a começar a reabrir, depois do choque pandémico. Este não fugia à regra. Os funcionários ainda mal sabiam como usar a máscara, e os clientes também. Tudo muito estranho, parecia mais um episódio da Twilight Zone. Mas estranhos num mundo estranho já os birders são há muito tempo e, por isso, no nosso caso tratou-se apenas de mais um detalhe da história maior.
Voltámos à doca. A conversa continuava animada. Num instante chegámos as cinco da tarde. O pessoal começava a desmobilizar. Lá para as sete, já só estavamos eu, o Vasco, o Lars e o Nuno dos Santos. "Eu já não acredito!", Dizia o Nuno. "Tens de acreditar sempre", foi o que lhe disse. 
No meu caso, já tinha ido de Lisboa, agora era ficar até ao fim. Com uma garça noturna, não faz sentido ir embora de dia, sem esperar pela noite. Teria sido o La Palice a dizer isso?  De qualquer maneira, quem já tinha feito 300km, bem que podia esperar mais duas horas, ou não podia?
Continuámos a mandar palpites. "Se calhar está dentro de um barco", "Ainda há bocado vi restos de comida dentro daquele.", "Isso era de uma lontra", "Pois, se calhar até era." 
A verdade é que o bicho não aparecia, por muito que olhássemos para o quadrado de água rodeado pelas paredes de pedra branca. Mais um suspiro e, lá fomos ficando. Fomos ficando e, lentamente, chegámos às 8 da noite.

O sol já começava a desaparecer quando se vê um vulto a voar pelo meio da doca, por entre os barcos. Vinha do lado da cidade, do jardim. A primeira voz que se ouviu foi a do Nuno. "Olha! É a gaja!". Rapidamente foquei a vista e apontei os binóculos. Não tive dúvidas. Vi-a pousar num barco, junto ao bar dos pescadores, no lado sul. Lá fomos, uns a correr, outros, como eu, a fingir que corriam. Antes disso, ainda tirei umas fotos, não fosse o diabo tecê-las.
Lá estava ela, em cima do barco com a cobertura amarela. Mais umas fotos e, nem trinta segundos depois, levanta e vem pousar mesmo por baixo de nós no paredāo inclinado. O pessoal estava em transe. Foi disparar como se não houvesse amanhã. E filmar, como é que havia de fazer? Como tinha começado o dia a pensar que ia fotografar um andorinhão ao Espichel, não tinha trazido a bridge, nem o tripé. Filmar com uma câmara normal dslr e a lente 400mm, sem apoio, estava fora de questão. Restava o telemóvel. E foi com o que restava que acabei por fazer um pobre registo do bicho. Foi o que se pôde arranjar. Tinha ido ao Brasil para ver esta garça e, a custo, lá vi um juvenil. Agora via um adulto em Faro, e que até dava para filmar com o telemóvel. Irónico  é dizer pouco. De rir foi quando coloquei esse vídeo no canal e me perguntaram porque é que estava na vertical. "Filmado com o telemóvel?!". Há dias assim, em que dá para tudo.


O filme com o telemóvel

Nem cinco minutos tinham passado quando aparece o anterior desistente, Nelson Fonseca, em pijama e chinelos. "Já estava a Jantar!" 
Há sempre uma primeira vez para tudo. Não é todos os dias que se vê um pijama nestas andanças.
Depois do transe inicial começámos lentamente a aperceber-nos do que nos rodeava. A verdade é que a garça podia ter escolhido ir para qualquer ponto da doca mas resolveu ir passear precisamente para a frente do bar de pescadores local. Aí, a curiosidade imperava. "O que é que estão a ver?", "Amaricana?", "Olhem que depois têm de vir aqui fazer o relatório!". Os frequentadores habituais estavam quase tão entusiasmados como nós. Até a empregada Algarvia quis saber do que se tratava. "Primeira vez na Europa?", "Então e veio para aqui porquê?", "Era mandar-lhe uma pedrada!", dispara outro lá de trás. Ora aí está o crítico cá do sítio, pensei.

Quando comecei, finalmente, a conseguir raciocinar e a articular o discurso lá me virei para o Nuno:
-E agora, já acreditas?!

O regresso era longo e às nove e pouco já estávamos a caminho de casa. Além da habitual paragem na habitual área de serviço, retenho a frase do Vasco:
-Foi um dia espetacular, não foi?
Só nessa altura fiz o flashback na minha cabeça. Do trabalho para o Espichel, ou não-Espichel, neste caso. Da ponte sobre o Tejo para a doca de Faro. A reunião virtual e a montanha russa psicológica até à aparição.
Não sei se foi por ter ido ao Allgarve que me veio à cabeça a frase do Lord Marshal no filme que também tem crónicas no título: "This is a day of days!". E foi. Foi um dia que valeu por mil.








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